quinta-feira, 26 de abril de 2012

XLIV


     Na dúvida se vocês, Luci Afonso, Alexandra, Arli, Aninha, Ana Helena, Quérida, Fafá, Nathália, Anna, Roseli Arruda, Edilene, Lúcia Enout, Claudinha, Beth, Adriana e demais mulheres que correm com os lobos, teriam tempo de acatar a minha sugestão de “subir à cobertura para apreciar a beleza do nascer da aurora” ou, em outras palavras, acessar o blog www.palavrasabracadas.blogspot.com , entreguei já na bandeja duas crônicas da Cinthia Kriemler, para driblar o esquecimento; a real falta de tempo de minhas queridas atarefadas ou suas prioridades inadiáveis. Mas, agora, acho que agucei suficientemente a curiosidade intelectual de vocês, que poderão beber diretamente na fonte...
         É que há dias em que acordamos totalmente inocentes, sem a menor ideia do que está vindo em nossa direção. De repente, André, uma criança de quatro anos guarda todos os brinquedos na casa da vovó, deixando-a encantada com a arrumação do ambiente (existe sempre uma primeira vez); um adolescente correndo em um pátio de colégio te dá um violento encontrão, te derruba e você, que é magra, cai de costas no chão de concreto, no maior tombo de sua vida; você que plantou flores, colhe alguns abacaxis, que, podendo ser doces, tem também sua parte espinhenta; na tela do computador, uma escritora abre a cortina de sua linda alma, e, também de bandeja, com certeza de prata, ali se revela. Nem só bandeja é. É uma baixela inteira. Quando se pensava que tudo já fora dito brotam palavras e mais palavras pela frente, e sai de baixo (ou pelo contrário), que uma enxurrada de poesia, de sensibilidade e fascínio nos é dada de presente, a nós que estávamos tristes.
         “Benditos os que semeiam” lembrou-me o Canto “Glória aos que cantaram” inserido em “Ópera do Poeta e do Bárbaro”:

“Poetas,
 jamais vos caleis,
porque um artista mudo
é um Jeová triste que resolveu nada criar.
Não vos caleis, porque os séculos são bandos de                                                                                           mastodontes,

que galopam pelo universo, esmigalhando pátrias e                                                                                                   impérios,
fulminando raças e continentes, estraçalhando as                                                                                                  civilizações.

Na carnificina universal do Tempo, só vós ficais de pé.
A cavalgada dos milênios é a reversão ao nada,
Mas vós sois, e somente vós, a vacina contra o nada!”

 E o que se segue é o canto “Mas quantos não puderam cantar”:
 ... “Dante escreveu porque pôde,
 mas a Terra está repleta de artistas,
 dos quais só um milhão consegue cantar,
 pois os problemas da vida trancam os caminhos à Arte.
           
 Por isso,
 muitos não puderam cantar:
 sentiram fome desde a primeira infância,
 a vida lhes solicitou os braços e não a inspiração.
 apresentou-lhes balcões, vassouras e caminhões, não pianos.
 suas mãos se calejaram à enxada, não sabem manobrar a pena.

 Suas almas se crestaram em disciplinas, não sabem ter caminhos seus.
Ou muitas vezes, suas vozes se embruteceram demais,
nas ruas, pregoando loterias e jornais.  
            
Não cantaram:
A vida lhes impõe roteiros,
suas almas nasceram harpas, nasceram pincéis,
mas a vida lhes ensinou mil coisas e não lhes ensinou
onde dorme, num piano ou violino, o acorde em dó maior,
e lhes negou um imponderável qualquer, que lhes dissesse
que pincéis e tintas não são Hebraico
ou equações irracionais.”

E por aí vai, querida Cinthia, gentileza gera gentileza e eu tentei-lhe retribuir com um pouco da beleza de um livro.
         Um beijo e um muito obrigada por toda a sua criação artística. Aproveito para estender o agradecimento pela beleza que sai da pena e do coração de Alexandra Rodrigues, de Roseli Arruda e de tantas outras, que, certamente, está vindo em minha direção.




















segunda-feira, 16 de abril de 2012

Benditos os que semeiam - Cinthia Kriemler



No princípio, era só uma terra árdua, de serventia alguma. Uma terra sem promessas, que se negava ao ofício de fazer-se berço.

