segunda-feira, 6 de novembro de 2017

As rãs, o pintassilgo e a coruja - Rubem Alves



     Era uma vez um bando de rãs – embora sua aparência sugira o contrário – são seres poéticos. Sobre uma rãzinha, Matsuo Bashô (1644-1694) escreveu o seu haicai: “Ah, o velho lago./De repente a rã no ar/e o tchibum na água...” As rãs da nossa história não saltavam em lagos, porque viviam presas no fundo de um poço. Só que elas não sabiam que estavam presas no poço, por pensar que o universo era daquele jeito. (Muitas pessoas vivem também presas no fundo de poços, sem se dar conta disso...)
     Tudo começara muito tempo antes, num momento de enlevo amoroso. Um casal de rãs apaixonadas ia saltando numa noite de lua cheia em busca de um ninho onde fazer amor. Olhavam para a lua romântica e não viram o buraco à sua frente (isso acontece frequentemente com os apaixonados...). O pulo seguinte os levou da luz romântica da lua ao escuro do fundo do poço. Pularam muito, o mais que podiam, para sair do poço. Inutilmente. O poço era muito fundo.
     Resolveram, então, transformar sua desdita em felicidade. Como naqueles filmes em que um lindo jovem e uma linda jovem naufragam e vão parar numa ilha paradisíaca de onde não podem sair. Lembro até do nome do filme: Numa ilha com você... Como não havia o que fazer no fundo do poço, puseram-se freneticamente a fazer amor, não por luxúria, mas para matar o tempo. Frequentemente, na vida dos casais, acontece o mesmo: faz-se amor não por amor, mas para combater o tédio. O resultado foi o esperado: rãzinhas e mais rãzinhas. O poço se encheu de rãs e o casal solitário se transformou numa grande sociedade de rãs.
     Como acontece com todos os seres vivos, o casal original, o Adão e a Eva das rãs, ficou velho e morreu. Com isso, morreram os únicos que tinham memória do mundo de fora. As rãs-filhas, sem memória da beleza do mundo, pensavam que o poço era tudo o que havia no universo. E o que havia lá dentro era lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões... Assim, suas cabeças só pensavam lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões.
    Aconteceu que, numa manhã ensolarada, voava por aqueles campos um pintassilgo que, passando perto do poço, ouviu a orquestra de rãs coaxando lá no fundo. Curioso, ele baixou o seu voo e entrou. Foi um grande susto para as rãs, que pensavam ser elas os únicos habitantes do universo. Algumas rãs disseram que se tratava de um extrapoço (pois não há extraterrestres?). Outras, que era alma do outro mundo. Umas poucas, de índole mística, pensaram tratar-se de um anjo. E outras havia que, tendo lido Freud, afirmavam que o pintassilgo era uma alucinação coletiva.
     O pintassilgo, penalizado da triste condição das rãs (triste para ele, que conhecia as belezas do mundo; mas as rãs, elas mesmas, que só conheciam o fundo do poço, estavam muito felizes...), começou a cantar: cantou flores, cantou rios, cantou nuvens, cantou pássaros, cantou borboletas. O que mais fascinou as rãs foi pensar que havia animais que não pulavam como elas: animais que voavam como o pintassilgo. As rãs se dividiram. Os sociólogos fizeram uma pesquisa. O resultado foi: 45% das rãs achavam que o passarinho era doido, pois falava sobre coisas que todas as rãs em juízo perfeito sabiam ser fantasia; 50% concordavam com os teóricos da psicanálise – o dito passarinho, que se sabe não existir, por não existirem coisas com asas, não passava de uma alucinação; somente 5% das rãs acreditaram no pintassilgo. E uma coisa curiosa aconteceu com estas: começaram a nascer asas em suas costas, asas como as do pintassilgo. E elas viraram pássaros – meio desajeitados, é bem verdade. Mas não importa. O fato é que se puseram a voar e saíram do poço. O pintassilgo, sentindo-se rejeitado por 95% da população de rãs, achou prudente ir embora para nunca mais voltar. E assim ficaram as rãs, pelo resto de suas vidas, sem o canto do pintassilgo.
