sábado, 31 de dezembro de 2016

Acordemos - Anna Maria Assis Ribeiro


Dizia-se “merci”. Na verdade ela ainda diz “merci”. Escapole no sem querer, revelando o que nunca lhe afligiu revelar: está velha e só os velhos e os franceses, é claro, dizem assim. Sua mãe dizia chauffeur, ao invés de motorista; restaurant ao invés de restaurante; e Leblon, pronunciado por ela podia ser um bairro de Paris. No dia da queda da França ela, uma menina, foi levada à frente do Teatro Municipal para cantar a Marselhesa. Todos choravam e ela também chorou, chorou muito, por imitação – é verdade – mas, sobretudo, porque era aniversário de uma amiga e ela não iria.
Toda esta lembrança lhe veio ao acordar no primeiro dia do ano: nunca tinha se dado conta! Reveillon, além da ceia do dia 31 de dezembro, significa Acordemos! Para que? Para um novo ano, para novos desafios, para novas empreitadas e sabe ela mais o que. Fazem-se planos, promessas, tomam-se decisões seriíssimas como perder 10 quilos, deixar de fumar, procurar o amor perdido caindo de joelhos, pedindo desculpas, implorando por uma nova chance. O engraçado é que se está, quase sempre, em meio a muita gente e as decisões tomadas são sempre individuais. Beija-se a pessoa que está ao lado, marido, namorado ou, hoje em dia, um ficante, pensando-se: este ano “eu”....
No entanto acordar é necessário, todos os dias. Acordar mesmo. Literalmente. Tirar os pés da cama e andar em frente. Ficar parada é que não dá pé. Isto não parece ser um grande problema mas... o problema não é o “andar”. É o “em frente”, significando um rumo certo para chegar a algum lugar. Agora – ela pensa - danou-se! O “certo” pesa pra valer, tornando o problema imenso. O que é certo? Nem está pensando no “certo” com um viés moral. Não! É o certo para cada um. Aquela opção que vai nos levar adiante. A gente passa a vida escolhendo entre opções, né? E nem sempre as certas. Fica-se adulto no momento em que se percebe que ao fazê-las – as opções – ganha-se alguma coisa e perde-se outra. E fica-se velho, numa boa, quando não se culpa o mundo, a má sorte, alguém ou “alguéns”, pelo que deu errado. Fácil? Quem falou?! Não é, não. Nem um pouco. Mas faz parte do “reveillon”. Está nele embutido com todos os “fff e rrr”, embora a palavra não os tenha.
Ao pensar “fica-se velho”, surpreende-se: não “acordou” para isto antes que ocorresse! É claro que pensava, nos idos da mocidade – e põe idos nisto - em aposentadoria, por exemplo. Discutia valores e fazia projeções (bem mais otimistas do que se revelou a realidade), mas, nestas projeções, estranhamente, nunca se viu velha. E um dia - pareceu-lhe que repentinamente - ficou! E deu uma baita sorte: sem que houvesse planejado, seus maiores prazeres eram permitidos para a mais avançada idade desde que e enquanto a cabeça ajudasse: ler, ouvir música e conversar. Para o desempenho deste último verbo as substantivas leitura e música irão garantir assuntos no momento em que dificuldades de locomoção não mais permitirem colecioná-los no mundo dos seres circulantes.
Vai daí vem a certeza: no “reveillon” de todos os dias, a grande “trouvaille” (pensa em francês, imitando a mãe, mania um tanto cabotina que lhe acomete ultimamente com uma certa freqüência) é acordar para o treinamento de acumular de prazeres, garantindo uma velhice gostosa, para que um dia, sabe-se lá quando e pedindo licença ao poeta, possa “chegar humana ao mar da morte”.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Conselho ao acaso - Anna Maria Assis Ribeiro

CONSELHO AO ACASO    -  Anna Maria Assis Ribeiro
No momento em que esta crônica está sendo lida,quem sabe, já serei eu Bisavó. Nesta reta de chegada para ocupar tão honroso posto sou vítima da maior confusão: o que dizer à minha bisneta? Oitenta e um anos nos separam. É muito, não? Será que todo este tempo vivido deixou algum ensinamento que possa ajudá-la vida afora? Qualquer coisa que ela pudesse, já adulta, dizer aos filhos, iniciando com um “aprendi com a tataravó de vocês. Dá certo”. Sei que estou tentando tornar-me eterna a qualquer custo. Mas é verdadeira minha preocupação com a vidinha lá dela. Como facilitar as coisas, diminuindo os sofrimentos e frustrações que certamente virão? Tudo muda muito ao longo dos tempos e o que hoje dá certo pode não dar amanhã, e periga eu encaminhá-la para uma estrada que, no mínimo, não vai dar em nada. O falar francês, indispensável quando eu era criança, transformou-se em falar inglês. Vai daí que é mais que provável que minha Joana se veja as voltas com o chinês mandarim. Para piorar minha confusão, eis que o horóscopo do mês anuncia aos arianos como eu: em campo afetivo, evitem inúteis especificações para não comprometer a relação. Seria uma temeridade me estender em explicações e comentários, sob pena de comprometer nossa relação que apenas começa. Tem que ser curto e grosso. Nenhuma das muitas soluções que dei a problemas ocorridos neste tanto tempo de vida parece-me digna da póstuma citação. Mas eis que amigos me convidam para uma noite num bar da Lapa e fez-se a luz! Tenho especial carinho pela Lapa e seus arredores. Saudosa, lembro os almoços diários, na melhor das companhias, no Bar Brasil, no Nova Capela, no Cosmopolita (para nós do SERPRO, Porta de Bandido) e das intermináveis “a saideira e a conta” na Adega Flor de Coimbra que por ser em frente ao estacionamento onde deixávamos os carros, nos levava a prolongar o expediente que vez por outra entrava noite adentro. Tudo isto é motivo de lembranças risonhas e emocionadas para muitos de nós. Tanto que até hoje nos reunimos para lembrar. Só que agora rotulados de SERPROVECTOS, e não mais na Lapa. Ao contrário do que possam imaginar, não estou pensando em indicar a minha bisneta o caminho dos bares diurnos ou noturnos. Este ela irá encontrar sozinha no momento certo. E espero que o faça e que, como eu, guarde as melhores lembranças. Ocorre que o tal bar para onde fui convidada responde pelo nome de Bar do Acaso. É isto! É o que posso deixar de melhor, na certeza de que este ensinamento estará a salvo de qualquer efeito causado por Tempora e Mores! Ainda bem jovem descobri (com enorme ajuda de meu pai) que muito do que me acontecia de importante na vida, fosse bom ou ruim, tinha origem no acaso. Portanto dele eu não deveria fugir, ao contrário, deveria deixar que ocorresse expondo-me à vida e a tudo que esta pudesse me oferecer. O problema, o grande problema, é que o acaso é maroto como ele só: depois de propiciar o surgimento do bom e do ruim, desinteressa-se pelo assunto e não ensina o pulo do gato, para que o ruim seja eliminado e o bom desenvolvido ao máximo. Ai o oposto deve entrar com força total impedindo que se deixe o acaso ao acaso. Uma enorme carga de análises, planejamentos e ações têm que necessariamente se seguir às estripulias do acaso. Caso contrário corre-se o perigo de ativar as coisas danosas por ele ofertadas e eliminar o que deveria ser cultivado. Começa pela análise profunda da oferta do acaso: é boa coisa ou não? Parece fácil, mas não é. O Príncipe Encantado em que a moça literalmente esbarrou na rua e mostrou-se encantador, e sobretudo interessantíssimo, pode se transformar em Sapo no futuro ou tornar-se o mais companheiro dos maridos; a viagem maravilhosa e baratíssima, cujo folheto de propaganda entrou pela janela, conduzido pelo vento pode ser encantadora ou uma monumental furada; o antigo e sumido colega de trabalho que encontramos porque viramos à esquerda e não à direita e que nos saúda com: “incrível! Você é a pessoa que eu estava procurando para...” pode nos fazer uma oferta irrecusável de trabalho ou nos meter em uma enorme enrascada. E por ai vai. Mesmo depois de avaliada a obra do acaso, mesmo quando se anuncia promissora, há um enorme trabalho pela frente. O princípio da entropia entra em ação: se não cuidamos incessantemente tudo será destruído. Enfim a máxima que resulta parece ser: nunca fuja do acaso, ao contrário exponha-se a este, aceite o que lhe trouxer, depois trabalhe como um mouro para dar certo. Pobre Joana! Olha só a Bisavó que o acaso lhe deu! Como existem outros três bisavós vivos, quem sabe adoçarão a pílula que, acredite, não é tão amarga quanto parece. Porque a vida, Joana, queira-se ou não, é uma administração constante, um tratamento sem fim, do que o acaso nos oferece. Fugir do acaso para não ter que administrá-lo é uma forma de não viver. E viver, minha linda, é pra lá de bom. Esta não é uma história de fadas (sossega, também as contarei a você), mas como acontece nestas, se você atentar para esta falação da Bisa, sua vida terá uma grande possibilidade de muitos finais felizes.


