segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Tintin - Luis Fernando Veríssimo

Durante alguns anos, o tintim me intrigou. Tintim por tintim: o que queria dizer aquilo? Imaginei que fosse alguma misteriosa medida de outros tempos que sobrevivera ao sistema métrico, como a braça, a légua, etc. Outro mistério era o triz. Qual a exata definição de um triz? É uma subdivisão de tempo ou de espaço. As coisas deixam de acontecer por um triz, por uma fração de segundo ou de milímetro. Mas que fração? O triz deve corresponder a meio tintim, ou o tintim a um décimo de triz. Tanto o tintim quanto o triz pertenceriam ao obscuro mundo do micro. Há quem diga que não existe uma fração mínima de matéria, que tudo pode ser dividido e subdividido. Assim como existe o infinito para fora – isto é, o espaço sem fim, depois que o Universo acaba – existiria o infinito para dentro. A menor fração da menor partícula do último átomo seria formada por dois trizes, e cada triz por dois tintins, e cada tintim por dois trizes, e assim por diante, até a loucura. Descobri, finalmente, o que significa tintim. É verdade que, se tivesse me dado o trabalho de olhar no dicionário mais cedo, minha ignorância não teria durado tanto. Mas o óbvio, às vezes, é a última coisa que nos ocorre. Está no Aurelião. Tintim, vocábulo onomatopaico que evoca o tinido das moedas. Originalmente, portanto, “tintim por tintim” indicava um pagamento feito minuciosamente, moeda por moeda. Isso no tempo em que as moedas, no Brasil, tiniam, ao contrário de hoje, quando são feitas de papelão e se chocam sem ruído. Numa investigação feita hoje da corrupção no país tintim por tintim ficaríamos tinindo sem parar e chegaríamos a uma nova concepção de infinito. Tintim por tintim. A menina muito dada namoraria sim-sim por sim-sim. O gordo incontrolável progrediria pela vida quindim por quindim. O telespectador habitual viveria plim-plim por plim-plim. E você e eu vamos ganhando nosso salário tin por tin (olha aí, a inflação já levou dois tins). Resolvido o mistério do tintim, que não é uma subdivisão nem de tempo nem de matéria resta o triz. O Aurelião não nos ajuda. “Triz”, diz ele, significa por pouco. Sim, mas que pouco? Queremos algarismos, vírgulas, zeros, definições para “triz”. Substantivo feminino. Popular. “Icterícia”. Triz que dizer icterícia. Ou teremos que mudar todas as nossas teorias sobre o Universo ou teremos que mudar de assunto. Acho melhor mudar de assunto. O Universo já tem problemas demais.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Famíia é prato diícil de preparar - Francisco Azevedo

Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema, principalmente no Natal e no Ano Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele fastio. Mas a vida, (azeitona verde no palito) sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes do tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente. E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio aqui me fazer companhia. Como saiu no álbum de retratos? O mais prático e objetivo? A mais sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho? Seja quem for, não fique aí reclamando do gênero e do grau comparativo. Reúna essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida. Não há pressa. Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza. Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar, tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa. Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto, é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na hora que se decide meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada. O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo Aranha; Família à Rossini, Família à Meunière; Família ao Molho Pardo, em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é a Moda da Casa. E cada casa gosta de preparar a famíia a seu jeito. Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada, seriam assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir. Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Caixa de Pandora - Genserico Júnior

