quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Terceiro capítulo

                                                    Cansada de quê, se não faz nada?
Angela Delgado

     Dita de brincadeira ou não, é uma frase típicamente machista, além de ser a mais equivocada de todas, pois não há nada tão sobrecarregado quanto esse "nada" na vida das mulheres. Se ele pudesse ser "desembrulhado" seria um infindável rosário de atividades repetitivas e cansativas, pois, enquanto todos dormem, pessoas que não fazem "nada" estão a mil, e ai de todos se fôssemos fazer jus à frase ingrata. Se não tivéssemos tantas coisas a nos ocupar, poderíamos cuidar de nossos interesses, acabar de ler aquele livro interessante e, quem sabe, até escrever um?
     Livro que começaria assim:
     Pela habilidade de achar objetos perdidos, sou muito solicitada e embora perdendo minutos preciosos ao procurá-los, faço-o com prazer, já que costumo me sair bem em tais empreitadas.
     Ou assim:
     Davi, um menininho de oito anos, reclama choramingando:
     - Todo dia você me manda tomar banho?
Essa ordem não foi dada por sua mãe que, para se livrar do estresse provocado pelas crianças, se ofereceu a ir à padaria, quando eu estava de saída para comprar pão. E ela já me perguntou como vou viajar e deixá-la com seus quatro filhos, justamente na época de seu TPM.
     Acho que nunca tive TPM, pois essa manifestação de mau humor foi rotulada há pouco tempo. Em compensação, estou há dois anos, com dor na cervical. Fui a vários ortopedistas, fiz massagem, acumpuntura, fisioterapia e, como ninguém conseguiu debelá-la, marquei consulta com um bam-bam-bam de Brasília. O problema é que sempre a secretária desmarca. Na última vez, meu marido atendeu o telefone.
     - É aquele médico que brinca de marcar consulta?
     Depois, a secretária me ligou: - A senhora não retornou a ligação...
     - Para que o faria, se a consulta foi desmarcada?
     - Para remarcá-la!
     - Obrigada, desisti desse médico.
     Marquei, então, um horário com um osteopata, mas, como irei ao Rio, onde tenho um primo ortopedista, resolvi aderir ao costume da desmarcação.
     Quase na hora do compromisso médico, saio do banho para telefonar e nossa secretária Adélia, a quem havia instruído a não confirmar a consulta, me conta que haviam ligado do consultório, informando que o osteopata estava doente.  - Que bom! Dissera ela, logo se explicando que não era porque ele estava doente, e sim porque eu não poderia mesmo ir.
     E assim foi confirmada a vontade de Deus de que o meu primo se encarregasse do problema. Sua secretária contou-me que as pacientes costumam lhe perguntar como ele é: velho, moço, bonito ou feio.
     Ela, inteligentemente, não revela que se trata do seu marido e diz:
     - Entre, depois a senhora me fala o que achou. E elas saem encantadas: - É um pão, vou investir nele!

     E ele me disse brincando que sua mulher respondeu: - Pena que é gay!

     O que não é nada engraçado é o fato de minha neta ficar vomitando no Corolla que cobiço comprar. Sim, porque o Xsara foi Filha Casada quem nos vendeu e agora, se quisesse fazer o mesmo com o carro automático com um som maravilhoso, eu me candidataria.
     - Filha, a cada vômito o carro se desvaloriza em mil reais.
     - Mãe, vou trocar o estofamento de couro por um novinho e ele vai se valorizar.
     - Você quer dizer que ele vai parar de se desvalorizar.

     Estava eu ocupada a digitar estas linhas, quando Davi veio me perguntar se havia me dito qual era sua senha do gmail.
     Ah, bom, se com oito anos já se começa a esquecer senhas, o esquecimento não é apanágio da minha idade. Mas, não vou anotar mais nada mesmo e vou viver "on"line", para registrar as hilaridades diárias, como Filha Caçula que levanta, embora demore um pouco a acordar.
     - Filha, fomos convidados a comer um strogonoff.
     - Hein, feijoada, onde?
     Ai, Jesus... Já as primeiras palavras da neta de seis anos ao acordar são:
     - Cadê o laptop da mamãe?
     Eu jamais empresto o meu. Filha Casada caiu nesse erro e deu no que deu: Filhos completamente viciados em telinhas. Como eles não herdaram isso de mim, minha "praia"sendo bem outra, fui ao cardiologista levar-lhe um convite para o lançamento do meu último livro:
     - Vim aqui mais para entregar-lhe esse convite, porque não vou morrer tão cedo. Se Deus quisesse que eu fosse agora, teria aproveitado a oportunidade do acidente do qual fui vítima há alguns dias: Vinha eu calmamente, quando senti o impacto de uma bala de canhão atingindo o meu carro de frente, o air-bag estourando e queimando o braço. Conforme uma testemunha, o pneu do carro de um rapaz vindo em direção contrária à minha havia estourado, ele perdera o controle, o carro rodou e veio com tudo em cima de mim.
     Deus, obrigada por estar viva.    
     Na saída do consultório, conversando enquanto esperava o elevador, depois de ter comentado que não ia ao cardiologista há três anos e que era surpreendente como o tempo estava passando rápido, uma senhora disse-me que tinha um amigo na UnB que lhe dissera que a aceleração do tempo era real e não impressão nossa.
     - Um amigo na UNB? (Era o gancho que faltava) Pois, na Feira de Livros aqui pertinho, ao lado do estande  da Livraria da Universidade, há o da Editora Thesaurus, onde está o meu novo livro.
     - Você é escritora?
     - Sou (admitindo-o pela primeira vez, pois prefiro dizer que publiquei alguns livros).
     - E o livro é bom?
     - Ótimo!
     - Você tem autoestima. Gostei. Vou lá.
     Foi? Foi nada. Não sei o que sucede com esse povo. Diz que vai, não vai. Diz que gosta de ler, mas, não compra livros...
     Deixa pra lá. Enquanto isso, me divirto com a astúcia do meu neto. Quando comentei com ele que, embora o ventilador do teto não estivesse ligado, sua sombra se movimentava, comentou:
     - Vó, é a luz da tv que provoca a sombra do ventilador e, quando há alguma mudança de luminosidade, ela se reflete nessa sombra.
     - Ah, bom, pensei que estivesse vendo fantasmas.