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Canoa furada - Luiz E. Ottoni de Menezes

CANOA FURADA

Às vezes embarcamos numa.   
Chegamos a tempo, achamos nossos lugares e ficamos observando.
Os músicos se acomodam e experimentam os instrumentos.  Cada um escolhe suas notas.  Em conjunto, produzem o caos.  Depois, em longa e disciplinada fila, surge o coro.  Oitenta vozes, que gastam um bom tempo para se posicionar.  Uma população está no palco, talvez umas cento e cinquenta pessoas.
E o concerto começa.  A platéia se aquieta e presta toda a atenção.  Após alguns minutos começo a me preocupar com o andamento muito lento, mas luto por adotar uma atitude otimista, torcendo para que logo brotem cores e vida naquela música.  Faço uma caridosa concessão, mas a orquestra permanece vagarosa e morfética.  O que é que estamos fazendo aqui?  Dois incautos pegos de surpresa.
De fato, não era nada disso o que queríamos. Tínhamos ido à bilheteria procurar entradas para uma noite preciosíssima: Nelson Freire tocando Beethoven, com regência do Isaac Karabtchevsky.  Mas justamente na véspera do concerto, olhem só que santa inocência!  É lógico que já estava tudo vendido.  Como consolação, estamos aqui ouvindo Dvorák.  Consolação?
Ondas periódicas de sono me embalam lentamente, mas faço força para manter os olhos abertos.   A cabeça já deu três ou quatro caídas, seguidas daquele espanto ao perceber que estou em pleno Theatro Municipal!
Em cima do palco há um retângulo onde correm as legendas:
“Faz essas chagas lacerar-me o coração e esta cruz inebriar-me”.
É verdade, juro, copiei isto nas costas do ingresso. 
“Inflamado e aceso, ó virgem, seja eu por ti defendido lá no dia do juízo”.
E tudo isso cantado em tcheco, suponho!  Muito lentamente, zzzzzz. 
Viro para o lado, dou uma piscada para a musa, trocamos olhares cúmplices e balançamos as cabeças em sinal de total desapontamento.  Olho para o teto, para o candelabro, aliás, belíssimo, para as cortinas, para a platéia, imagino quantos estarão roncando, olho para o palco e vejo que a segunda violinista luta com seu vestido curto.  As pernas não são lá essas coisas, mas são as únicas à vista.  Nos “pianíssimos”, e são muitos, ela tenta, sem sucesso, esticar o vestido até os joelhos.  Ao final dos “allegros”, mal consegue se arrumar, já muito preocupada.  Num “forte”, vai ao desespero.  Não, o concerto não teve nenhum “fortíssimo”.
Duas gordas solistas custam a achar os copinhos d’água.  Estão no chão e bem junto das cadeiras, mas perdidos no meio de tantos metros de vestidos longos. 
E não há um piano!  Não poderia haver um piano, pergunto revoltado, que pudesse dar alguma solidez a esta orquestra molenga?  Então vocês estudam e ensaiam não sei quantas horas para vir aqui tocar isso?  Uma hora e meia de música lenta, pastosa?  Cremosa?
Crianças e adultos dormem tranquilamente.  Pelo menos uns mil…
De repente, percebo que o trompista sumiu.  Talvez tenha caído da cadeira!  Sim, ele estava lá na última fila, ao lado da tuba.  Tenho certeza!  Deve agora estar dormindo no chão.  Esboço um sorriso ao imaginar o susto que levará quando o vizinho soprar com força!
Finalmente, o letreiro mostra a tão aguardada palavra “Amém”!  Corrijo depressa minha postura na poltrona, recupero o ânimo e lanço a idéia de irmos tomar um chope.
Mas ainda sofreríamos um bocado, pois o Amém precisaria de dez minutos para ser pronunciado.  Sim, quatrocentas colcheias para cantar quatro letras.
Dois chopes, por favor!
Um pouco depois entramos em casa, já correndo em direção aos CDs.  Rápido, rápido, um antídoto, uma dose forte de Chopin!   Um grande piano, depressa!  O que temos aqui na UTI? 
A Grande Polonaise Brilhante, é claro!  Duas aplicações!

