quinta-feira, 24 de outubro de 2013

E se só me restasse este dia - Angela Delgado

    

     O marido está almoçando na cozinha com a tevê ligada. Como hoje é um dia muito especial, faço o prato e, sem reclamações, vou almoçar, como mereço, ao ar livre  ao som de um coro de mil e uma cigarras. Disso, em Brasília no mês de outubro, não há como escapar, nem em meu apocalipse particular. Diga-se de passagem, isso é segredo, pois não quis melindrar ninguém, passando-o com uns em detrimento de outros. Como a Parca não me avisou com antecedência sobre esta minha ida brusca e prematura, não posso pegar um avião e ir despedir-me de minha querida irmã que mora na Inglaterra. Aliás, neste meu derradeiro dia, passando ela com a filha, genro e duas netas, quinze dias, nas Canárias.
    Fazer o quê, então? Deixar aqui o meu amor incondicional por toda a minha família e amigos é uma despedida. Fajuta, mas não posso nem sair à francesa e nem espalhar o pânico: último dia?! Mas, como? E a nossa viagem marcada para o ano que vem? É realmente uma pena, mas, quem sabe, poderei me juntar a vocês? Estarei lá em espírito, serve?

     A caçula tão amada, embora independente diria: - Mãe, o que vai ser de mim sem você? 
     É por esse e outros diálogos que tive que me calar e viver este dia mais ou menos normalmente. No momento, há dois netos aqui. Penso em, como última lembrança e contribuição, apresentar o livro Onde está Wally aos netinhos mais novos, grudados na telinha, vendo desenho. Tentarei mesmo assim. Não é que deu certo? Ele, com cinco anos de idade e sua irmã de oito, se encantaram ao ver Wally, aquela figurinha de camisa vermelha listrada incorporada ao cenário asteca de 200.000 anos, com suas cordas e cavalos assustados. Virando a página, ei-lo no mundo das pirâmides em meio a centenas de pessoinhas e sarcófagos, há 4.500 anos atrás. Em seguida, Wally se mistura aos romanos em um feriado no Coliseu, onde cristãos eram atirados aos leões (disso meus netinhos não ficaram sabendo). Depois viaja com os vikings e seus chapéus de chifre, em um mergulho de mais de mil anos. Continuando sua trajetória, o desafio agora é encontrar o bonequinho de camisa listrada, que está perdido no meio de catapultas e de uma multidão ao fim de uma das Cruzadas, há mais de 800 anos. Daí para cair entre camponeses, malabaristas, trovadores e bobos da corte na Idade Média é só um virar de folha. Mais uma, e, com certa dificuldade, o encontramos, fugindo das espadas e flechadas dos samurais no Japão de 400 anos atrás; nos barcos dos piratas com tapa-olhos há 250 anos; com um livro na mão, na Corrida do Ouro dos americanos, no final do século XIX; ainda concentrado em seu livro - esse é dos meus - em um baile em Paris há 100 anos, quando os homens usavam perucas e as mulheres dançavam Cancã; e, finalmente, no futuro, ao lado de naves, extraterrestres, robôs e mísseis.
     Assim, meu último dia vai se escoando. Eu, aqui, escrevendo, imagine, quando sou despertada pela campainha do telefone. É meu neto primogênito avisando que não vem almoçar e eu lembro-lhe da aula de dança de salão, daqui a pouco, quando em vez de eu ir dançar, neste que seria meu último dia, vou bem-humorada, como “votorista”, como bem lembrou uma “mãetorista”, que conheci outro dia.
     (Claro que se fossem realmente minhas últimas horas eu dançaria, mas como era só faz-de-conta, assisti à aula do sofá.)
     Voltamos, ouvindo pelo som do carro músicas deliciosas e entre elas, algumas que eu costumava ouvir nas festinhas da época de meus 15 anos, como "La mer" e "Unchained melody" com Ray Conniff, quando praticamente minha vida começava e, fechando seu ciclo, encerra-se com as mesmas músicas.
     Se tudo não passou de um pesadelo, pelo menos caprichei neste dia a mais vivido. Não saí muito da rotina, porém ficou mais do que provado de que gosto dela.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O Jogador de xadrez - Stefan Zweig