     Corujas, como se sabe, são aves noturnas de rapina. Caçam animais no escuro. Pois o pintassilgo estava doido para contar sobre as rãs no fundo do poço. Viu uma coruja num galho de árvore. Chegou perto dela e lhe contou sobre as rãs. Rãs, como se sabe, são um deleite para o paladar. Até os humanos as apreciam, especialmente fritas. Ouvindo falar de um punhado de rãs, a coruja abriu os olhos, prestou atenção e pensou: “tenho comida garantida para a próxima estação”.
     Caída a noite, bateu suas asas e entrou dentro do poço. Noite ou dia, não fazia diferença: no poço era sempre escuro. Chegando lá, foi outro susto para as rãs. E a coruja, que não era boba, nada falou sobre as belezas do mundo de fora. Se as rãs acreditassem num mundo cheio de coisas bonitas, era possível que começassem a ter esperança. E é a esperança que faz crescer asas nas costas não só das rãs, como também de todos os bichos, inclusive dos homens. Com asas nas costas, as rãs se transformariam em pássaros, voariam, sairiam do poço e iriam fazer tchibum na lagoa. E na lagoa estariam a salvo do seu bico. “Esqueçam as bobagens que o pintassilgo cantou”, disse a coruja. “O pintassilgo é um poeta e fala sobre coisas que não existem. O que realmente importa é que vocês compreendam os seus próprios pensamentos. Podem acreditar em mim. As corujas, na literatura, são símbolos da sabedoria. Eu sou sábia.”
     A coruja iniciou, então, um detalhado processo de análise das ideias das rãs. Mas, como elas só conheciam lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões, o resultado da análise era sempre lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões – reelaborados, é bem verdade. E assim aconteceu. As rãs, através dos anos de análise, foram ficando cada vez mais “resolvidas” quanto a lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões. E se esqueceram das belezas cantadas pelo pintassilgo poeta. A coruja, por sua vez, foi ficando cada vez mais gorda, enquanto, a intervalos regulares, uma rã desaparecia...
     As histórias – coisas que nunca aconteceram – têm o poder de nos ajudar a compreender as coisas que acontecem. Esta história, pura brincadeira, é sobre nós mesmos. Somos rãs no fundo do poço. Poços podem ser a casa, o casamento, o emprego, a bolsa de valores, a religião, as superstições, as memórias... O fundo do poço pode também ser a própria alma. Para entender a alma, Platão inventou uma estória parecida com a das rãs. Ele nos descreveu como prisioneiros acorrentados no fundo de uma caverna, com as costas voltadas para a entrada. Nessa posição, não vemos o mundo lá fora (como as rãs), mas apenas as sombras deste mundo, projetadas na parede à nossa frente.
     De que forma podemos quebrar a corrente que só nos permite ver as sombras? Qual o poder que dá asas às rãs, para que elas saiam do poço e vejam o mundo de fora?
     Disse Bernardo Soares que não vemos o que vemos. Vemos o que somos. Só veem as belezas do mundo aqueles que têm belezas dentro de si. Com o que concordaria Ângelus Silésius, místico e poeta que viveu no século XVII, que dizia que, a menos que tenhamos o paraíso dentro de nós, não há forma de encontrá-lo fora de nós mesmos.
     Essa é a questão central da terapia: abrir os olhos aos cegos.
     Bachelard – maravilhoso pintassilgo – dizia que um psicanalista é uma pessoa que, ao receber do seu cliente uma rosa, volta-se para ele e lhe pergunta: “E o esterco, onde está?”. Como se o abismo da alma, fosse um esgoto! Essa visão terapêutica tem suas origens na psicologia do inquisidor que pressupunha que aquele que estava sendo interrogado mentia sempre. Assim, tudo o que ele dissesse de bondade e beleza não passava de máscara, disfarce para o pecado escondido. Sua tarefa era sistematicamente destruir a bela máscara para chegar ao rosto horrível: da rosa para o esterco.
     A essa visão sinistra do inconsciente, Bachelard contrapõe “um inconsciente tranquilo, sem pesadelos...”. Bachelard, se psicanalista fosse, ao receber esterco do seu paciente, perguntaria, com um sorriso: “E a rosa, onde está?”. A tarefa do terapeuta, então, não pode ser compreendida como uma infinita análise de esterco, mas como um alegre cultivo de flores. Há, de fato, no fundo do poço, lama de cujas profundezas sobem bolhas malcheirosas. Mas nesse poço floresce o lótus imaculadamente branco...

