sexta-feira, 29 de junho de 2012

Decreto - Marcelo ottoni de Menezes


 Nesta noite de outono,

travestida de verão,

palavras descem as escadas
de meus interiores
e desabam, exaustas,
na primeira folha de papel.
Não controlo
o movimento
de meus dedos.
Expulso meus medos.
Proclamo a anarquia
a rainha de meus dias
e decreto liberdade perpétua
para todos os sonhos.




                                                         

terça-feira, 19 de junho de 2012

O Transportador - Cinthia Kriemler

 
    Por profissão me foi dada a travessia. Quando pirralho, fazia o transporte de pequenas coisas. Levava os ovos para a vó preparar seus quitutes, depois equilibrava doces e salgados num carrinho de mão e saía para entregar as guloseimas fresquinhas no armazém da cidade. Ia num pé, voltava noutro, trazendo farinha, arroz, feijão e batata, aconchegados no mesmo carrinho rangedor.
    Nessa época, também ajudava o pai a entregar latões de leite na feirinha, encarregava-me de fazer chegar a merenda dos manos no pastinho, levava o milho das galinhas antes que elas se unissem num cocoricó histérico, e buscava os remédios da vó toda semana. Quando as suas pernas melhoravam das dores, dava pra aviar a receita só por quinzena, mas eu não me importava com a andança e nem sabia ainda que essa lida constante era ensinamento para as viagens de mais tarde.
   Logo que me aprumei um pouco mais, lá pelos 14 anos, passei a entregar bilhetes dos manos e de gente mais velha para as mocinhas das redondezas. Às vezes, transportava as palavras na boca ou na cabeça, jorrando os versos e os recadinhos com a ajuda da voz imberbe e da memória. De vez em quando, se a frase era de fazer corar, ou se era para desmanchar compromisso, a entrega era dentro do ouvido. Nesses casos, ficava por minha conta transportar de volta os tapas, os olhares furiosos e os choramingos.
   Assim, atravessei os anos verdes e, adulto, dei ao ir e vir uma serventia de maior monta: firmei-me na profissão de Transportador de Existências.
  Um Transportador de Existências não carrega móveis, nem malas, nem quaisquer objetos. Só o vivente e seu quinhão de problemas, alegrias, emoções, vazios… Saúde e doença; sonho e pesadelo; ganho e perda.
  Animais são permitidos. A morte, também. No entanto, para que o Transportador não seja enganado sobre carga tão funesta, é imperioso à Ceifadora declarar-se antecipadamente: se de corpos, a conduzir para a morte o vivente; se de almas, a matar em vida, sem levar o corpo. A conversa precisa se dar durante a travessia, para orientar o Transportador.
  No começo, eu lotava com famílias inteiras a carroça que o pai me deixou. Mas a confusão tumultuava a viagem. Alhos e bugalhos misturados, sacudindo aqui e acolá? Briga! O sonho da moça que buscava a capital, a tristeza da outra que se fazia acompanhar pela desonra, a imaginação sem freio das crianças, o lamento do velho, o desengano do desempregado, a luxúria do amante. Tudo engalfinhado num chãozinho de carroça!
  A coisa ficou mesmo feia quando um moribundo e uma prenha se encontraram. A Ceifadora de Corpos que viajava com ele resolveu disputar importância com a Parição que acompanhava a moça.
 — O Transportador vai rumar primeiro para o meu destino! Eu preciso entregar o velho ao seu repouso final! — decidiu a Ceifadora.
 — Uma ova que vai! Tem mais pressa o chegar do que o ir-se! — replicou a Parição.
     E a baderna só cessou quando a mulher gemeu tão alto que ao meu susto se somaram o júbilo da Parição e a rendição da Ceifadora: a iminência do parto tinha decidido a querela.
    Depois desse apuro, passei a transportar uma existência por vez. Apesar de o tempo encurtar com a decisão, não era mais possível permitir que certos destinos se cruzassem. Carregar um a um era mais justo e mais prudente.
  Da carroça passei para uma motoneta usada. Desastre! As pilhas de resmungos e de suspiros e de gargalhadas iam penduradas nas laterais do banco do passageiro, batendo no pneu recauchutado e vaticinando um acidente que, felizmente, nunca ocorreu porque a lentidão da maquineta impedia grandes riscos.
  Tentei ainda um barco, mas o rio e a travessia pertenciam à Ceifadora de Corpos, e não me apetecia pelejar por território tão sagrado. Ainda mais com quem!
  O veículo chegou-me via fatalidade, por meio de um viajante cujas pernas doentes e arroxeadas me lembraram, no instante em que bati os olhos nelas, as pernas da vó. No hospital, quando parei para despejar suas dores, gemidos e febres, pensei que nunca mais o veria. Mas, dias depois, recebi de presente do sujeito nada mais nada menos que uma caminhonete confortável, com o seguinte bilhete:
 “Minhas pernas se foram, mas eu sobrevivi. Segundo os médicos, porque o Transportador me conduziu a tempo. Em agradecimento, envio minha caminhonete, a quem chamo de ‘veículo’. É sua, agora, porque para mim não tem mais uso”.
   Não me fiz de rogado. O veículo era grande, cabia de um tudo. Eu não ia mais precisar carregar só a metade da bagagem dos viventes, nem me aborrecer convencendo-os a deixar para trás um meio fardo. Deitar fora as piores emoções, como medos e angústias, e subir a bordo as sensações mais frugais ou divertidas nem sempre era visto com bons olhos pelo proprietário da existência, por demais acostumado à companhia dos martírios.
  Mas mesmo grande, o veículo enfrentou seus percalços. Certa feita, acomodei uma mulher recém-separada que fugia da própria sina. Suas memórias, a dor da separação, a depressão aplacada por pílulas, o coração partido e um cachorrinho irritado — que insistia em ficar aos pés da dona — não eram nada se comparados aos mais de cinco mil relatos de um diário que ela havia escrito durante os 15 anos de casamento. Acomodar lembranças feitas de letras é um deus nos acuda para qualquer Transportador de Existências!
  Vez ou outra, era apenas uma carta ou um bilhete que me faziam companhia na estrada. Eu tinha que abrir e ler antes de fazer a entrega. Esse combinado me recordava os dias de menino em que eu levava recados cochichados e trazia de volta os tapas das moças coradas. Apanhei um bocado ao longo dos anos…
  O ofício me desgostou de verdade em duas transportações: os viventes eram meu pai e minha mãe, se retirando deste mundo. Nessas duas despedidas, retardei a entrega. Contudo, não me cabia impedir as viagens, somente cumprir, sem burlas, o transporte. Essa lição aprendi cedo, ainda nas primeiras travessias. Com dó de um jovem a quem a Ceifadora de Corpos acompanhava, decidi reconduzi-lo para casa. Subi os olhos até o espelho retrovisor para preparar o retorno. Foi quando, estarrecido, vi que a estrada atrás de mim tinha sumido, dando lugar a um deserto de crateras e troncos retorcidos! E quanto mais eu prosseguia, tendo à frente um pavimento firme e preservado, mais meus olhos encontravam um rastro de destruição em tudo o que ficava para trás. Percebi, depois de poucas vezes, que só acontecia da estrada apodrecer atrás de mim quando a única bagagem do vivente era uma das Ceifadoras, a de corpos ou a de almas.
                                                                              ***
  Hoje, não me procurou passageiro. Tenho só uma encomenda, um recado a entregar. A claridade me faz companhia e o caminho está vazio. Enquanto prossigo, abro a folha dobrada sobre o banco ao lado. No papel desmesurado, um imperativo irreplicável sela o meu destino: “Transporta-te!”.
  Meus olhos buscam correndo o espelho interno. Não há esperança. No reflexo retrovertido, cumprimentam-me a estrada desolada e a Ceifadora que veio por mim.
  Mas qual delas veio…? Qual delas?!

