domingo, 20 de abril de 2014

Tecendo comentários - Angela Delgado

Muita gente está elogiando Cem anos de solidão, mas como preferi  Vivir para contarla, irei na contramão e contarei sobre o livro que acabei de ler e viver:
I Miserabili, em três volumes, de um dos meus escritores preferidos: Victor Hugo.
Li-o no original antes de 2005, época em que o reli, em sua tradução espanhola, juntamente com uma tradução portuguesa. Esta, a meu ver, malfeita, ou fui eu que estranhei o português do meu querido Portugal.... Não sei mais em que ano o li em inglês, tradução também que pula vários capítulos! Em 2013, comecei a me ensinar italiano, relendo essa mesma obra, com todas as traduções ao redor. Ontem, terminei o terceiro e último volume desse maravilhoso romance de aventura moral.
 Victor Hugo disse uma vez que se não conseguisse emocionar os leitores com Os Miseráveis pararia de escrever! Impossível não ir às lágrimas ao final, mesmo após tê-lo lido em tantas línguas.
Seu resumo se encontra nele próprio: “O livro que o leitor tem neste momento diante dos olhos é, do princípio ao fim, no todo e nos pormenores, quaisquer que sejam as intermitências, as exceções ou defeitos, o caminhar do mal para o bem, do injusto para o justo, do falso para o verdadeiro, da noite para o dia, do apetite para a consciência, da podridão para a vida, da bestialidade para o dever, do inferno para o céu, do nada para Deus. Ponto de partida: a matéria; ponto de chegada: a alma. No começo, hidra; no fim, anjo.”
Para quem quer aprender italiano, como eu, eis a tradução: “Il libro che il lettore ha sotto gli occhi in questo momento, è da cima a fondo, nel suo insieme e nei particolari, qualunque sia le intermittenze, le eccezioni o le manchevolezze, il cammino dal male al bene, dall´ingiusto al giusto, dal falso al vero, dalla notte al giorno, dall´appettito alla conscienza, dal putridume alla vita, dalla bestialità al dovere, dall´inferno al cielo, dal nulla a Dio. Punto di partenza: la materia, punto 
d´arrivo: l´anima. Al principio l´idra, alla fine l´angelo.”
Outras palavras imperdíveis:
“Se a liberdade é o cume, a igualdade é a base. A Igualdade, cidadãos, não é o nivelamento de toda a vegetação, é, civilmente, o mesmo ingresso a todas as aptidões e, religiosamente, todas as consciências com o mesmo direito. A Igualdade tem um órgão: a instrução gratuita e obrigatória. O direito ao alfabeto, é por onde se deve começar. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos.”
“Si la liberté est le sommet, l´égalité est la base. L´égalité, citoyens, ce n´est pas toute la végétation à niveau, une société de grands brins d´herbes et de petits chênes; c´est, civilement, toutes les aptitudes ayant la même ouverture; religieusement, toutes les consciences ayant le même droit.
L´Égalité a un organe : l´instruction gratuite et obligatoire. Le droit à l´alphabet,
c´est par là qu´il faut commencer. L´école primaire imposée à tous, l´ecole secondaire offerte a tous.»
Repararam que a tradução portuguesa ignorou a frase, "uma sociedade de relvas crescidas e carvalhos pequenos”, que seria a consequência de um nivelamento, sem levar em conta as naturais diferenças?
Há muito mais. Só comentei esses dois trechinhos do terceiro volume, para não cansá-los.
Quem não leu Os Miseráveis, não sabe o que está perdendo.  
Boa Páscoa a todos!


quinta-feira, 3 de abril de 2014

Frases de Clarice Lispector (Obrigada, Geo, pelo empréstimo do livro!)

"... Cercas delimitando cantos que não seriam cantos se não houvesse as cercas arbitrárias."
 (Já vejo por outro ângulo: Graças às cercas, a infinitude cansativa se torna um cantinho aconchegante.)

"Com uma sabedoria instintiva, Ermelinda não demonstrou que notara o seu passo para ela,
 assim como não se dá um grito de alegria quando uma criança começa a andar, para que
 esta não pare assustada por meses."

"Se uma pessoa fizesse apenas o que entende, jamais avançaria um passo."

"Um pouco vivida, sabia que na hora as coisas pareciam certas e depois não pareciam mais."

"Quando tomo um calmante, não ouço meu grito, sei que estou gritando, mas não ouço."

"De repente pareceu a Martin que ele andara em caminhos superpostos. E que sua verdadeira 
e invisível jornada se fizera na realidade embaixo do caminho que ele julgara palmilhar.
 E que a verdadeira jornada estava agora saindo subitamente à luz como de um túnel."

"... aquela iminência para a qual tudo pareceu debruçado."

“- E a senhora, por que veio para cá?
  - Que pergunta estúpida. É como se eu lhe perguntasse: por que é que o senhor vive!
  - Porque tenho certo instante em vista, disse ele."

"Deus sabe que há pessoas que não podem viver com a felicidade que há dentro delas,
 e então Ele lhes dá uma superfície de que viver, e lhes dá uma tristeza."

“É preciso ter técnica para pedir. Não é só dizer "me dá" e acabou-se! É preciso pedir disfarçando.
 Se a senhora precisa de um par de sapatos, o mais aconselhável seria dizer aos pouquinhos:
 meus sapatos estão velhos. Compreende? Seu marido um belo dia acordaria de manhã e,
 sem ao menos saber por que, diria assim: Vitória, meu amor, vou lhe dar um par de sapatos!
 Receber pedidos assusta muito as pessoas, que, no entanto, às vezes estão doidas para dar, entendeu?"

"... consigo levava a impressão que hoje, agora, neste momento, enfim se revelava. 
Como se tivesse guardado tanto tempo que o acontecimento enfim exalasse um maduro odor 
de fruto, e o vinho que fora novo tinha ganho espessura e essa qualidade que ilumina uma taça."

“A senhora olhou aquele homem, aquele homem que era cruamente o dia de hoje, e como tocar diretamente no dia de hoje, nós que somos hoje?
 E tudo é teu se tiveres coragem de olhar de frente, mas de súbito, naquele homem ali, 
o tempo viera de tão longe para se esborrachar em: hoje!  Urgente instante de agora.
Por erro de vida - e bastava um erro, nessa coisa frágil que é a direção, para que a pessoa 
não chegue - por um erro de vida ela jamais usara o silencioso pedido que usamos
 que faz com que os outros nos amem."

"Sobressaltou-se de novo, ainda não firme naquelas pernas que lhe estavam sendo dadas.
 E como um cego que tivesse recobrado a visão e não reconhecesse com os olhos aquilo que 
 mãos sensíveis sabiam de cor, ela então fechou um instante as pálpebras, tentando recuperar o conhecimento íntegro anterior; abriu-as de novo e procurou fazer das duas imagens uma só."

“Preciso me exagerar. Senão que é que faço de mim pequena?”