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Uma Colonoscopia - Angela Delgado

       
        - Deite-se de lado, por favor.
    - Tem um travesseirinho para os joelhos?- pergunto, em tom de brincadeira.
     - Vou buscar.
     - Uau, que mordomia, obrigada!
     Foi um travesseirão o que a enfermeira colocou sob minha cabeça.
     - Ficarei lhe devendo o dos joelhos para a próxima colonoscopia.
     - Quem disse que haverá outra? 
     Pela manhã, o preparo para o exame havia me obrigado a mudar-me para o banheiro, com dicionário, lápis, borracha e o que era permitido tomar: água, chá e suco, pois qualquer líquido que entrava, descia garganta abaixo, como em um elevador descendo do décimo segundo andar, de uma vez, sem escalas e acelerado.
     A sala da recepção esteve bem movimentada e a maioria dos pacientes ainda ostentava cabelos pretos. Só eu ali me apresentara um pouco tardiamente, e não pensava em voltar.
     Minha irmã outro dia me disse que “com a ida do nosso irmão muitíssimo mais cedo do que prevíamos - mesmo porque pensávamos que ele seria eterno, assim como nós -  descobriu que se ele foi, é bem capaz de irmos também...”
    A resolução foi tomada:
    Iremos aproveitar mais a vida, na medida do possível,  e não será em um hospital que o farei.
    Com tubo de oxigênio no nariz; agulha espetada no braço e ouvindo a enfermeira dizer que o aparelho de pressão “iria estar apertando o meu braço” (ai, de tão useiro ultimamente, isto já está deixando de ser uma “akustische Halluzinationem”), forço-me para evitar chorar, ali mesmo, a perda de meu irmão, há tão pouco tempo, em, mais ou menos, "semelhante" situação. A dele, infelizmente, era gravíssima e a minha não, mas também estou momentaneamente ligada a aparelhos.
   Quantos poemas ou crônicas engraçadas terá ele imaginado, na posição horizontal!
   Tomara que as máquinas do futuro não mais deixem passar essas valiosas inspirações e as registrem todas.            Stephen Hawking, com um toque de mão, escreve frases, selecionando palavras de uma lista delas em ordem alfabética!
   A enfermeira anuncia que o anestesista me fará algumas perguntas.
   - Que idade a senhora tem?
   - Como? Aviso que também faria perguntas.
   - O quê?
   - O senhor está ouvindo igual a mim.
   Rimos e ele prepara uma injeção.
   - Onde o senhor a aplicará?!
   - Na veia.
   - Ah, bom!
   Findo o exame indolor e já de olhos abertos, em um hospital "de primeiro mundo”, limpíssimo, moderno e ampliado, indagam-me que suco eu gostaria.
   - De caju, de...
   - Esse está ótimo – respondo logo, deixando de ouvir o resto da oferta e poupando-a de mais palavras – já que há muito tempo não tomo um dessa fruta.
    Sem pressa de sair da maca, pois deixara nas mãos do marido e acompanhante um excelente livro, que esperava o estivesse deliciando, acabo tendo que me dirigir ao vestuário para me trocar.
   Abro um, dois, três armários e não vejo a minha roupa. Será que  ainda grogue? Reabro os armários para confirmação, aproveitando para examinar, apenas com os olhos, as que ali se encontravam, na hipótese de ter que sair de roupa literalmente trocada. Decido, porém, relatar o sumiço de meus trajes à enfermeira, que levanta os olhos do seu celular, único senão desse hospital e, provavelmente, a causa do quiproquó.
   - A senhora me desculpe. Devo tê-la encaminhado antes ao vestiário masculino. Veja se estão nele.

  Hoje recebi um e-mail do Banco Central pedindo o CNPJ do prestador de serviços que fará a polipectomia, em consequência do resultado da colonoscopia.
  Ignoro o que seja isso e, muito menos - ou mais – o significado da palavra que se seguiu à série de números que o atendente me passou pelo telefone: milderré.
 - Pode repetir?
 -  Milde ré.
  Mil de ré. Esqueci de perguntar se esses números modernos vêm com retrovisores. Caso contrário, vejam o perigo, poderá haver algum mil por aí abalroando um desavisado 999!
E o que tentaram me dizer era que a informação requerida terminava em 0001.
Para facilitar, meu próximo número de telefone será codificado: 9987 6 CEM DE RÉ.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