Havia, no horizonte, um cinza intenso igualando chão e céu. Uma conformação, um abandono, uma sina cansada de abortar vontades. Uma esperança esterilizada a pontapés e tapas, para que não se atrevesse a vingar pela gota de um esperma traiçoeiro.

E nem semeadura, nem germinação, nem colheita aconteciam àquela terra árdua. Era tudo... um nada.

Mas, um dia, aquela terra seca contorceu-se.

Alguém a penetrava em sussurros, em cócegas dedilhadas. Alguém a revolvia, e a umedecia, e a obrigava a raízes que se agarravam às suas fendas grossas e fundas, e a conduzia a um gozo morno e aconchegante. Alguém não desistia dela.

E veio, enfim, o verde, tímido tapete exposto à superfície para sentir o vento. E veio, enfim, a chuva, que atraída por tanta cor de primavera deitou-se em dengos com aquele mato cheiroso.  E a dor da ceifa verteu-se em descanso, e depois em novo coito, e em seguida em novo arranque, alimentando ciclos que só se rompem pela colheita da morte.

Seria assim também com os homens — esse solo árido que ora se acomoda às alienações do fácil, ora segue prisioneiro de dominações não consentidas —, criaturas impedidas da fertilidade pelos que não compartilham claridade.

Seria exatamente assim com os homens, não fossem os que insistem em semear pensamentos, não fossem os que persistem em aguar reflexões, não fossem os que não abrem mão de colher fruto, flor ou mato verde.

Seria assim...

Não fossem esses que, benditos, semeiam a palavra. Que, benditos, regam a luz. Que, benditos, comungam crescimento.