     O que salva não é a análise da lama. O que salva é a contemplação do lótus.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Vida - Ângela Delgado

A vida é rodízio obrigatório
de contraditório cardápio
oferecem-nos alegrias
acompanhadas de tristezas

como se fosse a conta.
ora degustamos aconchegados na cadeira
ora levamos uma rasteira

Assim seguimos vida afora.
Remoendo neste barco?
Se mime, não rumine.

sábado, 2 de setembro de 2017

Uma crônica de Jacques Prévert - Ângela Delgado

 Ontem foi uma data triste, pois fazia um ano que um irmão muito querido se fora, mas ao final do dia, lendo na cama um livro de Jacques Prévert, pude rir com sua crônica:                                                                             
                               "  O professor
Hamlet!
                       O aluno Hamlet (tendo um sobressalto)         
 ... Hein... O quê... Desculpe... O que aconteceu...  O que houve...

                           O professor (descontente)
 Você não pode responder “presente” como todo o mundo? Impossível, você ainda está nas nuvens.
                                  
                           O aluno Hamlet

 Estar ou não estar nas nuvens!
                                
                          O professor

Basta. Vamos ao ponto. Conjugue o verbo ser, como todo o mundo, é tudo o que peço.
       
                     O aluno Hamlet
 To be...
                         
                     O professor

Em francês, por favor, como todo mundo.

                    O aluno Hamlet

Está bem, professor (ele conjuga) :
Eu sou ou não sou
Você é ou não é
Ele é ou não é
Nós somos ou não somos...
                                
                         O professor
                  (bastante descontente)

Mas você não está aqui, meu pobre amigo!

                       O aluno Hamlet

É isso, professor,
Eu estou “onde” não estou.
E, no fundo, hein, pensando bem,
Estar “onde” não se está
Talvez seja também a questão."


Não sei se foi engraçado para vocês ou se eu é que estava precisando rir.
Como há um probleminha de tradução, porque, em francês, a palavra “ou” é homônima de “onde”, transcreverei o texto original:

                                    Le professeur
 Hamlet!
                                   L´élève Hamlet         
                                     (sursautant)

 ... Hein... Quoi... Pardon... Qu´est-ce qui se passe... Qu´est-ce qu´il y a... Qu´est-ce que c´est?
                            
                                     Le professeur
                                     (mécontent)

Vous ne pouvez pas répondre “présent” comme tout le monde? Pas possible, vous êtes encore dans les nuages.

                                        L´élève Hamlet

 Être ou ne pas être dans les nuages!

                                       Le professeur

  Suffit. Pas tant de manières. Et conjuguez-moi le verbe être, comme tout le monde, c´est tout ce que je vous demande.
                         ]
                                       L´élève Hamlet
To be...
                    
                                       Le professeur
                          
En français, s´il vous plaît, comme tout le monde.

                                         L´élève Hamlet
  
 Bien, monsieur. (Il conjugue:)
Je suis ou je ne suis pas
Tu es ou tu n´es pas
Il est ou il n´est pas
Nous sommes ou nous ne sommes pas...

                                     Le professeur
                              (excessivement mécontent)      
]     
Mais c´est vous qui n´y êtes pas, mon pauvre ami!