terça-feira, 20 de setembro de 2016

CALA-TE, BOCA ! - por Luiz E. Ottoni de Menezes


Desta vez estava no alto de uma escada, na área de serviço, fazendo um furo no teto, quando percebi uma senhora no andar de cima me acenando.  Desliguei a máquina barulhenta e ouvi:
– Moço, depois que o senhor acabar aí, pode dar um pulinho aqui, no 401?
Perplexo, minha única reação foi acenar de volta, sem saber o que dizer.  Fiquei mergulhado num turbilhão de pensamentos.  “E agora?  Acho que ela entendeu meu gesto como um sinal de concordância e deve estar esperando que eu vá lá em cima daqui a pouco.  Há quanto tempo eu era observado?  Em que encrenca fui me meter?”  Cogitei até em ligar pelo interfone e pedir desculpas por não poder ir.  Liguei novamente a máquina e tentei esquecer do assunto.  Meia hora depois, beijei minha mãe e fui embora.
No hall, entretanto, parei por um segundo.
Subi.  A curiosidade havia me vencido.
Toquei a campainha.  Abriu-se a janelinha da porta.
– Bom dia.  A senhora me chamou?
– Ah, sim, o senhor poderia ir lá pela outra porta, por favor?
E lá vou eu para a porta dos fundos.  Isso está ficando interessante…
Era também um problema no secador de roupa.
– O meu marido, que é médico, colocou a rodinha lá em cima, mas acho que alguma coisa está errada, não está funcionando bem.
– Vamos dar uma olhada.  A senhora teria uma escada?
E fui me desincumbindo da tarefa, sob os olhares atentos do distinto casal e de uma empregada que assistia a tudo de longe, em silêncio, passando roupa.  Expliquei os motivos pelos quais eu estava corrigindo o que o marido havia feito.  Tive a certeza de que meu trabalho estava agradando quando, já no final, a senhora perguntou, toda gentil:
– Que outros serviços o senhor faz?
– Bem, na realidade (segue-se uma longa pausa), faço projetos de loteamentos, cálculo estrutural, também escrevo, quando tenho tempo, já fiz cerâmica…
Sou interrompido com uma expressão de perplexidade total:
– Oh, meu Deus!  Me desculpe!  Eu vi o senhor lá embaixo …
– Ora, não se preocupe …
Ela não sabia o que dizer.  O médico, paralisado, anestesiado.  A empregada, lá atrás, rindo…
– Eu vi o senhor lá, em cima da escada e pensei que …
– Sim, eu estava consertando o secador de roupas …
– Que mancada!  O senhor é ligado à família?
– Sim, meus pais moram no 301.
Seu rosto fica pálido.
– O senhor é filho da D. Maria?  Oh, meu Deus!  Me desculpe!  Que mancada!
– Não se preocupe, eu gosto de consertar essas coisas.
– Oh, meu Deus !
E o Santo Nome continuou sendo invocado muitas vezes.  Recusei água, cafezinho e suco:
– Não, obrigado, acabei de tomar um copo d’água ao sair de lá.  Só preciso lavar as mãos.
Fui levado para a área social da casa.
– Aqui, por favor.  Use este sabonete, que é melhor.  Veja a reforma que fizemos na casa, tiramos esta parede, fechamos aquela, incorporamos a varanda ao quarto, que tal, não acha que ficou boa?  Agora pretendemos fazer isto e aquilo, o senhor me desculpe!
O médico, recuperado, já se divertia com o episódio.  Mas a senhora, com certeza, não iria dormir naquela noite, de tão preocupada.
E continuava tentando se desculpar:
– É tão perigoso, hoje em dia, chamar uma pessoa em casa para fazer algum serviço, eu vi o senhor lá, imaginei que seria uma pessoa…
– de confiança.
– Sim, é claro!  Oh, meu Deus!  Que vexame!  Me desculpe!  O senhor não quer sentar-se, não quer conversar um pouquinho?
– Não, muito obrigado, me desculpe a pressa, mas estou com um projeto meio atrasado, tenho que entregá-lo depois de amanhã, preciso ir correndo …
– Oh, meu Deus, que mancada!
Saí pela porta da frente e desci as escadas lamentando:  “Mancada minha!  Por que não fiquei de boca fechada?  Poderia ter ganho umas vinte pratas!”

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Precisão - Hélcio Maia

Precisa-se
de marceneiros,
que produzam almas móveis.
Precisa-se
de engenheiros,
que construam esperanças.
Precisa-se
de advogados,
que defendam a utopia.
Precisa-se
de obstetras,
que façam o parto da luz.
Precisa-se
de odontólogos,
que extraiam a maldade.
Precisa-se
de mágicos,
que distraiam o pessimismo.
Precisa-se
de chefs,
que tenham a receita do perdão.
Precisa-se
de faxineiros,
que limpem as mentes poluídas.
Precisa-se
de adultos,
que saibam brincar.
Precisa-se
de tempo,
para poder perdê-lo, sem culpa.
Precisa-se
de silêncio,
para ouvir a voz do coração.
Precisa-se
de muito pouco,
para entender que tudo o mais é supérfluo.

domingo, 18 de setembro de 2016

Mudando de tecla - Hélcio Maia


A vida é uma sina.
Ela ensina, se você deixar.
Reclamar, reclamar... libere a tecla recl.
Há mar para todo peixe, por mais que você se queixe.
Trocar de penteado ou o guarda-roupa... mudança pouca.
Trancar-se numa espécie de convento?
Experimente entregar-se ao vento.
Repetir para que?
Remoer, ressentir?.
Há tantas vilas que você nunca viu.
Tantos vales.
Um deles valerá a pena.
Resvale no inusitado.
E depois me conte o resultado.

