segunda-feira, 25 de março de 2013

Segurança - Luis Fernando Veríssimo

O ponto de venda mais forte do condomínio era a sua segurança. Havia as belas casas, os jardins, os playgrounds, as piscinas, mas havia, acima de tudo, segurança. Toda a área era cercada por um muro alto. Havia um portão principal com muitos guardas que controlavam tudo por um circuito fechado de TV. Só entravam no condomínio os proprietários e visitantes devidamente identificados e crachados. Mas os assaltos começaram assim mesmo. Ladrões pulavam os muros e assaltavam as casas. Os condôminos decidiram colocar torres com guardas ao longo do muro alto. Nos quatro lados. As inspeções tornaram-se mais rigorosas no portão de entrada. Agora não só os visitantes eram obrigados a usar crachá. Os proprietários e seus familiares também. Não passava ninguém pelo portão sem se identificar para a guarda. Nem as babás. Nem os bebês. Mas os assaltos continuaram. Decidiram eletrificar os muros. Houve protestos, mas no fim todos concordaram. O mais importante era a segurança. Quem tocasse no fio de alta tensão em cima do muro morreria eletrocutado. Se não morresse, atrairia para o local um batalhão de guardas com ordens de atirar para matar. Mas os assaltos continuaram. Grades nas janelas de todas as casas. Era o jeito. Mesmo se os ladrões ultrapassassem os altos muros, e o fio de alta tensão, e as patrulhas, e os cachorros, e a segunda cerca, de arame farpado, erguida dentro do perímetro, não conseguiriam entrar nas casas. Todas as janelas foram engradadas. Mas os assaltos continuaram. Foi feito um apelo para que as pessoas saíssem de casa o mínimo possível. Dois assaltantes tinham entrado no condomínio no banco de trás do carro de um proprietário, com um revólver apontado para a sua nuca. Assaltaram a casa, depois saíram no carro roubado, com crachás roubados. Além do controle das entradas, passou a ser feito um rigoroso controle das saídas. Para sair, só com um exame demorado do crachá e com autorização expressa da guarda, que não queria conversa nem aceitava suborno. Mas os assaltos continuaram. Foi reforçada a guarda. Construíram uma terceira cerca. As famílias de mais posses, com mais coisas para serem roubadas, mudaram-se para uma chamada área de segurança máxima. E foi tomada uma medida extrema. Ninguém pode entrar no condomínio. Ninguém. Visitas só num local predeterminado pela guarda, sob sua severa vigilância e por curtos períodos. E ninguém pode sair. Agora a segurança é completa. Não tem havido mais assaltos. Ninguém precisa temer pelo seu patrimônio. Os ladrões que passam pela calçada só conseguem espiar através do grande portão de ferro e talvez avistar um ou outro condômino agarrado às grades da sua casa, olhando melancolicamente para a rua. Mas surgiu um problema. As tentativas de fuga. E há motins constantes de condôminos que tentam de qualquer maneira atingir a liberdade. A guarda tem sido obrigada a agir com energia.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Vade retro - Angela Delgado



         Vade retro, Inspiração. Volte amanhã em hora decente. Não olhou o relógio? 3h15 da madrugada. Hora em que os justos estão dormindo. Mas se deixar para amanhã, vai ser prosa inacabada, que o sol derrete os miolos. Pois que derreta, tenho uma aula a dar amanhã, pela manhã. Onde está a dificuldade em se começar hoje e acabar depois? Uma criança é feita em nove meses... Só que você não vai dormir mesmo, o cachorro não latiu. Pronto, olhe o gancho mnemônico, porque sendo a explicação do cão nesta história algo que não carece de inspiração, posso fechar os olhos tranqüilamente. Aí empacará no animal e tudo vai pro brejo. Não necessariamente. Pode ser algo como as Mil e uma noites, interrompendo quando bem entender, ou no ponto crucial do meu sono. Aliás, se eu fosse o sultão, mandaria decepar Shéhérazade logo na segunda noite, por tão escandalosamente horríveis serem suas histórias.

          Obrigada, meu Deus, por conduzir minha filha sã e salva de volta para casa. Já agradeço em vez de pedir, essa é a minha tática. Se estiver sonolenta, devido a algum vinho tomado, jogue água fria em seu rosto. Pode ser água benta mesmo.

E assim, abaixo as orelhas de cão perdigueiro, atenta aos ruídos que, nem sempre são os de minha filha chegando, mas os do quati, insone ou bêbado, derrubando coisas do sótão sobre minha cabeça, ou o do vidro do box estalando depois que um avião sobrevoa nosso telhado. Mas, posso relaxar. Os pensamentos se materializarão e o cão latirá pois minha filha chegará.
Se tivesse tomado um Lexotan, estaria dormindo em vez de ficar aqui escrevinhando, É, mas não me venha com humildade de anzol. Humildade de quê? Não venha com uma conversa de que estava com sono e coisa e tal, só para pescar elogios, Eu não, até que gostei do que escrevi. Depois de passar quase o dia inteiro lendo Clarice Lispector, tenho a ligeira suspeita de que ela não quis ir embora e me inspirou.

