domingo, 26 de junho de 2011

Um pouco do Chico

Quando você conseguir superar
graves problemas de relacionamento,
não se detenha na lembrança dos momentos difíceis,
mas na alegria de haver atravessado
mais essa prova em sua vida.
 Quando sair de um longo tratamento de saúde,
não pense no sofrimento
que foi necessário enfrentar,
mas na bênção de Deus
que permitiu a cura.
 Leve na sua memória, para o resto da vida,
as coisas boas que surgiram nas dificuldades.
Elas serão uma prova de sua capacidade,
e lhe darão confiança
diante de qualquer obstáculo.
 Uns queriam um emprego melhor;
outros, só um emprego.
Uns queriam uma refeição mais farta;
outros, só uma refeição.
Uns queriam uma vida mais amena;
outros, apenas viver.
Uns queriam pais mais esclarecidos;
outros, ter pais.
 Uns queriam ter olhos claros;
outros, enxergar.
Uns queriam ter voz bonita;
outros, falar.
Uns queriam silêncio;
outros, ouvir.
Uns queriam sapato novo;
outros, ter pés.
 Uns queriam um carro;
outros, andar.
Uns queriam o supérfluo;
outros, apenas o necessário.
 Há dois tipos de sabedoria:
a inferior e a superior.
 A sabedoria inferior é dada pelo quanto uma pessoa sabe
e a superior é dada pelo quanto ela tem consciência de que não sabe.
Tenha a sabedoria superior.
Seja um eterno aprendiz na escola da vida.
 A sabedoria superior tolera;
a inferior, julga;
a superior, alivia;
a inferior, culpa;
a superior, perdoa;
a inferior, condena.
Tem coisas que o coração só fala
para quem sabe escutar!

                      Chico Xavier

sábado, 25 de junho de 2011

Balada da Neve

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho…

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…
Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho…

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança…

E descalcinhos, doridos…
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!…

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!…
Porque padecem assim?!…

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
e cai no meu coração.


Augusto Gil

sexta-feira, 24 de junho de 2011

XXVII - Um périplo com Alegria

                                 
Com o invariável início das falas do historiador português que nos acompanhou na viagem, começo:
Ora bom,  o português de cá, fala “difrente”, e, assim, em cada dez palavras, diz apenas seis, como constatou Marcos Linhares, poeta e jornalista hilário que nos fazia rir e chorar.
Portanto, e essa foi a expressão que mais ouvimos em Portugal, os portugueses, como se o bacalhau não lhes bastasse, comem muitas sílabas.
- Ai é?
- É verdad.
Lisboa (Hotel Sana Malhoa) ; Porto (Hotel Nova Galé); Vila Nova de Gaia; Sintra; Viana do Castelo; Batalha; Arouca (Hotel São Pedro), no distrito de Viseu; Aldeia do Espinheiro e seu escondido restaurante “Casa no Campo”, de onde quase voltamos de barriga vazia, se não fosse a esperteza de Mena Filomena em descobrir a entrada; Braga; Alcobaça no distrito de Leiria; Valença; Ponte Vedra, Rianxo e Santiago de Compostela (Hotel Husa Santiago Apostol), estas três já na Galícia, estado autônomo da Espanha (que acredito ser como nossos filhos, que ao atingirem a maioridade, não deixam de ser nossa prole) são encantadoras, assim como nossos novos amigos Concha, Otília e Xurxo, o poeta gatinho que me pagou um delicioso café con leche, além de ter me dado dicas de músicas da Galícia, de Portugal e de Angola, de onde, acidentalmente, descobri mais tarde, Garda, uma cantora/compositora fenomenal. Se a viagem não tivesse valido por tantas outras coisas, só por essa pérola, já teria valido a pena. Tanto é assim que me consolo de ter perdido a máquina fotográfica na viagem , o que me fez ir à Fnac, para outra comprar e, de quebra, adquirir o seu CD. Falando na máquina, como todos sabem, nada se cria e ela se transformou em uma máquina de fazer café, que ganhei em um sorteio na Academia do Bacalhau, não necessariamente nessa ordem. Moral da história: não se regozije muito ao ganhar alguma coisa, pois, logo depois poderá perder algo valioso. Se bem que, no meu caso, a perda resultou em outro achado.