sábado, 17 de setembro de 2016

Campeão olímpico - Luiz E. Ottoni de Menezes


Depois do intenso futebol de muitos anos atrás, fui desacelerando para um joguinho de vôlei, diminuí para corridas no calçadão, passei a apenas caminhar na praia, até que atingi a imobilidade total. Ao perceber a mumificação se aproximando, resolvo reagir e tomo a decisão heroica: vou aprender a nadar. É o esporte completo. E sem impactos. O que mais eu poderia querer?
Instruções recebidas, parto para o obrigatório circuito médico: dermatologista, cardiologista, ecodopplercardiograma e teste ergométrico. Passo com boas notas em coisas de nomes pomposos, tais como respostas cronotrópica e inotrópica, parâmetros hemodinâmicos e metabólicos. Acho que dá até para colocar no currículo!
E bato, então, à porta do Botafogo:
- Sim, claro que pode. Até recomendamos que o candidato faça um teste para se convencer, para ter a certeza de que é esta a modalidade que ele quer praticar. Venha depois de amanhã, que é um dia mais calmo.
Bela acolhida! Reforçou a simpatia que nutro por este clube, que sempre foi meu segundo time.
E no dia D, transbordando de otimismo e cheio de moral, saio de casa já imaginando um possível diálogo alguns meses à frente:
- Mas como ele está bem-disposto! O que é que você anda fazendo, não sai da praia?
- Estou nadando no Botafogo!
Chego lá a caráter: sunga preta e pele branca, não escondendo minha ascendência de países frios. Dia de sol radiante, nenhuma nuvem à vista, um calor infernal. Uma voz interna, sensata, sussurra discretamente: “Isto não vai dar certo”.
Com infinita paciência, o professor alerta aos novatos:
Tudo o que vocês fizeram de esporte até hoje não vale nada dentro d´água. Nada. Começaremos do zero. Atenção com a respiração: inspirar pela boca, expirar pelo nariz. Com ritmo. Vamos primeiro dar uma nadada daqui até lá, só para ver como é que vocês estão.
- Até o outro lado?
- Sim, mas de quatro em quatro braçadas. Podem ir parando para descansar. Se precisar, apoiem na borda.
São, realmente, concessões muito bem-vindas, mas descubro que a raia, para um calouro, parece ter uns dois quilômetros. E, naturalmente, não dá pé. Afinal, estamos numa piscina olímpica! Com os óculos encharcados e embaçados, nem consigo ver a outra borda. Torço para que todos continuem bem ocupados com suas tarefas, sem prestar atenção aos náufragos. Depois de muito esforço, obtenho minha primeira marca: cinquenta metros em quinze minutos, com direito a paradas e a instruções. Deve ser um recorde mundial ao contrário. E reparo que há pessoas na arquibancada. Que estão vendo esses vexames todos!
Ao final de uma hora, exausto e pagando todos os micos possíveis, já começo a duvidar de que seja isto, realmente, o que estou procurando.
Mas em vez de tomar uma decisão sensata, que seria il logo direto para casa, fico rondando por ali e acabo descobrindo que uma aula de hidroginástica começaria em poucos minutos. Talvez isso seja mais interessante ou, confessemos, mais leve. Apresento-me à professora como um possível futuro aluno e peço licença para assistir à aula. Mas sou convidado a participar! Por uma fração de segundo tenho a chance de recusar o convite ou mesmo de sair correndo de lá. Mas, irresponsavelmente, topo e no instante seguinte já estou novamente dentro d´água. Desta vez, amarrado a um flutuador, uma espécie de salva-vidas. Meu entusiasmo ressurge, pois agora não preciso me preocupar nem com respiração nem com a possibilidade de afogamento. Que moleza!
Engano total! Durante aquela interminável hora não degustamos um único segundo de folga. O grupo de ofegantes recebe ordens sem interrupção: - Façam este movimento, agora assim, com o outro braço, prestem atenção, tocando a ponta do pé, o outro pé, mais rápido! Sete, oito, nove, setenta, e um, e dois...
Nos últimos dois minutos de aula um corpo boiando vai se aproximando furtivamente da escada. Os últimos sons me parecem vir de muito, muito longe:
- ... três, dois, um, acabou!
Viva! Sou o primeiro a voltar à terra firme. Sobrevivente. Semisubmerso há duas horas, sob aquele sol inclemente, já havia até adquirido alguma cor: rosa-gringo. Naturalmente, só do peito para cima!
Na falta de macas, resta-me a alternativa de cambalear até o ponto de ônibus. Almoço e apago. Dois dias de cama. Insolação, dor de cabeça, cérebro inundado pela água que entrou pelo nariz, boca e ouvidos, dor no peito, febre, problemas de estômago e intestino. Apenas as pernas escaparam ilesas do massacre. Tentam mover-se, mas ouvem o protesto uníssono de todas as outras partes do corpo:
- Querem andar, vão sozinhas, que nós só levantaremos depois de amanhã!
Oscilando naquela fronteira entre acordado e desmaiado, embaralhava lembranças e pesadelos. Os pensamentos colidiam e se provocavam:
- As olimpíadas estão chegando. Já atingiu os índices? O Cielo está batendo recordes mundiais. Vai encarar?
- Me aguardem!



domingo, 12 de junho de 2016

Um Périplo com Alegria - Ângela Delgado


                                 
Com o invariável início das falas do historiador português que nos acompanhou na viagem, começo:
Ora bom,  o português de cá, fala “difrente”, e, assim, em cada dez palavras, diz apenas seis, como constatou Marcos Linhares, poeta e jornalista hilário que nos fazia rir e chorar.
Portanto, e essa foi a expressão que mais ouvimos em Portugal, os portugueses, como se o bacalhau não lhes bastasse, comem muitas sílabas.
- Ai é?
- É verdad.
Lisboa (Hotel Sana Malhoa) ; Porto (Hotel Nova Galé); Vila Nova de Gaia; Sintra; Viana do Castelo; Batalha; Arouca (Hotel São Pedro), no distrito de Viseu; Aldeia do Espinheiro e seu escondido restaurante “Casa no Campo”, de onde quase voltamos de barriga vazia, se não fosse a esperteza de Mena Filomena em descobrir a entrada; Braga; Alcobaça no distrito de Leiria; Valença; Ponte Vedra, Rianxo e Santiago de Compostela (Hotel Husa Santiago Apostol), estas três já na Galícia, estado autônomo da Espanha (que acredito ser como nossos filhos, que ao atingirem a maioridade, não deixam de ser nossa prole) são encantadoras, assim como nossos novos amigos Concha, Otília e Xurxo, o poeta gatinho que me pagou um delicioso café con leche, além de ter me dado dicas de músicas da Galícia, de Portugal e de Angola, de onde, acidentalmente, descobri mais tarde, Garda, uma cantora/compositora fenomenal. Se a viagem não tivesse valido por tantas outras coisas, só por essa pérola, já teria valido a pena. Tanto é assim que me consolo de ter perdido a máquina fotográfica na viagem , o que me fez ir à Fnac, para outra comprar e, de quebra, adquirir o seu CD. Falando na máquina, como todos sabem, nada se cria e ela se transformou em uma máquina de fazer café, que ganhei em um sorteio na Academia do Bacalhau, não necessariamente nessa ordem. Moral da história: não se regozije muito ao ganhar alguma coisa, pois, logo depois poderá perder algo valioso. Se bem que, no meu caso, a perda resultou em outro achado.

O grupo com o qual viajei “endoideceu meu coração, e agora o que é que eu faço”, cantarolava o português do CD do motorista, o bem humorado e sarado Nelson (tive que lhe traduzir essa expressão), que, por sua vez, teve que explicar aos desantenados brasileiros o significado de “vusviu” (ele vos viu). Além disso, ofereceu-nos, imagine, Champagne e um bolo enorme e divino, em comemoração ao aniversário do Rivera e da “Cília” (Cecília, no português de lá). Não digo que queria ter a receita, pois assim os portugueses pensam que não a quero mais. Digo então que “gostava” de tê-la, mas aí nós é que pensamos se tratar de coisa do passado. Ora bom, estamos, mais do que nunca, precisando do dicionário Lá & Cádo Roldão Simas Filho, marido da “Cília”, geminiana como eu, e que me fez ótima companhia, na ausência de Filomena Caixeta de Abreu, que na cidade do Porto ficou. Uma pena, e cruel seria lhe contar o que perdeu.
       Como por exemplo, as sessões de terapia em nossos trajetos por Portugal afora. As paisagens se sucediam enquanto nos revezávamos ao microfone. Alguns extrovertidos e de excelente memória, recitavam versos, contavam fatos pitorescos e abriam seus corações. O resultado foi uma torrente de risos e lágrimas, inesquecível para o Comendador Alegria a bordo, e para todos nós que vivenciamos esta viagem.  
Carlos Magno, o médico, levou um de seus dez livros Canção da Água e seu charmoso chapéu e me fará outro igual comprar, para dele me lembrar. Como se eu pudesse, um dia, me esquecer de seus olhos tão azuis, ai Jesus! Impressionou a "guitarrista"(no Brasil, violonista) e, quiçá, a baiana que, dizem, não nasce, mas estréia, e não sei se arretada é.
João Alfredo Sinício, nos divertiu com inúmeros trocadilhos: Qual a “difrença” entre o padre e o bule. O primeiro tem muita fé, e o bule é pra “pô” café. Qual é o tour mais caro do mundo? O turbilhão. Completo, então, que o tour “Viagem às Nascentes Portuguesas” foi bem caro, pois foi um turbilhão de emoções. Aqui me lembro de Rui Rasquillo, em seu maravilhoso almoço que nos foi "ofrecido" em Aljubarrota, questionando sua mulher, a perfeita anfitriã Maria Manuel, sobre saudades, preferindo ele as memórias. Mas, estas as temos de coisas boas e más, enquanto que saudades são só de bons momentos, como a viagem em solidariedade a Portugal. 