Adaptação de um mito grego Prossegue a temporada jornalegórica dos mitos metafóricos, de sentido parabólico, incorporando estilos hiperbólico, onírico, telúrico, lúdico, idílico, etílico, elíptico, poético, caótico e diabólico, com sutil olhar político. Esse palavrório inicial serve tão somente para impressionar e confundir o pobre leitor. Exatamente para isso: não está aqui para esclarecer, mas para obnubilar ainda mais o panorama visto da ponte. Quem quiser que destrinche as chacrinhas, digo, as charadas. Não estamos em época de falar às claras, diante do respeito, e mesmo temor que tenho pelo dito senso comum, que atende também pelo nome de opinião pública, de um público mesmerizado pela não dita e maldita, porque parcial, opinião publicada da grande mídia nacional. Eis a nova história: Brasiliano mantinha no fundo dos seus guardados uma caixinha com aplicações de marchetaria, de estilo árabe, que lhe foi presenteada por um gênio mesopotâmico, quando naquela região babilônica esteve, no início da década dos anos setenta do já saudoso século passado. Caixa que foi bem preservada durante todo esse tempo, mas que lhe reservou incontáveis surpresas, como a seguir contarei, tal como um emocionante e aterrorizante jogo de futebol do meu time no brasileirão deste ano, perigando cair no caldeirão do mundo inferior da segundona. Desde que recebeu a caixinha, ela fora displicentemente colocada no chão, num canto esquecido do seu escritório, sob uma coluna de pastas contendo papéis antigos, e nunca foi aberta. A experiência o aconselhava a não abri-la jamais, dada a sua origem misteriosa. Ninguém sabe o que ali estaria guardado, principalmente por ser um regalo de um gênio (gênio mesmo, daqueles que saem das lâmpadas maravilhosas). Aliás, esse maravilhoso ser o advertira nesse sentido, pois em tal interior teriam sido depositados segredos milenares da oriental sabedoria. Foi a sua arrumadeira, a Jefinha, quem bisbilhotou o misterioso objeto, possivelmente em busca de alguma coisa valiosa: dinheiro, jóias, dólares, euros, para compensar a parca remuneração que recebia do seu patrão, um pensador politicamente correto, mas um mão de vaca dos mais renhidos, coitado, por ter-se transformado em um aposentado senil, desamparado também pela sociedade, especialmente pelo INSS e pelo SUS. Assim posto, era incompatível seu estado de penúria com as grandes expectativas de Jefinha quanto ao conteúdo do receptáculo (para não ficar repetindo caixinha, caixinha...). O fato é que o recipiente (sempre evitando a repetição) enfim foi violentado. De lá saiu o pecado que gera todos os males do mundo: corrupção em todas as suas formas e nuances, e, ainda, todas essas imundícies humanas que fazem parte do jogo dos viventes em seu exercício de convivência, de competição e de poder. Saiu muito mais do que um simples reforço na mesada que tanto interessava a faxineira. Foi então que essa vetusta e rotunda senhora, frustrada com a aparição de tantas desgraças, na esperança de encontrar o perdão ou se vingar do pão-duro de seu patrão, pegou o seu celular, ligou para o 190 e delatou os males que estavam ocorrendo na vizinhança que, segundo ela, teriam origem na abertura daquela caixa misteriosa. Instaurado, o devido inquérito superou em todos os sentidos o que foi denunciado. O assunto foi levado à consideração suprema de uma corte de sábios que analisou a fundo a procedência do acontecido, julgou e condenou Brasiliano e Jefinha às miasmas do cativeiro por um longo período de tempo. Eles ainda penam por lá, não se sabe quando sairão. Mas a desgraça era tanta que transbordou da culpa do Brasiliano e de sua serviçal. A população atônita viu-se surpreendida com tanta sorte de torpeza e impureza que dali continuou saindo. Se possível voltar atrás, talvez fosse melhor nunca ter dado à luz tamanha porcariada, estancando a fonte de todas essas mazelas, pensou Jefinha. Manteria tudo por baixo da tapeçaria. Mas não se pode voltar no tempo. É para frente que se anda. O julgamento das imundícies foi exemplar. Espera-se que os ânimos delituosos se arrefeçam daqui para frente. Contudo, como deveria ser, o exemplo repercutiu para além (ou seria aquém?), do que foi julgado pelos zeuses. A caça às bruxas retrocedeu no tempo e foram julgados, culpados e condenados todos os responsáveis por terríveis delitos cometidos pratrasmente. E assim aconteceu: foi uma enxurrada de desgraças que assomou à superfície do pântano, o que deixou ainda, por muito tempo, a população estupefata, principalmente pelo cheiro que exalava. Mas assim é que deve ser, desde a prática da medicina antiga, quando se recorria às sangrias para extirpar o mal de certas doenças do organismo infectado, até o ápice da psicanálise freudiana que procura o afloramento e a consequente conscientização daquilo que está guardado nos escaninhos escabrosos da mente humana, para se chegar à saúde plena. Se não tanto, minimizar os males das doenças. Assim é também a vida das pessoas, que só melhora quando se perscruta o que vai além das aparências. Muitos são de opinião que se deve tampar a caixa tenebrosa de Pandora do Brasiliano, para se evitarem maiores tumultos. Outros, como eu, consideram ser bem melhor mantê-la aberta, deixando escorrer o sangue ruim ou, alternativamente, deitarmo-nos todos no divã do mestre austríaco. Para tornar exemplar o julgamento, faz-se mister deixar sair toda a podridão contida e chegar às últimas consequências da exumação, porque, caso contrário estaríamos vivendo no vergonhoso reino da indignação seletiva. No dia a dia da convivência entre as pessoas em nossas sociedades atuais, já não se pode mais apelar para a justiça de Zeus, no seu Olimpo, há muito alheio às nossas vicissitudes, para que nos livre de nossos males, amém. Só com a abertura da realidade, evitando-se os exibicionismos gratuitos e distorções mal intencionadas, se consegue um mínimo de correção dessas nossas distorcidas alminhas humanas que, pela observação milenar da espécie, se encontra em pleno processo de transformação, mas ainda muito longe do dia em que iremos galgar o Olimpo, e nos transformarmos também em semideuses, substituindo os zeuses decaídos. Isso jamais acontecerá. Palavra de contador de causos mitológicos revisitados. Afinal, os mitos originais foram criados há milhares de anos e ainda se prestam a adaptações atualizadíssimas. Nada de muito novo acontece que não tenha acontecido desde que o mundo é mundo. O conteúdo é sempre o mesmo, a forma é que muda. Itapoã, Vila Velha (ES). jornalego@terra.com.br www.ecen.com/jornalego