sábado, 31 de março de 2012

Abandonando o navio



   Em substituição ao capitão-mor, Quérida e eu, promovidas a “Capitãs”, permanecemos a bordo até a água nos atingir a cintura, como bem disse a Locomotiva Arli. Mesmo com a comoção da ausência, os esquecimentos de Quérida nos fazia rir muito, antes e depois da distribuição de aparelhos eletrodomésticos; demais utensílios de cozinha;roupas (mudamos até de estilo, com o visual à la Maricota); móveis e toda a parefernália de uma casa.                       Restringimo-nos ao estritamente necessário, até que sentadas em dois banquinhos, utilizando garfo de plástico e bebendo café em copo de geleia, pulamos fora depois de compartilharmos a última fatia de pão integral e dar adeus à Xeflera que lá ficou,com suas folhas bem limpinhas e brilhantes,sob os braços do Cristo Redentor, à espera do novo inquilino, a quem desejo felicidades.

   Era hora de começar a missa em memória de um mês do falecimento de nossa mãe, Maria.
   - Padre, ao final posso dizer umas palavrinhas?
   - Pode, mas seja breve, pois em seguida haverá outra missa. 
   E assim fiz, sem pensar muito no que estava falando, para não me emocionar e deixar de dizer o que precisava ser dito:

   Em nome de todos os irmãos,agradeço ao Vianney, pelo carinho, dedicação e cuidados que teve, primeiramente com nosso pai,que viveu quase um século e, concomitante e posteriormente, o zelo e o desvelo prodigalizados, até o fim, à nossa mãe, sem em momento algum queixar-se de cansaço ou sobrecarga de responsabilidade.

    Muito obrigada, irmão querido!


quarta-feira, 21 de março de 2012


                                Sol e mar

     Levadas por nossa “locomotiva” carioca, a cunhada Arli, fomos ao Instituto Moreira Salles, para a exposição Tutto Fellini, aliás, bem interessante. Tendo um tempinho até o início da sessão em que veríamos La Dolce Vita, fomos ao bar, onde repartimos uma mesa com um simpático casal e sua filha.
        Depois de o filme começado, vejo que alguém quer entrar na nossa fila, mas não, a intenção era apenas entregar uma carteira esquecida na mesa do bar e achada por sua filhinha de oito anos...
        Sorte da Quérida, pois nos achar dentro do cinema escuro só foi tarefa fácil, porque eu havia escolhido os três assentos da ponta, em frente à porta da entrada.
        Chegando em casa, Quérida deu pela falta de um dos cartões e passa a noite toda  procurando-o, revirando bolsa, carteira e malas.
        De manhã, apiedo-me dela e digo-lhe para ficar dormindo, que eu faria o café e iria à praia sozinha. 
     – Achou o cartão?
     – Estava colado no outro...
        Sabia! Como o celular, ele se tornara invisível por uns tempos, característica dos pertences de certa faixa etária.
        Estirada e relaxada na areia, me deliciando com o barulho do mar, de repente tenho um sobressalto: a água no fogão! ? Quérida, pelo celular, me tranqüiliza. Não há nada ligado. E assim vamos sofrendo à toa, hoje foi isso, ontem o carro que não sabia se havia sido devidamente trancado, e que nunca fora deixado destrancado, amanhã o que é que acontecerá para pagarmos por tanto diversão e risadas?
        A sensação gostosa do sol em minha pele e o deleite produzido pelo ruído das ondas se quebrando são interrompidos novamente por um telefonema da Tim, me propondo troca de operadora.  
        Não troco de celular, de empregada e nem de marido, vou agora me dar ao trabalho de mudar de operadora? E sob esse céu imensamente azul? Era só o que me faltava!
       Um absurdo desse só é igualado ao que me disse meu irmão, enquanto desmontávamos o apartamento de minha mãe: 
     - Jogue fora esses livros.
     - Um dicionário de inglês e outro de português... Tá doido? É mais fácil eu aceitar a proposta da Tim.


         Fomos a Friburgo e, na hora de voltar, Quérida com sua mania de perder a carteira começa a procurá-la. Após revirar novamente "n" vezes bolsa, mala e a casa; liga para o motorista do táxi (que havia nos dado o seu cartão); indaga na padaria, onde havíamos tomado um lanche e telefona para os "Achados e Perdidos" da Rodoviária. Mas, a carteira deve ter vindo na frente e pego o ônibus anterior, pois a encontramos bem descansada na gaveta do apartamento do Rio...
     Nos próximos programas, a primeira providência será confiscarmos sua carteira.
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quarta-feira, 14 de março de 2012