                                    L´élève Hamlet

C´est exact, monsieur le professeur,
Je suis “où” je ne suis pas
Et, dans le fond, hein, à la réflexion,
Être “où” ne pas être

C´est peut-être aussi la question.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Carta aberta à Unb - Ângela Delgado



     Imagine a emoção de um estudante, após grande esforço e muita ansiedade, ser aprovado a uma vaga na Faculdade.
     O dia D chega. Consegue ca
rona, mas, como tantos outros, poderia ter ido em pé ou apertado em um ônibus. Está intimamente emocionado, tenso talvez. E com certeza, cheio de expectativas pelo "desembarque" ou aula inaugural, momento em que se inicia nova etapa em sua vida.
     A realidade, porém, raramente é o show que deveria ser. Ela nos envergonha cada vez mais.
     Tal um anfitrião, é dever do educador receber bem o futuro professor, matemático, médico, engenheiro, arquiteto, administrador, ou seja lá qual a pretensão do calouro - alicerce de um país - como igualmente auxiliá-lo, motivando-o a estudar, pesquisar, progredir até à sua formação. É essa a missão e o mais nobre dever do docente.           
    A propósito, para isso é pago.                                                                                     Em uma empresa aérea, o "no-show" ocasiona multa, mas a professora, descumprindo sua parte, que consiste em dar uma bela aula, fica imune. Foi operada. Ao que parece, não de emergência, pois o funcionário informara que ela está de atestado. Será que, em um mês de férias, faltou tempo e sensibilidade para a comunicação prévia à secretaria de seu impedimento para se apresentar, em tão importante dia; esta prover um substituto; adiar o início das aulas ou, pelo menos, avisar aos alunos?                                 O mínimo que se espera de uma autoridade é o bom exemplo. Do contrário, como exigir respeito, se é a primeira a desrespeitar?                                                                      A meu ver, dependendo das desculpas, esse descaso seria caso de séria advertência, suspensão ou, havendo reincidência, demissão por justíssima causa.                                 Só que não estão nem aí. A agravante é ter isso já ocorrido outras vezes.
  Por isso, não podemos nos omitir e continuar a "aceitar" o inaceitável.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Uma estada no Paraíso - Ângela Delgado

   No avião, rumo a Lisboa, o deleite com o Escondidinho de Carne e a sobremesa teriam me levado às alturas, se lá já não estivesse, rindo com o comissário de bordo que, ao me ouvir elogiar o menu, retrucou ter sido feito por ele. Kkkk.
   Claro “kã” (como pronuncia um português o nosso “que”) se tivesse ouvido uma reclamação, em vez de arrogar-se a autoria da refeição, com certeza, teria dito “kã” comunicaria  a queixa à Tap Portugal.
   Dali em diante, após o encontro dos irmãos e cunhados, o sucedido foi um festival de gargalhadas entremeadas com copos de vinho, Mojitos e Piñas Coladas.
   Mais tarde, no elevador do shopping “El Corte Inglés”, duas raparigas conversavam. Quando saíram, em andar inferior ao que nos dirigíamos, perguntei:
     - Elas não estavam falando português, estavam?
     - Sim< respondeu uma portuguesa. Infelizmente, as jovens falam assim hoje!
     Fiquei pasma, pareciam oriundas da Hrvatska, ou seja, da Croácia.
     De volta ao hotel, sabedor da existência de uma escada rolante ligando o Chiado ao Bairro Alto, indagamos sua localização à recepcionista. Como a portuguesa arregalara os olhos, dizendo não existir tal coisa, nós nos espantamos mais ainda, e eu, com o intuito  de lhe elucidar o significado de “escada rolante”, já que me parecera “kã” em Portugal, usavam expressão diferente para tal comodidade, disse-lhe, que enquanto ficávamos parados, a escada nos transportava de um lugar a outro.
     - Não querem mais nada!
Desistimos e saímos incrédulos do hotel, eu com pena de não ter levado o dicionário de português "Lá como cá" e suspeitando de que a portuguesa apenas se divertira com brasileiros.
        Em uma manhã de vento forte em que nos dirigíamos à praia, foi lembrada uma historinha de uma senhora, beirando os oitenta, que estava preocupada em segurar o chapéu, enquanto o vento levantava sua saia. Alertada do fato, respondeu que o que ele exibia, ah, tinha quase oitenta anos, enquanto seu chapéu só uma semana!