José Jerônimo Ribeiro Rivera, que, para alguns, anônimo era, mudou de domicílio: mora agora em nossos corações. Levou na viagem sua tradução Poesia Francesa - Pequena Antologia Bilíngue, e já, já, vou ao Google copiar a linda “Balada da neve” de Augusto Gil, recitada por ele de cor.
Não sei se, como disse Fernando Pessoa, também citado de cor, pelo Rivera, “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente", Santiago Naud, nosso Google ambulante de risonha fisionomia, querido por todos, além de ter levado na bagagem seus 47 poemas lusitanos, proferia consistentes depoimentos, enquanto pervagávamos por belas paisagens.
 Roseli F. de Arruda sorri com olhos rasgados e falou, em Portugal como em São José do Rio Preto, com uma das vozes mais maviosas que já ouvi, de seu livro Mathyê, o senhor das quatro direções.
O jornalista e historiador Manuel Mendes e sua terna Lúcia, uma gracinha de casal. Ele, do alto de seus 86 anos, com receio de se fazer esperar, era um dos primeiros a chegar. Levou em sua bagagem Meu Testemunho de Brasília.
Carlos Jorge Mota, o culto historiador, prestimoso inda por cima, que as costas, um dia, nos deu, acho que magoado. Esses brasileiros não têm jeito. Antes de lhe agradecer por tudo o que fez por nós, quero lhe reafirmar que as piadas sobre portugueses e a imitação de seu falar não são feitos por maldade, mas pela graça da coisa. Nada temos contra nossos antepassados. Apenas contra os argentinos. Todo brasileiro que pisar o solo lusitano sairá dele amando Portugal e quererá a ele retornar. Como meu pai que, estando um dia na cidade do Porto, escreveu: 
"Jamais se me apagará da memória o espetáculo que tive diante dos olhos, quando pude mitigar aquela estranha saudade de uma cidade que visitava pela primeira vez..."
;Last but not least" , Victor Alegria, nosso impagável comandante-em-chefe, de quem sorvemos as palavras, a figura mais incrível e divertida que todos profundamente amamos, a quem agradeço imensamente por esta inesquecível viagem, a melhor de todas de minha vida. Marcos Linhares, por outras palavras, disse que após ter convivido com Victor Alegria, compreendeu a razão de ser da grandiosidade de seu filho Tagore. Faço minhas suas palavras, pois o meu querido Tagore é de ouro. Tem também a quem puxar. Como sua mãe Dona Ísis é igualmente competente, sua herança e legado sanguíneo e espiritual é dos melhores.
Tive que terminar esse relato, pois já passava da meia noite e cedo era preciso acordar, do contrário, o culto e prestativo professor e historiador Armando Cristóvão Ribeiro, com sua pele lisinha notada por  Mena Filomena, armaria um fuzuê, mandando tudo para os “Ares e Mares”, revista que juntamente com Roseli e Edilene, será literalmente lançada aos ares e mares e  distribuída em oito países, ou seja, para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP, da qual fazem parte Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e Timor Leste.
Mas, preciso contar ainda sobre nosso encontro em Lisboa com o simpático Diretor-Geral da Biblioteca Nacional de Portugal, Dr.Jorge Couto, que nos recebeu na imensa mesa oval do salão nobre, onde cada um falou dos livros que ali deixaríamos, sobre o prazer de ter ouvido um violonista português, que nos encantou com suas músicas na UNICEPE, e sobre o privilégio de assistir a um concerto de órgão, dado exclusivamente para nós, em um convento em Arouca, cujo único convidado alheio ao grupo fora um cantor lírico, com recital agendado em Barcelona, vindo expressamente de Lisboa, para assistir ao evento. Após a alimentação espiritual, ainda no convento serviram-nos um magnífico jantar disposto em uma enorme mesa de pedra, com direito a lareira acesa.






Quando, no rodízio da vida, esta nos ofertar, em sua bandeja de tristezas e alegrias ou na montanha russa de altos e baixos, de vacas gordas e magras, arouquesas ou não, façam o que farei, fechem seus olhos e transportem-se para um certo ônibus recheado de poetas.
Termino, dizendo que, por lutar contra a tendência do tempo, cada vez mais veloz, em que se decretou, e muita gente crê nisto, que a véspera já caducou, a antevéspera é história e imemorial o ocorrido no ano passado, resolvi retirar da estante o livro que levei em minha bagagem, Ópera do Poeta e do Bárbarovertido para o francês, em uma tentativa de torná-lo atraente aos francófonos. Afinal, 1976, data de sua primeira e restrita publicação, embora pertença ao século passado, não está tão longe assim, justamente pela velocidade do tempo. Foi outro dia mesmo...

domingo, 1 de maio de 2016

Rosalinda - Mia Couto

(Conto abreviado)