Uma releitura da rabada

Humberto Werneck

        No primeiro momento, ela julgou ter ouvido “rabanada” – e estranhou que o marido tivesse posto tanta ênfase numa sugestão caindo de óbvia: cadê a novidade, se no nosso Natal sempre teve rabanada? A proposta não era variar um pouco, driblar a mesmice culinário-natalina? Eu disse rabada, corrigiu o marido, e, vendo a tempestade armar-se no rosto da mulher, tratou de esclarecer: sei que você não gosta de rabada, mas o que estou propondo é outra coisa, é uma... uma releitura da rabada, entende? E enveredou, animado, pela enumeração de ingredientes e procedimentos que haveriam de converter em algo deleitável o que para ela sempre foi inapelavelmente deletável.
        Quem mandou provocar, desafiando-o a dar uma chacoalhada no ramerrão de seus cardápios dezembrinos? Precisava o ano acabar em rabada? Já não bastava a pavorosa noite em que, num restaurante de Aruba, ele desafiou o chef a lhes servir “alguma coisa surpreendente”, coisa essa em que resultou ser uma sopa de iguana, sim, um daqueles lagartões asquerosos que rastejam seu look antediluviano pelo pedregal da ilha caribenha? Para não decepcionar o mestre-cuca, ela enrolou uma desculpa que, desossada, ficaria assim: gostava muito de sopa de iguana, mas não a ponto de tomá-la.
        Ao longo de sua vida conjugal, a coitada tem provado não poucas bizarrias, pois à mesa (mas também na cama, benza Deus!) o marido não se conforma com o trivial, mesmo o variado. Faz tempo que, em todos os terrenos, o companheiro baniu o feijão-com-arroz. E dizer que quando o conheceu ele mal dava conta de distinguir uma alface de uma couve... Ela não sabe se foram as más companhias do escritório – o fato é que em dado momento a esquisitice culinária se insinuou, para ficar, em sua vida de casada. Ciao, bife acebolado, adeus mandioca frita , nunca mais frango com, quiabo. Ela chegou a achar que tivesse batido nele um deslumbramento de nouveau riche gustativo. Mas durou pouco aquela fase em que todo o restaurante se voltava para contemplar, na mesa deles, um desses pratos que pegam fogo e para os quais o acompanhamento mais adequado seria um extintor de incêndio, tão indispensável quanto a ambulância que acompanha certas maioneses de casamento.
        Foi também por essa época que ele fez sua entrada na seara da enologia – a crer na mulher, depois de ter visto na televisão um seriado sobre vinhos no qual Renato Machado, lá pelas tantas, numa cave na região de Champagne, sorve algum daqueles néctares franceses e com ele dá uma bochechada tão judiciosa quanto inolvidável. Se fizer isso na minha presença eu saio por aquela porta, ameaçou ela. Talvez por isso o camarada não tenha progredido muito nos meandros da enologia. O máximo de que era capaz, ironizava a mulher, era informar muito sério, depois de uma discreta bochechada: é tinto!
        Ainda assim, houve uma noitada em que, num restaurante fino, ele derrubou, qual jogador de boliche, meia dúzia de garrafas, felizmente só em sentido figurado, a pretexto de que o conteúdo tinha tal e tal problema. Noitada que resultou ruinosa para as finanças conjugais, pois, sendo outro o parecer do sommelier, a casa o fez pagar pelos vinhos que mandou abrir e não consumiu.
        Com a comida, a coisa é mais séria. De quando em quando, sua imaginação culinária entra em surto. O homem adora cardápios opinativos, desses que anunciam “delicioso peixe levemente puxado em suave molho de...”. Quanto mais rebuscado, mais ele se põe a salivar. Recentemente, encantou-se com umas “Pérolas de Tapioca”. Em outro safári gastronômico, arrastou a mulher para um “Atum Unilateral”, sem saber que chegaria à mesa um prosaico peixe frito de um lado só. Na escolha da sobremesa, guiou-se pelo ouvido: Rolinhos de Gengibre e Rosas. Não estava grande coisa, admitiu- mas que nome! Que nome! A mulher tem como certo que um dia ainda vai ouvi-lo pedindo, como o sujeito afetado da velha piada, “um quarto de porco, mas com janelas para o mar.” Não sem antes passar, neste Natal, por uma rabada. Mas não qualquer uma: uma rabada relida.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Em homenagem à minha mãe, Maria, muito amada, "Para Maria" com Mafalda Arnauth



Maria, Maria

Procuro por Ti

Trago este vazio
E o desejo de dar cor à minha vida
Quero pintar
Esta história que estou a criar
Quero ser mais
Minha grandeza afirmar
Ser poeta, ser cantor, ser o céu
Onde mora tudo o que eu vou ser
Se eu souber ser amor
Maria, Maria
Não sei que aconteceu
Se o mundo ou se fui eu
Enganou-se o amanhã sem piedade
Fecha-se a luz
Sobre as almas da minha idade
Esconde-se o céu
Onde eu quero ser mais verdade
Minha Senhora e minha Mãe
Olha bem por nós
Sem Teu amor
Ficaremos sós.
Maria, Maria
Mãe do silêncio
Mãe da humanidade
Em Teu seio o meu senhor se gerou
E Tu o contemplaste
Cheia de amor e ternura
Teu filho desejado
e por ti muito amado
Minha Senhora e minha Mãe
Ensina-me a amar
E arriscar
 a saber ser maior.

sexta-feira, 2 de março de 2012


     Minha mãe tão amada se foi. Sempre desejei ir antes dela, pois achava que não aguentaria a sua perda.
Mas, aqui estou sobrevivendo, ora chorando, ora rindo e é em homenagem a ela que publico este texto de Eliane Brum:


Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”.  Pensei: “roubaram a velhice”.  As palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia. Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting completo na palavra “velho”. E saio aqui em defesa do “velho” – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos.
Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável.
A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas atrás, em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte. E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha entendido, porque afirmou: “Você não quer morrer”. E eu insisti na resposta: “Eu quero viver a minha morte”.
Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria. Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum.  Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena.



  • A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa.
Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não consegui localizar: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A vida, portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto? Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor.  Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.
Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua.  O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma.
Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está.  Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.
Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.
Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um livro chamado “O idoso e o mar”?  Não. Como idoso o pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam...”.
Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.
Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40, já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem.  O tal do “espírito jovem”. Envelhecer não é fácil. Longe disso. Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando.  Mas se existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é grande.
Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.
Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar.  É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.
Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.
Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)