No livro Crime e Castigo, publicado em 1866, considerado o grande romance de todos os tempos e um clássico universal escrito pelo russo Fiódor Dostoievski, o autor relata o sofrimento vivido por Raskólnikov, um jovem estudante de direito que se vê condenado a suportar uma irremediável miséria. Raskólnikov, atormentado por pensamentos sombrios, divide os indivíduos em ordinários, que são aqueles que aprendem a disciplina de obedecer sem questionar e os extraordinários, que são os detentores do PODER. Como não quer ser incluido na vergonhosa lista dos ordinários, constrói a obsessão de que, cometendo um crime (qualquer crime), prova para si mesmo e para a sociedade que é um homem extraordinário. Para concretizar o seu plano, mata uma senhora indefesa com golpes de machado e, em seguida, a irmã da vítima, testemunha ocular do crime. Está feito: agora ele é UM HOMEM EXTRAORDINÁRIO.
No dia 24 de janeiro de 2010, a cidade de São José do Rio Preto, Estado de São Paulo, Brasil, amanhece com a notícia de um horripilante desfecho familiar: Nilson de Andrade Justino mata a mulher e as duas filhas menores com golpes de marreta, decapitando-as em seguida. Segundo as palavras da mãe do autor do crime, a mulher e as filhas eram pessoas boníssimas que amavam Nilson, incondicionalmente, e como há algum tempo ele apresentava distúrbios emocionais e mentais, cuidavam dele como se cuidassem de um bebê. “O que deu na tua cabeça, meu filho?” pergunta a mãe (do criminoso) tão triste como uma pétala depois da flor, e ele responde com olhos desérticos e a docilidade dos anjos caídos: “Não deu nada mãe”.
Nilson, assim como Raskólnikov, jamais conseguirá explicar porque alguns sonhos enlouquecem ou em qual ponto minúsculo da vida perdeu o controle da própria mente e a razão, cedendo lugar a uma solitária doença da psique, gerou em seu íntimo uma pessoa estranha, que foi chegando mansamente sem ser notada e que estava adormecida em algum lugar da sua personalidade.
Na realidade, há muitos seres dentro de um mesmo ser, todos querendo ser extraordinários, todos querendo pensar nossos pensamentos, todos querendo poder.
Apesar da roda dinâmica da vida ter girado 144 anos de 1866 a 2010, apesar da passagem de Einstein pelos corredores do mundo quântico, da história ter gerado duas grandes guerras, do progresso ter levado o homem a obter o conhecimento do universo e das células tronco; a FOME das almas não mudou. Os nossos instintos inferiores sustentam séculos e o homem, criado à semelhança do Inefável, enfrenta e luta constantemente contra emoções perturbadoras. Os indivíduos ORDINÁRIOS, mesmo com as suas terras espirituais saqueadas ou inteiramente queimadas quer seja pelas relações de trabalho, pelo convívio social ou familiar, são capazes, num momento de loucura (ou lucidez?), de erguer machados ou marretas provando para o mundo o quanto são EXTRAORDINÁRIOS.
Assim, de tempos em tempos, a cada nova tragédia pública, a sociedade brasileira questiona horrorizada: “O que deu na tua cabeça, meu filho?”. ” Não deu nada mãe.”
A mitologia dos povos, as religiões, a ciência, a política, a justiça, o Estado, etc, procuram desvendar a razão das irracionalidades, e as respostas, a partir do ponto de vista de cada um, são portadoras de verdades incontestáveis, mas NADA consegue revelar COMO INFLAMAM AS CHAMAS DOS NOSSOS POTENTADOS INTERNOS.
Inseridos neste contexto paradoxal entre o bem e o mal, nossas mentes custam a CRESCER e passamos grande período da vida como inocentes, jovens e brincalhões Ícaros, com necessidade de voar cada vez mais alto, de amar e ser amados. Frágeis crianças de passagem por este planeta, esquecemos que as COISAS MAIS INSIGNIFICANTES e pequeninas têm às vezes maior importância e geralmente por minúcias, nossas asas de cera derretem.
Nilsons e Raskólnikovs estão inseridos em nossos lares, dormem em nossas camas, são nossos amigos, cônjuges e filhos, mas acima de tudo, habitam sorrateiramente nossas mentes e estão adormecidos nas camadas delicadas do espírito.
Sim, a agressividade mora nos subterrâneos de cada um de nós, faz parte do nosso íntimo, mesmo assim, NÃO É A FORÇA DOMINANTE da alma humana.
Talvez por possuirmos dentes miúdos e frágeis, preparados para sorrisos e boca pequena, talhada para o beijo, não tenhamos aparelhagem suficiente para agirmos como feras e sim como irmãos, pois, dentre todos os INSTINTOS humanos, o soberano, tanto para ordinários quanto extraordinários, indiscutivelmente, é o amor.
Roseli Arruda