Cinthia Kriemler

domingo, 15 de abril de 2012

O mato dos cachorros

 
Não sou acostumada a caminhadas. Deveria, porque sou gorda. Mas desde que era magra (once upon a time...) nunca gostei de caminhar. Bom, houve uma época em que eu, subitamente, me animei a dar um passo atrás do outro, durante uma hora ou mais. Fiz isso por quase um ano, mas descobri, mais tarde, que havia um motivo para tanta animação. Um motivo que tinha nome, endereço e uma careca charmosíssima. Perdeu a graça. Detesto quando tomo consciência de que estou fazendo as coisas por motivação externa. Acho o cúmulo querer emagrecer, ou cortar o cabelo, ou fazer as unhas, ou me matar na massagem para agradar alguém que não seja eu mesma.
Mas essa rebeldia custou-me a silhueta. Virei gorda por vários motivos e, dentre eles, pelo fato de não aceitar imposições pessoais, sociais, ou seja lá de que “ais”. Quando eu “tenho” que fazer, não faço. Faço quando quero, quando gosto e porque tenho vontade. Mesmo que, no caso do exercício, essa vontade seja rara, rara.
No entanto, um mês atrás, adotei um cachorrinho. Eu tinha dois, mas o mais velho morreu e o mais novo entrou em depressão. Nunca pensei que cachorro tivesse depressão, mas tem. Igual à de gente. Resultado? Adotei o Lucas. Já veio com nome, dois anos e meio e... e com o hábito bem arraigado de só fazer as suas necessidades no matinho. Resultado? É preciso descer com ele três vezes por dia e caminhar — sim, caminhar! — até que ele encontre o mato perfeito, o tufo de grama que pisca pra ele e diz: “Oi, fique à vontade!”.
Uma das três vezes por dia sou eu que desço com ele. Aliás, que desço com os dois, Lucas e Dude, porque aonde vai um rabo-abanante, vai o outro. E não adianta tentar ficar parada no lugar, ao lado do gramado. Eles me puxam e correm e lá vou atrás deles, parecendo uma pipa sem rabiola. Enfim, pelo menos por 15 ou 20 minutos eu agora ando, todos os dias. E ainda tem o “abaixa e cata” com o saquinho, a única parte da brincadeira que me causa dor, porque a hérnia de disco e a artrose beliscam na mesma hora (que assunto, hein?). O fato é que, mesmo sem querer, acabo por obrigar meu corpo a esse exercício engraçado.
Toda essa história comprida pra falar das árvores que descobri ao lado do meu prédio. Por causa do Lucas. E do Dude.
São árvores de tamanho médio, que formam uma espécie de círculo, abraçando um pequeno jardim improvisado por um morador. É que, sendo um dos lugares prediletos dos cachorros, para lá eles me puxaram, uns dias atrás, fazendo com que eu me deparasse com uma paisagem inusitada.
Visto de fora, o grupo de poucas árvores passa despercebido ao olhar rotineiro. Mas, por dentro, a gente parece estar num daqueles jardins particulares cheios de vento cheiroso, de vozes sussurradas, de segredos invisíveis. A cor do céu, que passa entremeio às árvores, é diferente. O ruído externo chega mais abafado aos ouvidos e o cheiro de Dama da Noite começando a se abrir em início de noite ainda não é forte demais. Ali, a gente se torna invisível, isolado, e tudo é possível. Possível enxergar os ninhos de quatro ou cinco passarinhos de cauda comprida que voam rasteiros perguntando: ”Ei, quem é você?”; descobrir as pequenas frutas que amadurecem na impassibilidade de alguns galhos; observar os raios que se infiltram por entre as árvores, ora de sol, ora de lua (quando o passeio é noturno), ou mesmo sentir os pingos de chuva mais grossos que se empenham em atravessar a barreira de folhas.
Nada que eu tivesse visto antes. Nada que eu soubesse estar ali, apesar do tanto de anos que moro neste mesmo lugar. Nada que existisse no meu dia antes da chegada do Lucas, cão, dois anos e meio, que me obriga a caminhar ao menos uma vez por dia e que me puxa, feliz, para o centro desse agora "nosso" pequeno mundo secreto.
É só mais um mato, que sempre esteve ali, ao lado da janela da minha sala, virando cotidiano a cada amanhecer. O mato dos cachorros. Meu mato.

sábado, 14 de abril de 2012


Poesia Matemática

Às folhas tantas 
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia 
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide, 
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida 
paralela à dela
até que se encontraram 
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação 
traçando 
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas senoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas. 
E enfim resolveram se casar
constituir um lar, 
mais que um lar, 
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade 
integral e diferencial. 
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes 
até aquele dia 
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu 
O Máximo Divisor Comum
frequentador de círculos concêntricos,
viciosos. 
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade. 
Era o triângulo, 
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração, 
a mais ordinária. 
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser 
moralidade
como aliás em qualquer 
sociedade.

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sexta-feira, 13 de abril de 2012

XLIII


         No trajeto Leme- Humaitá (ainda no Rio, para quem não conhece esses bairros), a Van para em um ponto e tenta arrebanhar passageiros, apregoando: Rocinha! Quérida me olha assustada, e, embora querendo transmitir ao cobrador, diz a mim, em tom galhofeiro: eu não vou para nenhuma favela, sou prima dos Guinle, proprietários daquele palacete ali...
        O passageiro do banco da frente, de olhos lindos verdes-azulados, não para de se virar e indagar ao companheiro ,  – Tá ligado?
        Quando ele se levanta, Quérida me pergunta se reparei no corpo sarado...
         - Você tá ligada, hein? Respondo eu, e assim continuam a se divertir na Cidade Maravilhosa, na companhia uma da outra, irmãs amigas e bem-humoradas que somos.
         De volta a Brasília, vou pegar o jornal. Vejo um homem passando, de braços cruzados. Atitude dos homens quando estão com frio. Nos, mulheres, lançamos mão de casaco, cachecol, bota...
     Depois, ao sol, pensando em minha mãe, sinto algo roçar em mim.
     – Mãe, a senhora está bem? Me dê um sinal! Vejo então uma luz verde.
     –Verde, mãe?! A senhora sempre gostou da cor azul!
     Vai ver nessa dimensão não há livre arbítrio...