  Ao final de um mês a me deliciar com Pastéis de feijão; Babas de camelo; Natas do céu; Samosas  - um pastel indiano -  e outros quitutes; após ouvir músicas gostosas; festejar meu aniversário com pessoas muito queridas (hélas, impossível passá-lo com todas); rir como nunca; ver beleza por toda a parte e constatar que Portugal continua limpo como sempre - o piso nas ruas chega até a brilhar - cheguei em Brasília tão bronzeada que minha filha ficou na dúvida se eu havia ido a Portugal ou à Bahia.

   Aqui coloco um adendo aqui, já que o assunto é Portugal.
Fernando Sabino precisava comprar esparadrapo.
   "Não foi fácil comprar. Eu sabia que em Portugal esparadrapo tem outro nome. Como seria? Entrei na farmácia tentando adivinhar. Se eu falasse em esparadrapo, o farmacêutico ia achar que eu estava de galhofa. Mostrei-lhe com mímica que queria aquela coisa com a qual se faz um curativo. Ele entendeu logo e me trouxe  um pacote de gaze e um de algodão.
     - Nem uma coisa nem outra. Aquela que cola.
     - Ah, o senhor quer dizer esparadrapo.
     Mais tarde descobri que não fui tão idiota assim, pois que a palavra era outra mesmo, o boticário devia ser bilíngue: eles chamam é de "penso."


                                                                   Tavira, no Algarve
                                                         música "I can´t live without you".

Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau - Rua Augusta, em Lisboa.




"♫ Viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz..."


..