O grupo com o qual viajei “endoideceu meu coração, e agora o que é que eu faço”, cantarolava o português do CD do motorista, o bem humorado e sarado Nelson (tive que lhe traduzir essa expressão), que, por sua vez, teve que explicar aos desantenados brasileiros o significado de “vusviu” (ele vos viu). Além disso, ofereceu-nos, imagine, Champagne e um bolo enorme e divino, em comemoração ao aniversário do Rivera e da “Cília” (Cecília, no português de lá). Não digo que queria ter a receita, pois assim os portugueses pensam que não a quero mais. Digo então que “gostava” de tê-la, mas aí nós é que pensamos se tratar de coisa do passado. Ora bom, estamos, mais do que nunca, precisando do dicionário Lá & Cá, do Roldão Simas Filho, marido da “Cília”, geminiana como eu, e que me fez ótima companhia, na ausência de Filomena Caixeta de Abreu, que na cidade do Porto ficou. Uma pena, e cruel seria lhe contar o que perdeu.
       Como por exemplo, as sessões de terapia em nossos trajetos por Portugal afora. As paisagens se sucediam enquanto nos revezávamos ao microfone. Alguns extrovertidos e de excelente memória, recitavam versos, contavam fatos pitorescos e abriam seus corações. O resultado foi uma torrente de risos e lágrimas, inesquecível para o Comendador Alegria a bordo, e para todos nós que vivenciamos esta viagem.  
Carlos Magno, o belo médico, levou um de seus dez livros Canção da Água e seu charmoso chapéu e me fará outro igual comprar, para dele me lembrar. Como se eu pudesse, um dia, me esquecer de seus olhos tão azuis, ai Jesus! Impressionou a "guitarrista"(no Brasil, violonista) e, quiçá, a baiana que, dizem, não nasce, mas estréia, e não sei se arretada é.
João Alfredo Sinício, o “pão” de outrora e o “gato “ de hoje, nos divertiu com inúmeros trocadilhos: Qual a “difrença” entre o padre e o bule. O primeiro tem muita fé, e o bule é pra “pô” café. Qual é o tour mais caro do mundo? O turbilhão. Completo, então, que o tour “Viagem às Nascentes Portuguesas” foi bem caro, pois foi um turbilhão de emoções, e gostaria  que Sinício, no lugar do seu excelente livro que levou para Portugal Nova Era Consciencial, lá distribuído,  tivesse, para aliviar meu coração, colocado em sua mala na volta, as saudades que lá mesmo já se faziam presentes.
Aqui me lembro de Rui Rasquillo, em seu maravilhoso almoço que nos foi "ofrecido" em Aljubarrota, questionando sua mulher, a perfeita anfitriã Maria Manuel, sobre saudades, preferindo ele as memórias. Mas, estas as temos de coisas boas e más, enquanto que saudades são só de bons momentos, como a viagem em solidariedade a Portugal. 



