domingo, 27 de janeiro de 2013

Hipnotizando à distância - Angela Delgado


(Depois de transcrever "Sob os escombros" tive vontade de trazer à tona o que escrevi há algum tempo.) 

Filho, seu carma será voltar como mãe. São 3h25 da madrugada. Mães geralmente acordam cedo, mas não tanto. É que ainda não dormi. Estou dialogando com seus tios lá do céu, que supostamente devem nos proteger, e até apelando para os santos.
– Afinal, resolva. Quer que ele chegue são e salvo ou quer que ele chegue logo?                                                                                                                                                        -             –  Não dá para atender dois pedidos de uma vez?  Aladim concede três...                                                                  
   A hora vai passando. Depois de parlamentar em vão com a secretária eletrônica, o jeito é hipnotizar por telepatia.
   – Filho, você está com sono, muito sono, mas cuidado, olhe o poste! Está com uma vontade irresistível de voltar para a casa. Volte...
    4 horas. A via crucis da mulher não é fácil. De dia os afazeres. De madrugada as preocupações.                                                                                                           
– Sinta-se hipnotizado...  (Já é tarde, queimarei um cartucho. Apelarei ao Supremo, visto os santos estarem dormindo.)                                                                                                                                                           –  Filho, onde está seu bom senso?  Sabe o que deixarei de herança? Saúde, bom senso e senso de humor. As três coisas mais importantes desta vida. Tendo isso, o      amor  virá.  Quando já de saída, você me perguntou onde eu estivera a tarde toda – tal pai, tal filho – desculpe-me ter respondido mal. É que fui a tantos lugares que dava nem tempo de enumerá-los. Você já dobrava o corredor. Além da preguiça da longa lista: lavanderia, costureira, cabeleireiro, engarrafamento, Banco, médico, supermercado, sapateiro (curioso, a única profissão onde não há mulheres ainda...). Bem, a gincana do dia-a-dia de uma mulher. Tudo isso em uma tarde. E você, em uma noite? Sentado, jogando; acocorado, trocando pneu; deitado, transando? Se cuida, você vai voltar mulher... Um dia acordando às 5h30, no outro, pregando o olho às cinco. Homens renascerão mulheres. Não é praga. É carma. O rodízio é o nosso consolo. Até porque seria injusto se assim não fosse. Mas, quando você chegar, vou perguntar: 
 –  O que aconteceu, filho? Trouxe ao menos pão quentinho?                                                                                                                                                     –  Ô de casa! Ô lá de cima, estão todos cochilando? Quero dormir! Um dia vocês me dão uma insônia, no outro são os filhos que não chegam. Quousque tandem? Vou já pedir minha aposentadoria de mãe.   
– Varou a noite estudando?                         
 Tem mãe que é cega... Mas acredito no que quero. Nisso puxei à minha mãe, que puxou à dela, que puxou..., que puxou à Eva.          
 E eu que não ia escrever! Para quê, pensei. São dois pensamentos, três linhas. Mas comece, porque sairá igual lenço de cartola de mágico. E aí você não dormiu, mas escreveu. Afinal, não ia dormir mesmo. Qual a mãe que nestes tempos de desenfreada violência o consegue?
  6h30. Arrisquei e levantei-me para ver se, por um acaso, ele já havia chegado. Pasmem. Estava tranquilamente dormindo. 
– Obrigada, quem quer que tenha me escutado. Devo começar o dia, como antigamente, com uma oração. Só espero que o carro também esteja na garagem, sem qualquer escoriação.
 Como veem, trair, roubar e escrever é só começar. 
Águas rolaram desde que hipnotizei Filho Varão pela primeira vez. Orgulhei-me de sua aprovação em vários concursos, mas às vezes ainda hipnotizo ora Filho Varão ora Filha Antropóloga, quando se prolongam fora de casa noite adentro.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Sob os escombros - Cinthia Kriemler

 

Lembrança é vida soterrada. Escondida sob escombros fundos, onde a dor se acomoda em letargia e desistência por um tempo longo demais, curto demais.
Conveniência? Ou seria medo o que nos faz insistir no esquecimento? Sofrer é hábito descuidado. E a gente nem percebe há quanto tempo não sente alegria. Ou paixão. Ou vontade. Ou qualquer coisa que aqueça o coração. Segundos, anos… Quanto tempo se leva sendo triste?
Tornar-se infeliz é bordado lento. É como poeira nas roupas, que se assenta em camadas finas, toldando o viço, deturpando os fios da trama.
Ser triste leva uma vida. A vida que depois a gente esconde na memória. E pensa que esqueceu.