           O dia amanheceu e o gancho é que o cão que se “engatalfinha” com os gatos da vizinha, levando homéricas patadas, obviamente vê neles uma grande ameaça e, com a chegada de seus donos, acredita ser dever seu protegê-los, partindo furiosamente latindo para cima deles, não dos donos, mas dos gatos, denunciando, com seu estardalhaço a hora tardia do regresso de Filha Antropóloga ao lar.

          Abajur, você que está falhando, queime de vez e me deixe dormir!

domingo, 3 de março de 2013

Acontece sempre aos personagens - Cinthia Kriemler



     Um dragão exausto. Isso sou eu sentada aqui neste começo de noite gelada, soltando neblina pela boca e pelas ventas. Já aqueci os dedos murchos e a garganta com duas xícaras de chocolate quente com chantilly, raspinha de casca de limão e uma pingada leve de licor, Aceita uma xícara?
     Estou escutando músicas antigas, enquanto decido se vou ao cinema ou se abro um vinho mais tarde, e assisto a um filme em casa mesmo.
     Eu vejo o futuro repetir o passado... O tempo não para, não, não para...
     Que coisa! O tempo não para é de vender essa imagem de inesgotável. Bobagem. É um grande ilusionista, isso sim; um fanfarrão elegante esse tal de tempo! O que ele faz, e bem, é aplicar recursos. Mas não resiste a um olhar mais de perto, a uma avaliação mais detalhada. De perto, é fácil ver que os acontecimentos, as histórias e as vontades são sempre os mesmos, ciclicamente. Guerras, amores, terremotos, mortes, tudo se repete. Modernizam-se os instrumentos, as palavras e os atores. As tramas, nunca. Uma mesmice.
     Pois saiba você que o tempo sobrevive mesmo é das percepções, como num truque houdiniano. O que eu vejo não é o que você vê. Não vemos na mesma hora. Não nos importamos do mesmo modo a respeito do que vemos. O truque é este: impedir que a gente tenha consciência de que de inesgotável só as desigualdades das nossas percepções.
     Uma vez ou outra, é claro, passeamos, sem querer, pela mesma sintonia, por uma fração de segundos. Déjà vu ! – gritamos. – Que déjà vu que nada! É o tempo escorregando na gestão. Mera digressão.
     Costumo pensar em cada um de nós como um grande globo de metal, igual ao que se usa nos bingos ou nos sorteios de prêmios. No início de nós, o tempo nos recheou de uma vez com todas as datas e fatos e sentimentos que iríamos precisar para termos uma vida. Mas se tocou que um bom planejamento estende-se a um futuro, e aí decidiu que era melhor liberar uma pedra por vez. Acrescentou o mexe e remexe aleatório do globo para assegurar transparência e criar um pouco de frisson na plateia.
     Por isso, o meu bingo nunca é, foi ou será igual ao seu. Eu recebo o amor aos 20; você, aos 35; ele, nunca. Você aprende os sofrimentos aos 10; nós, aos 38; eles ainda sofrem. Tudo culpa do mexe e remexe.
     Não me importo com o estratagema. Do tempo, só registro uma queixa: para si mesmo, nunca traz velhice; para nós, rugas dolorosas no corpo e na alma. Injustiça!
     Ah, não? Você não acha? Deixe ver se entendi... Experiência. É assim mesmo que você desculpa o reumatismo que proíbe às suas juntas subir escadas? Segurança é o nome mais interessante que você encontra para o seu platô de conformismos? Está bem. Entrego os pontos. Eu mesma apelidei de “maturidade” o assassinato dos meus sonhos. Aliás, melhor dizer: massacre, porque os exterminei em conjunto para não ouvir mais suas vozes insensatas.
     O tal do amor maduro, então, é o pior dos disfarces. Preciso forçar mais a memória, um dia desses, e me lembrar quando foi que aprendi a gritar “Bingo!” na pedra da desistência. Logo eu que nunca dispensei um amor maldito, uma paixão inconsequente, me conformar com um amorzinho morno, centrado, sem tempero?
     Pois me escute: o mal é que a gente aceita qualquer coisa depois das rugas. E não adianta reclamar, tipo: Hei! Eu quero aquele olhar que vi na mocinha de ontem, na fila do supermercado. Quero aquela roupa sensual da vitrine do shopping. Quero atravessar a piscina sem perder fôlego. Reclamar só traz mais rugas.
     O que foi? Apavorou-se? Descobriu que lhe furtaram as possibilidades? Finalmente você começou a entender como o tempo é ladrão? Como eu lhe disse, um ilusionista. E você aí pensando que eram seus o amor, a alegria, as gargalhadas e os sonhos! Sei como é isso, portanto, não se preocupe, você não é bobo sozinho. Acontece sempre aos personagens.
     Ainda dá tempo de me acompanhar numa xícara de chocolate. Mas, se preferir, venha tomar um vinho mais tarde. Afinal, ainda não falamos sobre a melhor parte disso tudo. Aquela onde eu lhe conto que insônia, depressão e amor despedaçado também te abandonam, mudam de corpos.
     É o tempo, redistribuindo recursos. Acontece sempre aos personagens!