     ... Rosalinda comprava flores quando viu chegar uma moça bela que se abeirou da campa de Jacinto e ali se prostrou, em mostrada tristeza. Rosalinda estranhou. Aquela era uma jovem muito concreta, suprametida.
     - Essa dever ser Dorinha, a outra última dele.
     A viúva chegou-se mais perto mas sem se fazer ver.. Parou em campa vizinha, ficou espreitando. A outra exibia um punhado de lágrimas. Rosalinda se decidiu. Dirigiu-se ao Serviço Funerário e solicitou que mudassem o lugar do caixão, trocassem o "Aqui jaz".
      - A senhora pretende transladar os restos mortais?
     E, logo o funcionário lhe mostrou os longos papeis que a superavam. A viúva insistiu. Era só uma mudançazita, uns metritos. O empregado explicou, havia as competências, os deferimentos. A viúva desistiu. Mas apenas se fingiu vencida. Voltou à noitinha, trazendo Salomão, o sobrinho. Às vistas da intenção, o miúdo se assustou.
     - Mas, tia, é para fazer o quê? Desenterrar o tio Jacinto?
     Não, sossegou ela. Era só para trocarmos as inscrições dos vizinhos túmulos.
Salomão tremia e a viúva tomou a dianteira;
      - Eu sempre disse: Lume pedido nunca acende.
     Jacinto, translapidado, devia se admirar daquelas andanças. Agora, só eu sei qual é a sua verdadeira tabuleta, malandro. Rosalinda sacudiu as mortais poeiras, se administrou o devido perdão. A paraviúva que dedicasse seus ranhos ao vizinho, o de morte anexa.
     Aconteceu como ela previra. No dia seguinte, a intrusa compareceu e entregou seu sentimento à campa errada. Rosalinda nutria-se de risos, enquanto espiava o equívoco.
     - Em vida me enganaram. Agora é o meu troco...

domingo, 10 de abril de 2016

O MENINO E OS SANTOS REIS - RAQUEL DE QUEIROZ

De todos os personagens do presépio, os prediletos do menino são os santos Reis Magos, que ele aliás chama de Reis Magros. E entre os três, acha que o mais bonzinho é Baltazar, o negro, porque só ele se ajoelha e tem na mão a caixinha mais bonita.
     Entretanto, reclama porque, com aquelas vestes flutuantes, os santos Reis não parecem tão magros que justifiquem o nome. Só se eles comeram tanto peru, rabanada, coquinho de Natal, que ficaram gordos. Peru engorda, só engorda menos do que leite, porque leite é feito para bezerrinho e bezerrinho tem que ser gordo. Também, o que engorda muito é banana e faz ficar forte, porque tem vitamina do a-bê-cê, e a pessoa por isso mesmo aprende a ler mais depressa. Depois dos Reis, a coisa mais bonita do presépio é a Estrela Guia, que ele de começo chamava estrela-de-rabo. Advertido pela mãe, passou a chamá-la de "cometa". A avó procurou insistir em Estrela Guia, mas ele anda muito entusiasmado com esse negócio de cometa e adora mostrar erudição.
     Mas implica com os camelos. Não há quem o convença de que o camelo é uma nobre besta, afeita milenarmente ao transporte de riquezas e homens pelos caminhos mais antigos da terra. No fundo, ele gostaria de substituir os camelos dos Magos por três bons caminhões - pensando que ficaria dono dos caminhões quando se desmontasse o presépio. Como meio termo, põe ao lado dos Reis uns cavalinhos de plástico. Cavalo sim, é a flor dos animais, companheiro dos caubóis e vencedor do faroeste, Se camelo é bom de sela, por que caubói não monta em camelo? Responda a esta! E o espetáculo que lhe proporcionou o camelo do Jardim Zoológico o confirmou nessa descrença. Aquele bicho desengonçado, de pêlo a despegar pelas costelas, feio de corpo, antipático de cara, estúpido de expressão, nunca, mas nunquinha, podia chegar nem perto da manjedoura de Belém.
     A propósito, essa expressão manjedoura tem suscitado muitas discussões. Não vê que na escola maternal onde ele "estuda" lhe disseram que o Menino nasceu numa estrebaria? Parece que a mãe achou feio estrebaria e ensinou manjedoura. A avó, ignorante dos debates anteriores, falou em gruta de Belém. Aí complicou tudo. Afinal tudo não queria dizer a mesma coisa? Então para que tanta palavra diferente? Acabou por se descobrirem uma quarta fórmula: presépio. Ele optou por presépio depois de verificar que ninguém sabia direito o que era. E palavra que a gente não sabe o que é, é mais bonita.
     Vencida essa etapa estrebaria-manjedoura-gruta-presépio, entrou-se em outra, igualmente delicada: as ofertas ao Menino. O ouro, o incenso, a mirra. Por estranho que pareça, o que ele entendeu melhor foi o incenso. Não vê que no apartamento vizinho mora um senhor meio excêntrico que tem o hábito de queimar incenso a certas horas da tarde ou da noite, e o garoto, muito atento a impressões sensoriais, gosta do cheiro? Incenso, pois, ele aprova. Mas a mirra? Verifica-se que mesmo os grandes não sabem explicar com a devida clareza o que é mirra. Há debates, vai-se ao dicionário. Mirra é uma essência vegetal muito apreciada no Oriente, com a qual se faz um unguento. Passando rapidamente pelas questões suscitadas pela palavra Oriente (lugar onde o sol nasce; lugar onde o sol se põe; porque não nasce em outras partes, ao  norte ou ao sul; se o sol nasce o sol morre? Como é que ele nasce todo o dia, tem gente que que pode nascer todo o dia? E morrer, só morre quem fica velho, mas menino às vezes também morre sem precisar de ficar velho, quando é atropelado, automóvel também atropela velho; ele tem cinco anos mas faz muito tempo que conhece sinal verde, vermelho e até amarelo), o que é UNGUENTO?
     Unguento? Bem, é uma pomada. Pomada! Então o Rei Magro vai passar pomada no Menino Jesus? Coitadinho! Será que ele está doente, tem ferida, tem coceira, perebinha? Pomada é a coisa pior de todas as coisas ruins! Não, unguento de mirra  é só para cheirar, não é remédio, é perfume. Ora, não convence. Muito parecido com quando lhe querem impingir pomada de tubinho para as coceiras alérgicas. Não, neste Menino Jesus que é meu, ninguém passa pomada.
     A conversa caía em crise e então se apelou para a terceira dádiva, o ouro. Que ele também estranhava. Ouro como? Colar? Anel? Mas criancinha pequena não usa essas coisas. Menina pode ser, assim mesmo quando já é maior. Menino nunca. Para que o menino quer ouro?  Alguém sugere que talvez para dar esmola. Mas ele sabe que esmola a gente dá é com dinheiro. Pobre é como criança, não usa relógio nem anel nem pulseira nem... Se dá é nota de cinco ou então comida ou leite ou roupa ou cobertor. Nunca ninguém viu dar coisa de ouro de esmola! Admiro esse Rei Magro!
     Para o desviar do ouro e seus problemas, a mãe pela centésima vez diz que não é magro, é Mago. Mas por que Mago? Mago quem diz é criança que não sabe falar - diz mago, pato, for, em lugar de magro, prato, flor. Hein, por que é Mago? Q que é mesmo Mago? Bem - Mago é assim uma espécie de feiticeiro... Mas, feiticeiro não é ruim? E os Reis Magos são ruins? Este problema de ética está sempre presente nas suas conversas: elefante é bicho ruim ou bicho bom? A Rainha da Inglaterra é rainha boa ou má? Baleia é boa ou ruim? Como é que a gente sabe que um cachorro é ruim? Mocinho é bom, bandido é ruim. Se os magos são feiticeiros bons, quem é ruim?
     - Bem, ruim era Herodes.
     - Herodes? Esse eu nunca ouvi falar. (Quem lhe contou a história do Natal, expurgou-a da matança dos inocentes.) Por que Herodes era mau? Ah, mandou matar as crianças... puxa, era mauzinho, hein?
Mas você sabe quem era mau, mas muito mau mesmo? É aquele dragão de S.Jorge, que bota fogo e fumaça pelas ventas. Quando eu tenho raiva de uma pessoa, tenho vontade de botar fogo pelas ventas também!
     Mas se os Reis Magros - oh, Magos - eram feiticeiros, por que é que eles andavam nesses camelos tão mixurucas? Por que não arranjaram um gênio para carregá-los como o da lâmpada do Aladim? E por falar no Aladim...