Um fim de tarde magnífico se debruçava sobre o mar de ondas soluçadas. Na areia, um pedaço de jornal que dançava sob a regência da brisa chamou a atenção de Salvatore, exumando memórias inesperadas e dolorosas. Apanhando a folha bailarina enroscada em seus pés, olhou em volta, procurando o passado.

Inês corria pela praia atrás do jornal que lhe fugira das mãos. Segurando o chapéu para que não voasse como as folhas, pareceu a Salvatore, num primeiro e divertido olhar, que tentava arrancar a própria cabeça.
–– Melhor voarem as notícias do que o cérebro! — caçoou ele.
–– Como? –– interpelou-o a moça, séria.
–– Deixe que eu pego o fujão –– disse ele, prosseguindo com a troça.
–– Agradeço, mas dou conta sozinha! –– respondeu a jovem, altiva.
Mas antes que um ou outro alcançasse o jornal, o papel fujão decidiu por vontade própria ir parar aos pés de Salvatore.
–– Agora, não se pode negar: ele gosta de mim –– provocou-a, bem humorado.
Cedendo ao sorriso sedutor daquele homem charmoso, Inês aproximou-se dele, aderindo à brincadeira.
–– Ingrato! Eu o compro, eu lhe faço companhia e ele me abandona assim, pelo primeiro estranho!
–– Onde está o estranho? Vamos, diga-me onde está que eu o ponho daqui para correr! –— disse ele, fingindo procurar ao redor algum intruso.
Em seguida, estendeu a mão forte e apresentou-se a ela:
— Salvatore Rossetti.
–– Inês Santana –– respondeu ela.
As mãos de Maria Inês eram conchas quentes e macias, e o sorriso fez com que ele prestasse a atenção aos dentes benfeitos. Achou-a tão linda que, ainda no cumprimento, sentiu-se tomado por um abobamento incontrolável. Tentou recompor-se, mas era tarde demais. Inês tomou-lhe a vida naquele mesmo instante.
A diferença de idade entre os dois era de dez anos. O que não seria muito, não fosse a vida desregrada que Salvatore levara até conhecê-la, que o tinha transformado em um cínico, um mundano. Sentia-se velho. E tinha medo de magoá-la. No entanto, ali, à beira-mar, Inês se tornou um cais. E ele foi deixando, aos poucos, de ter medo. Do tédio que lhe tomaria os sentimentos quando cessasse o êxtase. De outras carnes que lhe atrairiam o desejo quando findasse nas dela o frescor da mocidade. Da irritação que sentiria, numa manhã de domingo, quando um “por favor”, um “me ajude” o desconcentrasse da escrita dos textos. Esqueceu-se apenas de ter medo de que ela deixasse de amá-lo quando ele voltasse a ser o homem que o habitava antes.
Inês, contudo, o surpreendeu. Cedeu e impôs-se a seus caprichos em igual medida. Agradou-o com carícias; respeitou-o com silêncios. Ela o fez feliz. Como ele nunca tinha sido. Como jamais seria. Mas ele se cansou de ser feliz. Enjoou-se das manhãs, das tardes e das noites perfeitas. Aborreceu-se com a repetição das horas. Desprezou o amor maduro que ela lhe oferecia. E só descobriu que era inverno quando viu a neve em seus próprios cabelos.
Quando partiu, não se voltou uma só vez para saber da tristeza de Inês. Não se despediu dos quadros que acenavam suas tintas enfraquecidas pelos anos, nem revidou ao relógio que marcava “É tarde!”.
 
Memória é vento que se encolhe com frio de si mesmo; tormenta que se guarda para um próximo açoite. É linha que costura na alma, em ponto miúdo, todos os choros, todas as belezas, toda a rebeldia. E repousa, e repousa, e então desperta. Esparrama-se em rajadas. Como um pulmão que expele. Para não sufocar.