sábado, 9 de junho de 2012


Trechos de Vamos a calentar el sol  de José Mauro de Vasconcelos

“... - Si ese sol de Dios es tan lindo, imagínate el otro.
  -   Que otro sol? No conozco más que éste.
  -    Hablo de otro mayor: el que nace en el corazón de cualquier hombre. El sol de nuestras esperanzas. El que calentamos en el pecho para entibiar también nuestros sueños.
Quedé maravillado.
   - También eres poeta?
   -   No, solo que me di cuenta antes que tu de la importancia de mi sol.
   -   Como de “mi sol”?
   -    El tuyo, es un sol triste, cercado de lágrimas en vez de lluvia. Un sol que no descubrió todo su poder y toda su fuerza. Que todavía no embelleció todos sus momentos.
   -   Qué debo hacer?
   -   Poca cosa. Solamente querer. Necesitas abrir las ventanas del alma y dejar entrar la música. Es necesario regarlo todo con música…”
  
Depois de uma das diabruras de Zezé, ele foi levado à Diretoria do colégio, que lhe passou como castigo a penitência de escrever uma frase mil vezes:

             Tragué en seco. Mil renglones? Mejor sería escribir un libro, una novela, cualquier cosa. Una porquería cualquiera. Pero mil renglones sería ir más allá del Purgatorio. Y aun tenía que dar las gracias al cielo por no haber sido expulsado. Con que cara enfrentaría a mi familia?
               Con todo, La masacre aún no había terminado. Ahora tenía que escogerse la desgraciada frase. Y se decidió que ella sería de mi propia elección. Razoné rápidamente. Pero La sentencia exigía que utilizara algo que no me gustase, para dar mayor volumen al castigo.
    - Vamos, Vasconcelos. La frase?
Entonces pensé en una cosa que me gustaba mucho desde pequeñito. Diría que La detestaba y por lo menos podría escribir algo que amaba:
    - La frase!
    - Esta: - Oyeron del  Ipiranga las márgenes plácidas”... .
Fue un desconcierto general. El Hermano Director levanto las cejas, formando aquel famoso arco negro.
    - Este muchacho está completamente loco! Detesta el propio Himno Nacional?
Para pedir perdón a mi himno predilecto crucé los dedos, presos a mis brazos cruzados.
   - Muy bien. Usted eligió, pero aquí no termina todo. Hermano Joaquim, por favor, escriba em el pizarron.
El Hermano Joaquim se dirigió allí y tomo La tiza (giz).
- Escriba, por favor, Hermano:
- Oyeron del Ipiranga las márgenes plácidas que soy un alumno ingrato y irresponsable.
      
