quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Canoa furada - Luiz E. Ottoni de Menezes

CANOA FURADA

Às vezes embarcamos numa.   
Chegamos a tempo, achamos nossos lugares e ficamos observando.
Os músicos se acomodam e experimentam os instrumentos.  Cada um escolhe suas notas.  Em conjunto, produzem o caos.  Depois, em longa e disciplinada fila, surge o coro.  Oitenta vozes, que gastam um bom tempo para se posicionar.  Uma população está no palco, talvez umas cento e cinquenta pessoas.
E o concerto começa.  A platéia se aquieta e presta toda a atenção.  Após alguns minutos começo a me preocupar com o andamento muito lento, mas luto por adotar uma atitude otimista, torcendo para que logo brotem cores e vida naquela música.  Faço uma caridosa concessão, mas a orquestra permanece vagarosa e morfética.  O que é que estamos fazendo aqui?  Dois incautos pegos de surpresa.
De fato, não era nada disso o que queríamos. Tínhamos ido à bilheteria procurar entradas para uma noite preciosíssima: Nelson Freire tocando Beethoven, com regência do Isaac Karabtchevsky.  Mas justamente na véspera do concerto, olhem só que santa inocência!  É lógico que já estava tudo vendido.  Como consolação, estamos aqui ouvindo Dvorák.  Consolação?
Ondas periódicas de sono me embalam lentamente, mas faço força para manter os olhos abertos.   A cabeça já deu três ou quatro caídas, seguidas daquele espanto ao perceber que estou em pleno Theatro Municipal!
Em cima do palco há um retângulo onde correm as legendas:
“Faz essas chagas lacerar-me o coração e esta cruz inebriar-me”.
É verdade, juro, copiei isto nas costas do ingresso. 
“Inflamado e aceso, ó virgem, seja eu por ti defendido lá no dia do juízo”.
E tudo isso cantado em tcheco, suponho!  Muito lentamente, zzzzzz. 
Viro para o lado, dou uma piscada para a musa, trocamos olhares cúmplices e balançamos as cabeças em sinal de total desapontamento.  Olho para o teto, para o candelabro, aliás, belíssimo, para as cortinas, para a platéia, imagino quantos estarão roncando, olho para o palco e vejo que a segunda violinista luta com seu vestido curto.  As pernas não são lá essas coisas, mas são as únicas à vista.  Nos “pianíssimos”, e são muitos, ela tenta, sem sucesso, esticar o vestido até os joelhos.  Ao final dos “allegros”, mal consegue se arrumar, já muito preocupada.  Num “forte”, vai ao desespero.  Não, o concerto não teve nenhum “fortíssimo”.
Duas gordas solistas custam a achar os copinhos d’água.  Estão no chão e bem junto das cadeiras, mas perdidos no meio de tantos metros de vestidos longos. 
E não há um piano!  Não poderia haver um piano, pergunto revoltado, que pudesse dar alguma solidez a esta orquestra molenga?  Então vocês estudam e ensaiam não sei quantas horas para vir aqui tocar isso?  Uma hora e meia de música lenta, pastosa?  Cremosa?
Crianças e adultos dormem tranquilamente.  Pelo menos uns mil…
De repente, percebo que o trompista sumiu.  Talvez tenha caído da cadeira!  Sim, ele estava lá na última fila, ao lado da tuba.  Tenho certeza!  Deve agora estar dormindo no chão.  Esboço um sorriso ao imaginar o susto que levará quando o vizinho soprar com força!
Finalmente, o letreiro mostra a tão aguardada palavra “Amém”!  Corrijo depressa minha postura na poltrona, recupero o ânimo e lanço a idéia de irmos tomar um chope.
Mas ainda sofreríamos um bocado, pois o Amém precisaria de dez minutos para ser pronunciado.  Sim, quatrocentas colcheias para cantar quatro letras.
Dois chopes, por favor!
Um pouco depois entramos em casa, já correndo em direção aos CDs.  Rápido, rápido, um antídoto, uma dose forte de Chopin!   Um grande piano, depressa!  O que temos aqui na UTI? 
A Grande Polonaise Brilhante, é claro!  Duas aplicações!