A lua fazia desenhos na água. A brisa assediava Salvatore, despenteando-lhe os cabelos ainda fartos. Ele não queria ir embora. Não de novo. Tudo doía, mas ele gostava da dor. Não sentia remorso pelos anos de liberdade e de excessos, e enfrentava o aperto no peito sem sobressaltar-se. Mas a falta das memórias o atormentava. As memórias de Inês. E a certeza de que, sem elas, não haveria consolo a acompanhar-lhe a velhice.
Precisava vasculhar os escombros daquela casa em ruínas e ouvir o murmúrio dos destroços. Até encontrar as lembranças. Seguiria o sorriso de Inês, deixaria que o rastro da vida soterrada lhe indicasse o caminho. Não descansaria. Não permitiria que a solidão o encontrasse distraído, para que se apossasse do que lhe restava a respirar.
–– Salvatore –– escutou, então, a voz tranquila.
Fechou os olhos e entregou-se ao arrepio que o sacudiu por inteiro. Depois, sentiu que Inês o puxava pela mão e deixou que os seus pés a seguissem. Abriu os olhos para reencontrar os quadros em suas cores vívidas, e olhou para o relógio que marcava “Enfim!”.

A gente pensa que esqueceu. A gente acredita que acabou. Então, a vida se levanta das ruínas. Sussurra. Alcança-nos. E tudo está lá, intacto. Para nos levar além.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Um pouquinho mais de Italo Calvino


Para quem não leu Marcovaldo do Italo Calvino, vou transcrever o delicioso trecho do coelho nascido em laboratório, roubado por um paciente pobre que dele se afeiçoou, e depois liberto de sua nova gaiola por seus filhos, que, na ausência do pai, queriam salvá-lo da truculência da mãe, esfaimada, pensando em colocá-lo na panela, e que acabou por se ver  livre no telhado. Detalhe: o coelho havia sido inoculado com os germes de uma horrível doença e disso seus novos proprietários ainda não sabiam.
 

            “Quando fu solo, il coniglio prese a muoversi. Tentò alcuni passi, si guardò intorno, cambiò direzione, si girò, poi a piccoli balzi, a saltelli, prese a andare per i tetti.”

Quando se viu sozinho, o coelho começou a se mexer. Ensaiou alguns passos, olhou ao redor, mudou de rumo, virou-se, depois com pequenos saltos, pôs-se a andar pelos telhados.

            “Demeuré seul, le lapin commença à bouger. Il fit quelques pas, regarda autour de lui, changea de direction, se retourna. Puis, par petits bonds, en sautillant, il se mit à progresser sur les toits. ”

            “Era una besta nata prigionera : il suo desiderio di libertà non aveva larghi orizzonti. Non conosceva altro bene della vita se non il poter stare un po´senza paura. Ecco ora poteva muoversi, senza nullo intorno che gli facesse paura, forse come mai in vita sua.”

            Era um animal que nascera prisioneiro: seu desejo de liberdade não tinha grandes horizontes. O único bem que conhecia da vida era poder ficar algum tempo sem medo. Eis que agora podia se mover, sem nada em volta que lhe amedrontasse, talvez como nunca antes em sua vida.

            “Il était né dans um clapier: son désir de liberté était assez limité. La seule bonne chose qu´il connaissait de la vie, c´était d´être un peu tranquille, sans avoir peur. Maintenant, il pouvait bouger sans que rien autour de lui ne l´effraie, comme il ne l´avait peut-être jamais fait de sa vie. »

            « Il luogo era insolito, ma una chiara idea di cosa fosse e cosa non fosse solito non aveva potuto mai crearsela. E da quando dentro di sé sentiva rodere um male indistinto e misterioso, il mondo intero lo interessava sempre meno. Così andava sui tetti; e i gatti che lo vedevano saltare non capivano chi era e arretravano timorosi.”

O lugar era insólito, mas jamais pudera construir uma clara ideia do que fosse ou não habitual. E desde quando sentira roer dentro de si um mal indistinto e misterioso, o mundo inteiro lhe interessava cada vez menos. Assim, caminhava pelos telhados; e os gatos que o viam pular não atinavam quem era e recuavam temerosos.

            “L´endroit était insolite, mais il n´avait jamis pu se faire une idée précise de se qui était insolite et de ce qui ne l´était pas. Et depuis qu´il sentait qu´un mal imprécis et mystérieux le rongeait, l´univers entier l´intéressait un peu moins chaque jour. Donc, il progressait sur les toits ; et les chats en le voyant sautiller se demandaient qui il était, et se retiraient craintivement. »
           

            A sequência também é uma delícia. Podem comprová-lo se lerem o livro, ou podem me pedir que continue aqui, por mais um pouquinho (rs) minha amostra de como aprender facilmente outras línguas.