                                                              ***
Dada (empregada da casa), quien es el vecino de la izquierda?
-   Es un matrimonio solo. Dicen que tiene una hija que estudia en Rio y que v a venir en las otras vacaciones.
-  Y la mujer que vive del otro lado?
-   Ui! Esa es una inglesa con un carácter…!se llama doña Sevéruba.
-   Cómo?
-    Es un nombre muy difícil, y como la mucama no sabe pronunciarse bien la llama Sevéruba.
-    Lancé una carcajada.
-    Eso no es nombre de gente, pero es muy divertido!
Dada me avisó.
-    No vayas para el lado de ella, porque ni siquiera deja que su empleada coma aunque sea una fruta de su huerta.
Sonreí y pregunté de improviso:
-    Te gustan las guayabas Dada? Las guayabas rojas como la sangre?
-     Son las que más me gustan.
-     Entonces espera.
Levanté unas tejas y le mostré media docena de guayabas.
-     Prueba una. Son muy sabrosas.
-     Como las conseguiste? Aquí en la quinta no hay de éstas.
   En la casa de doña Sevéruba.
-    Te las dio ella?
Agrandó los ojos al preguntarlo.
-    Qué va a dar! Mira, todas ellas tienen un agujerito (buraquinho).
-     Hechos por algún bicho?
Como cada vez entendía menos, le expliqué.
-     Tomé una vara larga (longa), clavé en las puntas un clavo bien afilado, derribé al suelo las guayabas. Después las ensarté (trespassei) en el clavo y las fui subiendo con cuidado. 
                                   
                                                                              **
                Sugiro a leitura de Vamos aquecer o sol, livro comovente até o final. Mas, desde logo aviso que está esgotado. Devemos procurá-lo em algum sebo.






quinta-feira, 7 de junho de 2012

XLVI


     No desmonte do apartamento de minha mãe, herdei um manuscrito/”datiloscrito” datado de 1941. Cansada e com minha mala cheia, olhei um pouco desanimada para aquelas folhas amareladas, embora soubesse da excelência do autor. No entanto, elas humildemente se acomodaram entre objetos de menos valor, e viajaram comigo.




     Após alguns dias, como se eu fosse uma bibliotecária examinando papiros, de máscara, luvas e lupa, começo a folhear A Turminha dos Valentões. Encanto-me logo de cara e resolvo digitá-lo:

      “A sopa estava servida e fumegava quase debaixo dos narizes dos comensais daquele jantar. Mas, num momento em que os três pequenos tomaram suas colheres e se dispuseram a começar a refeição, o Sr. Figueiredo interpelou-os, piscando os olhos e sorrindo misteriosamente:                                                                                                                                                    - Esperem um instante. A sopa está quente e enquanto ela esfria, Mário tem uma notícia séria, importante, importantíssima, a contar a vocês.
            Zequinha, Olavo e Joãozinho instantaneamente largaram as colheres e voltaram seus rostinhos surpresos para o Mário, o simpático moço de Botafogo que os viera visitar àquela noite.
            Mário sorriu, enquanto o Sr. Figueiredo prosseguiu, dirigindo-se aos três pequenos:
            - Uma caixa de bombons para quem adivinhar o que é que Mário vai dizer...
            Mas Zequinha olhou para Olavo, este se virou para Joãozinho e ninguém se aventurou a dar palpite sobre a notícia que Mário tinha a lhes contar.
            E Mário para não encompridar aquela terrível seriedade curiosa começou logo a dar a notícia:
            - É uma coisa muito simples: um acampamento. Mas um acampamento direito: na floresta, junto de uma praia deserta, com tendas, faróis, cornetas, barcos, espingardas e não sei o que mais..."



            Quando vi alusão a uma primeira edição, pesquisei no Google e a encomendei em um sebo, que ma enviou, não em muito melhor estado, mas me auxiliou em alguns trechos, pois as 231 folhas que eu tinha em mãos, quase se desfaziam ao serem viradas.
            O livro se revelou uma delícia . Como grande escritor que era, Pio Ottoni Júnior nos surpreende com um estilo totalmente diverso do profundo Ópera do Poeta e do Bárbaro, onde demonstra uma imensa cultura.  Acho que este, juvenil, agradará a crianças, pré-adolescentes e marmanjos.                                                                                                                                                                            Quem se interessar pela obra, é só me avisar que a envio por e-mail.