José Jerônimo Ribeiro Rivera, que, para alguns, anônimo era, mudou de domicílio: mora agora em nossos corações. Levou na viagem sua tradução Poesia Francesa - Pequena Antologia Bilíngue, e já, já, vou ao Google copiar a linda “Balada da neve” de Augusto Gil, recitada por ele de cor.
Não sei se, como disse Fernando Pessoa, também citado de cor, pelo Rivera, “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente", mas, nessa viagem, era só esticar o braço e esbarrávamos em poetas que diziam, a respeito de um neto de padeiro, que “a massa de seu saber fora aquecida no forno de seu amor”. Palavras de Marcos Linhares sobre Rivera. Amém.
Santiago Naud, nosso Google ambulante de risonha fisionomia, querido por todos, além de ter levado na bagagem seus 47 poemas lusitanos, proferia consistentes depoimentos, enquanto pervagávamos por belas paisagens.
 Roseli F. de Arruda sorri com olhos rasgados e falou, em Portugal como em São José do Rio Preto, com uma das vozes mais maviosas que já ouvi, de seu livro Mathyê, o senhor das quatro direções.
Sua filha Amanda tem bem a quem puxar.
André, marido de Roseli, como todo gordinho, é bem simpático e dono de um belo rosto. Nele meiguice não falta.
Edilene Fernandes levou seu livro A palavra do presidente. Bonita como é, deve ter sido colírio para os olhos dos poetas.
Outra pantera, a Ana Lívia, fez parte do grupo assim como Isadora, trazida por sua avó de belos olhos verdes, a professora Wuilna que da neta não descuida, e disso entendo eu: neto é páreo duro com a excursão às nascentes portuguesas.
Hermínio Oliveira, o artista da fotografia, de iguais olhos coloridos, espírito sagaz, sempre gentil, atento e sensível, revelando suas fotos in loco e carinhosamente com elas nos agraciando, obrigada!
O jornalista e historiador Manuel Mendes e sua terna Lúcia, uma gracinha de casal. Ele, do alto de seus 86 anos, com receio de se fazer esperar, era um dos primeiros a chegar. Levou em sua bagagem Meu Testemunho de Brasília.
Carlos Jorge Mota, o culto historiador, prestimoso inda por cima, que as costas, um dia, nos deu, acho que magoado. Esses brasileiros não têm jeito. Antes de lhe agradecer por tudo o que fez por nós, quero lhe reafirmar que as piadas sobre portugueses e a imitação de seu falar não são feitos por maldade, mas pela graça da coisa. Nada temos contra nossos antepassados. Apenas contra os argentinos. Todo brasileiro que pisar o solo lusitano sairá dele amando Portugal e quererá a ele retornar. Como meu pai que, estando um dia na cidade do Porto, escreveu:
"Jamais se me apagará da memória o espetáculo que tive diante dos olhos, quando pude mitigar aquela estranha saudade de uma cidade que visitava pela primeira vez..."
Adriana Kortland, grande contista, autora de Almagesto, que, apesar de ter comprado a passagem, não pôde viajar conosco, devido ao AVC sofrido por sua mãe, mas que, querida como é, esteve presente em nossos espíritos e foi constantemente lembrada.
 Last but not least" , Victor Alegria, nosso impagável comandante-em-chefe, de quem sorvemos as palavras, a figura mais incrível e divertida que todos profundamente amamos, a quem agradeço imensamente por esta inesquecível viagem, a melhor de todas de minha vida. Marcos Linhares, por outras palavras, disse que após ter convivido com Victor Alegria, compreendeu a razão de ser da grandiosidade de seu filho Tagore. Faço minhas suas palavras, pois o meu querido Tagore é de ouro. Tem também a quem puxar. Como sua mãe Dona Ísis é igualmente competente, sua herança e legado sanguíneo e espiritual é dos melhores.
Tive que terminar esse relato, pois já passava da meia noite e cedo era preciso acordar, do contrário, o culto e prestativo professor e historiador Armando Cristóvão Ribeiro, com sua pele lisinha notada por  Mena Filomena, armaria um fuzuê, mandando tudo para os “Ares e Mares”, revista que juntamente com Roseli e Edilene, será literalmente lançada aos ares e mares e  distribuída em oito países, ou seja, para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP, da qual fazem parte Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e Timor Leste.
Mas, preciso contar ainda sobre nosso encontro em Lisboa com o simpático Diretor-Geral da Biblioteca Nacional de Portugal, Dr.Jorge Couto, que nos recebeu na imensa mesa oval do salão nobre, onde cada um falou dos livros que ali deixaríamos, sobre o prazer de ter ouvido um violonista português, que nos encantou com suas músicas na UNICEPE, e sobre o privilégio de assistir a um concerto de órgão, dado exclusivamente para nós, em um convento em Arouca, cujo único convidado alheio ao grupo fora um cantor lírico, com recital agendado em Barcelona, vindo expressamente de Lisboa, para assistir ao evento. Após a alimentação espiritual, ainda no convento serviram-nos um magnífico jantar disposto em uma enorme mesa de pedra, com direito a lareira acesa.