         Falando nela, estava bem contrariada por ter perdido meus óculos, comprados em Portugal, mas achei-os, após minha ordem incontornável de “vou achar agora!”. Na realidade, estava procurando um CD também perdido.
         Essa é uma das grandes alegrias da vida depois de certa idade. Vivemos achando alguma coisa de suma importância!

         E agora terei que perder urgentemente algum objeto, para encontrar o CD com a música Zorba´s dance tocada pelo David Garret! Meu neto, em plena adolescência, adora Beethoven, graças à Nona Sinfonia interpretada por esse exímio violinista.
          Acabei dormindo com tudo sob controle. Óculos reintegrados ao patrimônio afetivo e o CD extraviado ao alcance dos meus ouvidos, sem nem mesmo ter perdido mais nada. Por enquanto...


segunda-feira, 9 de abril de 2012




NÃO ME DIGA QUE AINDA NÃO É PÁSCOA

Alexandra Rodrigues


        Acordei hoje com um fiozinho de vontade de antecipar a Páscoa. Não aquela dos ovos pendurados no teto do supermercado em apetitosos cachos de chocolate. Nem tão pouco a do Cristo ensanguentado preso dentro das igrejas decoradas de lágrima e silêncio. Nada disso. O fio de ternura que escorre hoje dentro de mim pede-me um cântico de aleluia que corra solto pelos verdes campos da alma. Pede-me que desate o nó que prende o sectarismo ao preconceito religioso e que me entregue, sem rótulo, à transcendência. Que reverencie a vida ao conviver com o meu dessemelhante no altar do cotidiano.

       Esse fio de ternura que insiste em costurar o dia de hoje pede-me que desenjaule os deuses dos altares em que foram confinados. E que me ajoelhe diante do sagrado que é a vida à minha volta, feita de gente e de todas as coisas vivas. Pede-me que revisite as mitologias, que escute os mestres de todas as culturas, aqueles que se identificam com as forças do Cosmos. E que sopram sabedoria ao ouvido da nossa interioridade.Esses que, mais do que pastores, são barqueiros.

        Entre no barco - diz-me a voz da Ternura - deixe-se conduzir pela Vida sem medos ou ressentimentos. Não se deixe morrer de tantas mortes. Não se deixe morrer da morte do amor, da morte da confiança, da morte da sabedoria.

          O que verdadeiramente temo não é essa morte que encerra a nossa passagem, mas a que jaz dentro de nós enquanto estamos vivos. Aquela que nos rouba a anima. A que enterramos no cemitério do eu quando nos tornamos desconfiados, cínicos, distantes, previsíveis, quando a vida deixa de ser um passeio aventureiro de coração aberto e se torna uma excursão com roteiro fechado aos lugares de sempre.

        Sabe, o que eu queria mesmo era brincar de morrer e ressuscitar todos os dias como criança sapeca que se esconde e inesperadamente reaparece com uma risada,que brinca de vivo-morto, que vive a ressurreição como uma força tremendamente lúdica que restaura a vitalidade.

            - Veja, sou eu mesma, vá, ponha a sua mão no meu peito, sentiu? Essa é a cicatriz de quando brincamos de espada e a sua acertou em cheio no meu peito. Vamos brincar de novo? Eu caio no chão e finjo de morrer, depois você me dá a sua mão e cuida do meu machucado. E eu vivo de novo e continuamos o jogo de morrer-viver.

       É essa ressurreição que me move e comove. 

        Não me diga que pregaram nossas dores na cruz. Não me diga que derrubaram árvores para construir templos. Não me diga que é dentro deles que preciso rezar pela vida. Sabe, eu preciso mesmo é de reflorestamento interno, de me deixar penetrar pelo mistério das coisas, de escutar o coral das vozes do mundo cantando aleluia na vastidão do dia. 

         Por favor, não me diga que ainda não é Páscoa.