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Lygia Fagundes Telles - Ângela Delgado

     Na rede, lendo a recém indicada pelo Brasil ao prêmio Nobel. Atenção, pronuncia-se como dúplex e tríplex.
    O primeiro dela eu amei.
    O segundo tem frases ótimas e engraçadas, em meio a uma e outra página relatando delírios de drogados tão deprimentes, que, se o livro não fosse de quem é, eu o teria fechado.
     Dei as instruções básicas à nova faxineira e agora ia me levantar, para lhe falar isso ou aquilo,
mas quer saber? Ela achará tudo. Lygia está me puxando, me detendo.
     Voltemos à leitura:
     "Ouço duzentos e noventa e nove vezes o mesmo disco, lembro poesias, dou piruetas, sonho, invento, abro todos os portões e quando vejo a alegria está instalada em mim."
     Parece alguém que está se enxergando cada vez mais.
     Um pouquinho mais adiante:
     "Lembro da ampulheta quebrada, entrei no escritório do pai pra pegar o lápis vermelho e esbarrei no vidro do tempo. Fiquei em pânico vendo o tempo estacionado no chão: dois punhados de areia e os cacos. Passado e futuro. E eu? Onde ficava eu agora que o era e o será se despedaçaram? Só o funil da ampulheta resistira e no funil, o grão de areia em trânsito sem se comprometer com os extremos."
     "A volúpia com que os homens criam e descriam a fatalidade. E depois atribuem a responsabilidade aos deuses."
      "Apenas um terço de nós é visível. O resto não se vê. O avesso.
Deve ter ficado satisfeita com sua alta porcentagem de mistério."
      Está explicada a invisibilidade. Quem mandou ser tão misteriosa?
       "Tacto com c para impedir a precipitação, certas palavras devem ter seu degrau, medida contra afobados."
       "Todo aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar seu prejuízo. Não cumprindo a obrigação, responde o devedor por perdas e danos." ' Isto é uma norma. Norma jurídica. Por negligência sua perdi a alegria.' - falou a personagem estudante de Direito.
     "Um telefonema hoje, um encontro rápido amanhã, uma esperança para Deus sabe quando."
     E perco a esperança de achar o trecho em que ela fala da filosofia do ser ou estar...
Resumindo, o estilo é sumamente magnético.
     O terceiro, em breve.
    Ouvindo Aznavour, vou tão feliz dirigindo rumo à Biblioteca, para pegar outros livros dessa grande escritora, que digo a mim mesma: Menos, menos! Você sabe como a vida cobra cada alegria, sabe do círculo vicioso, alegria, tristeza, alegria, tristeza, per omnia saecula saeculorum...
   "Dominus vobiscum. Et cum spirito tuo. Ite, missa est."
   

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Quod erat demonstrandum - Ângela Delgado

    Apenas inaugurado o consultório, ela se apossou do divã e nele se instalou qual posseira (?), provando sem dúvida, que a vida era parecida com moedas! Era o óbvio mostrando a cara ou sua coroa.
   - E o que ela disse?
   - Como em um confessionário, a ética não permite indiscrições, mas só para o histórico, foi mencionado que ela constantemente entra na roda de seus personagens, a quem dá as mãos no girar do ritmo. Eureca! Personagens de livros, embora sem carne, osso e alma, também fazem parte da vida, graças a Deus; são linhas que cortam nó górdio, encantando, e compensando carências.
     Por hoje, seu tempo terminou. Veremos em que dará o desenrolar deste coração. Esperemos que, ao ter alta, você se conscientize de que as músicas arrebatadoras e os personagens que a encantam são o fermento de seu mundo. Mundo este que se revela um banquete, onde cogumelos venenosos e alimentos indigestos devem ser evitados. Quod erat demonstrandum é que se o inferno são os outros, o céu também são os demais.                                                                                                                 
      A vida nesse ponto já adquiriu novo sabor para ambos, "médico e paciente". No entanto, ele terá que refletir sobre o que ela declarou: apaixonada por si própria ela não se machuca. Autoestima levada ao extremo? O melhor é de fato dar por encerrada a consulta, como acima foi decretado. Não é emocionante saber que amanhã teremos ou escreveremos outro capítulo, no qual seremos leitores e personagens, a um só tempo? E como é bom virar a página! Desperdiçar a vida... Eu, hein? Aproveito até um pedaço de pão ou água pra chuchu, vou lá jogar fora uma vida?!   
     - Que diabo significa isso de água pra chuchu, se ele não se cozinha com água , pois ficariaaguado e sem graça? Tem que ser só refogado.    
     - É que adoro usar expressões da era dos Beatles. Você não sabe que chuchu se propaga com a maior facilidade? Daí a metáfora da abundancia, capisci?
     Interrompidas as sessões de "análise",  não conseguindo largar "Ciranda de pedra" de Lygia Fagundes Telles, ele foi comigo à padaria, Alguém disse que a gente não morre, enquanto não acaba de ler o que se está lendo. Sendo assim, não morrerei nunca, pois eles se sucedem e, de encantamento em encantamento, me viciei. span style="font-family: "calibri" , sans-serif; font-size: 18.6667px; line-height: 19.9733px;">     "