Quando, no rodízio da vida, esta nos ofertar, em sua bandeja de tristezas e alegrias ou na montanha russa de altos e baixos, de vacas gordas e magras, arouquesas ou não, façam o que farei, fechem seus olhos e transportem-se para um certo ônibus recheado de poetas.
Termino, dizendo que, por lutar contra a tendência do tempo, cada vez mais veloz, em que se decretou, e muita gente crê nisto, que a véspera já caducou, a antevéspera é história e imemorial o ocorrido no ano passado, resolvi retirar da estante o livro que levei em minha bagagem, Ópera do Poeta e do Bárbaro, vertido para o francês, em uma tentativa de torná-lo atraente aos francófonos. Afinal, 1976, data de sua primeira e restrita publicação, embora pertença ao século passado, não está tão longe assim, justamente pela velocidade do tempo. Foi outro dia mesmo...



sábado, 4 de junho de 2011

XXV

                          DOIS DEDOS DE PROSA, QUATRO DE POESIA

1h45 e o relógio não anda. Tanta coisa pra fazer amanhã, aliás, hoje...
Como se eu estivesse no volante, atrás de alguém dirigindo devagar, ou em um táxi, quando pedimos, intimamente ou não, ao motorista que acelere, quero combinar com o Tempo, que passe mais rápido, só até o dia clarear. A idéia é que nas horas mortas, em que o mundo dorme e o trânsito está livre, ele pise no acelerador. Com o nascer do dia, seu filho, ele não só pode como deve desacelerar, para não atropelar ninguém, muito menos as horas, suas filhas, apreciando-as na justa medida, possibilitando a todos aproveitar o dia a contento.
Minha dentista disse que sou diferente. Acho que comecei a ficar desse jeito, anos atrás, quando me acostumei a ver um jornal produzido por meus irmãos, colado na parede, ao longo da escada. E, agora de repente, estou  ansiosa para colocar o meu no corredor.
 Por isso quero negociar com o Tempo, senhor das eras: Passe mais rápido, durante à noite, e, com a chegada do sol e após reduzir a marcha, aprecie, com vagar, os afazeres, as produções, o burburinho de tanta gente que se apressa, que não para, que ri, ama, se arrepende, se exercita, trabalha, acontece, pensa, agita, compõe, computa dor, chora, influencia, permanece, canta, escreve, viaja e lê, apesar das palavras iconoclastas de Fernando Pessoa, que, em um poema, começa, inacreditavelmente, dizendo: "Ai, que prazer não cumprir um dever. Ter um livro para para ler e não o fazer! Ler é maçada, estudar é nada..." (sic!) E assim termina: " E mais do que isso é Jesus Cristo, que não sabia nada de finanças, nem consta que tivesse biblioteca." 
Ora, Gutenberg nasceu em 1400 ! Data venia aos inúmeros admiradores do célebre escritor, Fernando Pessoa morreu com 47 anos, portanto, não tinha idade para ter Alzheimer... E não estou procurando briga, apenas, dei de cara no jornal com a barbaridade acima. Data venia novamente, prefiro mil vezes Saramago.
No meu corredor atual, haverá desabafo consignado no Correio por um pai de família, que escreveu contra a legalização das drogas e contra a frase ”Só quem é burro não muda de opinião”, dizendo que prefere morrer burro a ver seus filhos vagando qual zumbis em busca de saciar o vício que lhes rouba a vida, transformando-os, aí sim, em idiotas que não têm sequer vontade própria.(sic)
Voltando ao mural, vai haver horizonte, fonte, a pedra do caminho, vai.
Vai haver notícia, sugestão, lembrança, afetos, e protestos outros, vai.
Vai haver dois dedos de prosa e quatro de poesia, vai.