                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Continuação de "Beijos na Alma" - Angela Delgado

                                                    “Graças a Deus a primavera chegou!
                                                      Graças a Deus cheguei à primavera.
                                                      E eu dizendo trivialidades! “
                                                                          Mafalda

E quem não as diz é Mia Couto: “O bom do caminho é haver volta.
Para ida sem vinda basta o tempo.”
 Em tempos idos, minha mãe acordava o “primeiro time”, que eram seus filhos maiores, em horários diversos e bem próximos: 7h15, 7h30 e por aí iam.
  Hoje, esquecendo- me de que não havia aula, entrei no quarto dos netos. Davi, logo acorda e diz: “É sábado, vó!” ao que João, que nos outros dias demora uma eternidade para se levantar, rápido liga a televisão.
     – É sábado? Voltem a dormir!
     Voltaram? Claro que não. E aprendi como fazê-los sair da cama na segunda- feira, dia em que acenderei a luz e pedirei desculpas:     Esqueci que hoje é sábado!   
    

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Beijos na alma - Angela Delgado

Meu pai faleceu há um ano e, quando li no livro do Mia Couto, Um rio chamado tempo, sobre a ausente permanência de quem morreu, concordei inteiramente com ele: “Morto amado nunca mais para de morrer.” A beleza do livro enche meu coração. Por isso, fecho-o e vou dormir com a frase:
“... em todo o lado, mesmo no invisível, há uma porta.”
No dia seguinte, repreendo um dos meus netos por algum excesso e ele, mudando o refrão “Vovó é malvadinha!”, retruca, todo charmoso: - Você não me ama mais..
Em minha caminhada, fui colocando, de casa em casa, o convite/participação/divulgação de meu novo livro. É tão gostoso "esperar pela festa", aliás, esta é a festa: deparar-me com as pessoas saindo para o trabalho, perguntar se elas gostam de ler; ouvir um "gosto muito" ou "sou formada em Letras" e, então, entregar o convite com um sorriso; receber outro e seguir adiante com meu Ipod e minha festa interior, ouvindo Bach, Offenbach, Cesaria Evora, Louis Armstrong, Oswaldo Montenegro, Paulo Conte etc.
Espero que a pessoa pense que pelo meu esforço em subir ladeiras mereço sua presença na Feira de Livros...

“Qual o melhor filme de terror?” Essa pergunta insistente de um Jornal (!) é, para mim, tão incongruente quanto seria a enquete “A qual nazista você concederia o prêmio Nobel da paz?”. Levei realmente um susto ao ver a palavra “melhor” associada ao terror. Mas, talvez o Jornal quisesse dizer “menos pior”, porém, como diz um dos meus irmãos, a minoria não deve gastar energia lutando contra a maioria. É frustrante, mas, de consciência limpa, vou tratar de coisas mais valiosas.
Ia, porque acabo de receber um e-mail do Jornal pedindo o meu endereço para que o
protesto seja encaminhado aos editores. Ai, em que fui me meter. Tomara que não apedrejem a minha casa...
E é nela que ao ler em um prefácio, que “crônica é tudo aquilo que for manchete na alma do cronista”, chego à conclusão de que meus livros são todos de crônicas.
A de hoje começa com a constatação de que, depois do maremoto na vida de Filha Mais Velha que a trouxe para minha casa com armas e bagagens, incluindo seus quatro filhos, começo a não me incomodar mais com uma boneca no chão, um casaco jogado na cama, um sapato no meio do caminho, uma mochila no sofá, uma sandália embaixo da mesa, um lego aqui, um lego lá, roupas emboladas, um boné perdido e um ioiô na sala. Isso após seis meses abaixando, levantando, guardando e colocando no lugar tudo o que sempre teima em ficar fora dele, como brinquedos, roupas e sapatos.
Tenho ou tinha a estranha mania de deixar sapatos unidos (sou romântica até nisso?) com solas para baixo... Estou curada dessa neurose e não ligo mais se estão um aqui outro lá, virados de lado ou de sola pra cima, confirmando a teoria de que a terceira idade é a da liberação.
Afinal de contas passei anos da minha vida dormindo com tudo no lugar e todos os lápis das crianças apontados. Tudo a seu tempo e como aconselha meu guru e irmão mais velho: devo me restringir agora aos prazeres, à leitura e à música, que são beijos em minha alma.
Um sério problema na cervical talvez tenha algo a ver com essa minha recente indiferença à bagunça generalizada.
Falando em indiferença ou ingratidão ou qualquer sentimento negativo, fui levada, por psiquiatras alheios, a achar que o grande vilão da humanidade é o Adão. Sim porque a culpa é sempre dos pais. Antes, porém, de serem considerados vilões, devem ser vistos como vítimas, já que tendo um dia sido filhos, não têm culpa de nada.
Ressalvando-se casos em que pais têm culpa no cartório, como aqueles que espancam seus filhos, a maioria tem boa-vontade e faz o que pode por sua prole.