     Tenho vários irmãos que gostam muito de xadrez. Como somos dez, em meus tempos de solteira, havia épocas em que se passando pelo corredor, em cada quarto se vislumbravam dois jogadores debruçados sobre um tabuleiro de xadrez. Por isso, fiz uma espécie de resenha do livro acima, "Le Joueur d´échecs":
     Nele um dos personagens, austríaco, é preso pela Gestapo e confinado em um quarto hermeticamente fechado para o mundo exterior, contendo apenas uma porta, uma cama, uma cadeira, uma bacia e uma janela gradeada. A porta permanecia trancada noite e dia, sem que ele tivesse acesso a um livro, a um jornal, papel ou lápis. Ele estava imerso no nada. Tiraram-lhe seu relógio, para que  não mensurasse mais o tempo; sua caneta para que não mais escrevesse; seu canivete para que não cortasse suas veias; e cigarro, era coisa proibida. A única figura humana que via era a do carcereiro, que tinha ordem de não lhe dirigir a palavra e de jamais responder-lhe a qualquer pergunta. Ele nunca ouvia uma voz humana. Dia em noite, seus olhos, orelhas e demais sentidos não encontravam o menor alimento. Ele ficava só, desesperadamente só, frente a si mesmo, com seu corpo e quatro ou cinco objetos mudos: a mesa, a cama, a janela, a bacia. Vivia como um mergulhador sob seu aparelho de mergulho, nesse negro oceano de silêncio, mas, como um mergulhador pressentindo já que a corda que o ligava ao mundo se rompera, e que ele nunca seria içado dessas profundezas mudas. Não havia nada a fazer, nada a ouvir, em volta de si reinava o nada vertiginoso, um vazio sem dimensões no espaço e no tempo. Ia e vinha em seu quarto, com pensamentos que surgiam em sua mente, sem trégua, seguindo o mesmo movimento. Mas, por mais desprovidos de matéria que pareçam, os pensamentos necessitam também de um ponto de apoio, sem o qual giram em voltam de si mesmos em um louco redemoinho. Eles também não suportam o vazio. De manhã à noite, esperava por alguma coisa que nunca acontecia. Esperava, recomeçava a esperar e nada. Os pensamentos giravam em sua cabeça até suas têmporas doerem.
     “Isso durou quinze dias nos quais vivi fora do tempo, fora do mundo. Para mim, este consistia em uma mesa, uma porta, uma cama, uma bacia, uma janela e quatro paredes. Enfim começaram os interrogatórios. Eu era chamado bruscamente sem saber se era noite ou dia. Era conduzido por corredores para lugar ignorado...”
     Resumindo, para esses interrogatórios, esperar fazia parte do método. Começava-se por abalar os nervos do acusado indo buscá-lo no meio da noite. Depois, quando ele havia se recobrado, reunindo todas as suas energias para a audiência, faziam-no, para domá-lo no corpo e na alma, esperar durante uma hora, duas horas, três horas antes de interrogá-lo.
    Apesar da ansiedade e do cansaço decorrente, era, contudo, um alívio estar em outro cômodo. Seus olhos bebiam detalhes estúpidos e insignificantes, e ... de repente eles se fixaram. Havia descoberto alguma coisa protuberante no bolso de um dos casacos dos guardas, dependurados em um cabide. Aproximou-se e acreditou reconhecer, através do tecido o formato retangular de um livro. Um livro!
     Com habilidade, dissimulou e se apoderou do volume. De volta ao quarto, após passar por várias peripécias, como a ter que simular um acesso de tosse, para recolocar em sua cintura o livro que escorregava pela perna, qual não foi seu espanto ao deparar com representações tais como: a2-a3, Sf1-g3 (estou estranhando esses movimentos e como o manual de xadrez foi emprestado há séculos, vou perguntar ao irmão campeão o que um S estaria fazendo ali.)
      A princípio, essa espécie de álgebra era incompreensível para o nosso personagem. Mas pouco a pouco, vendo que se tratava de um manual de xadrez, compreendera que as letras a, b, c designavam as linhas longitudinais e os números de 1 a 8 as transversais. Encurtando a história, ele, com o lençol fez um tabuleiro de xadrez e com migalhas de pão as peças, sendo as pretas as que tinham mais quantidade de poeira (!). Durou três meses seu cativeiro e, quando foi libertado, lógico que venceu o campeão mundial de xadrez...