Vou também viajar. Voltarei a escrever em Portugal, ao som de um Fado, com o coração desafogado como o tráfego noturno.
           E para não dizerem que não falei de poesia,
           "... O mundo para ele era um monte de pão e para mim um monte de idéias.
            Bárbaro tinha pão que sobrasse e meia dúzia de idéias.
            Eu tinha idéias que sobrassem e meia dúzia de pães.
            Era fatal nosso choque." Pio Ottoni Júnior em Ópera do Poeta e do Bárbaro

quinta-feira, 2 de junho de 2011

De muito procurar

Marina Colasanti

            Aquele homem caminhava sempre de cabeça baixa. Por tristeza, não. Por atenção. Era um homem à procura. À procura de tudo o que os outros deixassem cair inadvertidamente, uma moeda, uma conta de colar, um botão de madrepérola, uma chave, a fivela de um sapato, um brinco frouxo, um anel largo demais.
            Recolhia, e ia pondo nos bolsos. Tão fundos e pesados, que pareciam ancorá-lo à terra. Tão inchados, que davam contornos de gordo à sua magra silhueta.
            Silencioso e discreto, sem nunca encarar quem quer que fosse, os olhos sempre voltados para o chão, o homem passava pelas ruas despercebido, como se invisível. Cruzasse duas ou três vezes diante da padaria, não se lembraria o padeiro de tê-lo visto, nem lhe endereçaria a palavra. Sequer ladravam os cães, quando se aproximava das casas.
            Mas aquele homem que não era visto, via longe. Entre as pedras do calçamento, as rodas das carroças, os cascos dos cavalos e os pés das pessoas que passavam indiferentes, ele era capaz de catar dois elos de uma correntinha partida, sorrindo secreto como se tivesse colhido uma fruta.
            À noite, no cômodo que era toda a sua moradia, revirava os bolsos sobre a mesa e, debruçado sobre seu tesouro espalhado, colhia com a ponta dos dedos uma ou outra mínima coisa, para que à luz da vela ganhasse brilho e vida. Com isso, fazia-se companhia. E a cabeça só se punha para trás quando, afinal, a deitava no travesseiro.
            Estava justamente deitando-se, na noite em que bateram à porta. Acendeu a vela. Era um moço.
            Teria por acaso encontrado a sua chave? Perguntou. Morava sozinho, não podia voltar para casa sem ela.
            Eu... esquivou-se o homem. O senhor, sim, insistiu o moço acrescentando que ele próprio já havia vasculhado as ruas inutilmente.
            Mas quem disse... resmungou o homem, segurando a porta com o pé para impedir a entrada do outro.
            Foi a velha da esquina que se faz de cega, insistiu o jovem sem empurrar, diz que o senhor enxerga por dois.
            O homem abriu a porta.
            Entraram. Chaves havia muitas sobre a mesa. Mas não era nenhuma daquelas. O homem então meteu as mãos nos bolsos, remexeu, tirou uma pedrinha vermelha, um prego, três chaves. Eram parecidas, o moço levou as três, devolveria as duas que não fossem suas.
            Passados dias bateram à porta. O homem abriu, pensando fosse o moço. Era uma senhora.
            Um moço me disse... começou ela. Havia perdido o botão de prata da gola e o moço lhe havia garantido que o homem saberia encontrá-lo. Devolveu as duas chaves do outro. Saiu levando seu botão na palma da mão.
            Bateram à porta várias vezes nos dias que se seguiram. Pouco a pouco se espalhava a fama do homem. Pouco a pouco se esvaziava a mesa dos seus haveres.
            Soprava um vento quente, giravam folhas no ar, naquele fim de tarde, nem bem outono, em que a mulher veio. Não bateu à porta, encontrou-a aberta. Na soleira, o homem rastreava as juntas dos paralelepípedos. Seu olhar esbarrou na ponta delicada do sapato, na barra da saia. E manteve-se baixo.
            Perdi o juízo, murmurou ela com voz abafada, por favor, me ajude.
            Assim pela primeira vez, o homem passou a procurar alguma coisa que não sabia como fosse. E para reconhecê-la, caso desse com ela, levava consigo a mulher.
            Saíam com a primeira luz. Ele trancando a porta, ela já a esperá-lo na rua. E sem levantar a cabeça – não fosse passar inadvertidamente pelo juízo perdido – o homem começava a percorrer rua após rua.
            Mas a mulher não estava afeita a abaixar a cabeça. E andando, o homem percebia de repente que os passos dela já não batiam ao seu lado, que seu som se afastava em outra direção. Então parava, e sem erguer o olhar, deixava-se guiar pelo taque-taque dos saltos, até encontrar à sua frente a ponta delicada dos sapatos e recomeçar, junto deles, a busca.
            Taque, taque hoje, taque-taque amanhã, aquela estranha dupla começou a percorrer caminhos que o homem nunca havia trilhado. Quem procura objetos perdidos vai pelas ruas movimentadas, onde as pessoas se esbarram, onde a pressa leva à distração, ruas onde vozes, rinchar de rodas, bater de pés, relinchos e chamados se fundem e ondeiam. Mas a mulher que andava com a cabeça para o alto ia onde pudesse ver árvores e pássaros e largos pedaços de céu, onde houvesse panos estendidos no varal. Aos poucos, mudavam os sons, chegavam ao homem latidos, cacarejar de galinhas.
            O olhar que tudo sabia achar não parecia mais tão atento. O que procurar afinal entre fios de grama senão formigas e besouros? Os bolsos pendiam vazios. O homem distraía-se. Um caracol, uma poça d’água prendiam sua atenção, e o vento lhe fazia cócegas. Metia o pé na pegada achada na lama, como se brincasse.
            Taque-taque, conduziam-no os pés pequenos dia após dia. Taque-taque crescia aquele som no coração do homem.
            Achei! Exclamou afinal. E a mulher sobressaltou-se. Achei! Repetiu ele triunfalmente. Mas não era o que haviam combinado procurar. Na grama, colhida agora entre dois dedos, o homem havia encontrado a primeira violeta da primavera. E quando levantou a cabeça e endireitou o corpo para oferecê-la a ela, o homem soube que ele também acabava de perder o juízo.
           


           

quarta-feira, 1 de junho de 2011

XXIV

                                              Teletransporte

 Gostaria que Martha Medeiros se encarnasse em mim, para poder comentar a visão de um casal caminhando, comoventemente, de mãos dadas. Isso sempre me afeta. Será que ele está querendo mostrar à mulherada da vizinhança ser romântico até debaixo d’água e, no caso, sob o sol? Ou será que estão no segundo, até terceiro casamento?
Bem, de qualquer modo, isso não funcionaria comigo, sempre com as mãos ocupadas com uma sacola com alguma roupa para a costureira, outra de abacates para ela e para o jornaleiro, quando não é um sapato para o sapateiro, uma carta para o correio, ainda tendo que administrar o fone de ouvido que, de vez em quando, sai do lugar.
Mais adiante, um menininho, também com a mão ocupada, segurando seu cachorrinho pela coleira, começa a gritar, quando o cãozinho resolve latir, partindo para cima de um “pitbull”, conseguindo se libertar da mão que o retinha!
Após um Deus me acuda, foram salvos pela mão da babá. São as vantagens de mãos disponíveis.
Na realidade, não tenho do que me queixar e sim agradecer pelo lindo dia; pelo lanche caprichado, que o marido de uma longa e única viagem preparou com carinho; pela mãe e filhos saudáveis; pela família de poetas que tenho; pelos netos maravilhosos; pela viagem que farei na semana que vem etc.
E o dia terminou com comentários sobre a disposição de minha cunhada pegando o metrô e depois um trem, para ver o show do Paul McCartney e o consequente espanto de nossos trinetos ao constatarem no futuro, que, não apenas eu levando uma carta para o correio e a Martha Medeiros, ainda usando talão de cheques, éramos dinossauros, mas que o éramos todos, pois não nos teletransportávamos!
Só que não vai dar certo:
Primeiro porque desempregará milhões de pessoas ligadas ao transporte público, que só vigorará no transporte de cargas e, depois, pensem em bandidos se teletransportando diretamente para a sua sala. Teremos que ter cercas elétricas dentro de nossas casas; ao redor de nós, talvez? Ativaremos raios paralisantes sobre intrusos? E a colisão de rotas, o IPVA sendo substituído pelo ITT?
É melhor ir dormir, e quer saber? Não somos tão dinossauros assim. Nos sonhos, já nos teletransportamos...