domingo, 21 de maio de 2017

Substantivo abstrato? Imagine! - Anna Maria Assis Ribeiro


Raro dia em que não me chega uma apresentação em Power Point, escorrendo mel pela tela. E raramente as leio, mesmo por que quase sempre são correntes que me fazem ameaças terríveis caso não as envie a, no mínimo, doze pessoas. O por que deste número cabalístico nunca entendi. Mas eis que outro dia o título de uma me chamou atenção e resolvi ler: falava de saudade. E terminava me informando que saudade é o amor que fica. Bonito, né? Mais que isto verdadeiro. É quase sempre amor e vem pra ficar, sim. Me dou conta de que saudade está longe de ser um substantivo abstrato.
Saudade é pra lá de sólida. Os cinco sentidos são por ela estimulados o que não aconteceria se fosse abstrata. Saudade existe em minha vida. E me transporta para um mundo mágico, para um lugar deliciosamente bom. Uma das mais antigas é a de meu cavalo Dream Boy comendo cenoura. Sentada em cima da baia eu me fazia conviva daquele banquete tão colorido. Era incrível. Vinha-me a vontade de comer também e eu morria de inveja porque não conseguia sentir igual prazer ao mastigar uma cenoura. Conduzidos pelo incrível som da mastigação prazerosa os demais sentidos acordavam: minha mão deslizando por sua crina, meu olhar maravilhado pelo seu porte majestoso, o cheiro de serragem tomando conta da cocheira. Ficava faltando o gosto. Cenoura nunca foi para mim o que era para ele. Pena!
Dream Boy é responsável por muitas saudades. Do vento, por exemplo. Sei lá eu por que, nós (ele e eu) gostávamos de galopar no cocuruto do morro, contra a ventania que precedia a chuva. Sólido o vento, sólida nossa luta. Por que era uma luta. O vento era o inimigo e contra ele nos jogávamos intrépidos. Da casa vinham gritos: sai daí menina maluca! Os raios vão começar a cair. Ao som do primeiro raio desabalávamos morro abaixo, chegando às cocheiras encharcados e rindo muito. É... Dream ria... Sei que é difícil acreditar, mas ria. Dream era um cavalo ser humano.
E a saudade do barulho quase imperceptível das cobras no túnel de bambu, à noite? Quase sempre cabia a nós dois buscar os pães que saiam na primeira fornada da noite na padaria do então vilarejo de Estiva, hoje uma cidade: Miguel Pereira. O túnel de bambu, que hoje ainda dá acesso à casa, mesmo em noite de luar era muito, muito escuro. Dream escutava o mover das cobras bem antes de mim. Então diminuía o trote e orelhas esticavam-se para frente. Aí ele soltava o ar num resfolegar discreto para chamar minha atenção para o perigo. E eu dizia: tô escutando. É cobra, sim. Mas tudo bem! Ciente de que eu havia percebido seu alerta, sossegava e voltava ao trote. Ele sabia que juntos éramos imbatíveis.
Nesta saudade engata outra do que acontecia na seqüência da busca dos pães: a ceia das dez horas. Família reunida na mesa, o chocolate quente, às vezes gemada com vinho do porto e as conversas. Ah! As conversas! Outro engate: o sono que vinha manso como hoje não vem. E coroando tudo o cheiro da água da colônia inglesa de meu pai me dando boa noite Eu já na cama; eu já quase dormindo. No escuro, através da porta, abafadas, as vozes da sala vinham fabricando segurança. Tanta que o sentido do que diziam não importava. O som de todas elas, tão queridas, tão especiais, tão denunciadoras de seus emitentes me assegurava que o mundo era perfeito e que entre cavalos, pais, avó, tios e primos a vida era bela.
E Babá? A voz dizendo minha nega mesmo quando já “babasando” meus filhos. E eu voltava a ser aquela de então na vontade irresistível de pular para aquele colo tão confortável e protetor. Quando ela se foi eu já tinha uma neta e a vontade de pular para o colo era a mesma.
E por fim, e definitiva, a voz de meu filho mais velho, aos quatro anos, na incredulidade do que seria a morte: mas eu não posso ir agarrado na sua perninha? Não posso guardar sua cabecinha? Naquele tempo eu não soube dizer a ele que de certo modo eu ficaria presente na saudade. E como é eu podia saber que seria ele, e não eu, a ficar como saudade? Naquele tempo eu havia vivido tão pouco que saudade não tinha vez. Depois passou a ter. Não fiquei com a cabecinha dele, nem agarrei a perninha. Mas não é que ele ficou? Na voz, no cheiro, na imagem tão nítida de ter se tornado, estranhamente, meu filho mais moço. Numa saudade tão grande que tornou impossível competir com as outras.
E foi aí que tudo se juntou numa saudade só. Única. Como pode ser abstrata? Se tem tamanho, cheiro, imagem, cor, voz e presença? Se me acompanha no todo dia formada pela voz de meu filho, por Babá que me põe no colo, pelo perfume de água de colônia inglesa que traz meu pai para perto, pelo som de Dream mastigando cenouras? E desta imensidão de saudade me vem uma certeza: ainda que cobras se escondam entre os bambus da vida eu consigo ouvir Gonzaguinha se juntando a vida, Ele que sabia das coisas e da beleza de ser um eterno aprendiz. Com ele, tão sábio, aprendi que a vida devia ser bem melhor. E será? Mas isto não impede que eu repita. É bonita, é bonita, é bonita.
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segunda-feira, 1 de maio de 2017

Meu inferno mais íntimo - por Luiz Felipe Pondé


Um jovem rabino, angustiado com o destino da sua alma, conversava com seu mestre, mais velho e mais sábio, em algum lugar do Leste Europeu entre os séculos 18 e 19.
Pergunta o mais jovem: "O senhor não teme que quando morrer será indagado por Deus do porquê de não ter conseguido ser um Moisés ou um Elias? Eu sempre temo esse dia".
O mestre teria respondido algo assim: "Quando eu morrer e estiver na presença de Deus, não temo que Ele me pergunte pela razão de não ter conseguido ser um Moisés ou um Elias, temo que Ele me pergunte pela razão de eu não ter conseguido ser eu mesmo".
Trata-se de um dos milhares de contos hassídicos, contos esses que compõem a sabedoria do hassidismo, cultura mística judaica que nasce, "oficialmente", com o Rabi Baal Shem Tov, que teria nascido por volta de 1700 na Polônia.
A palavra "hassidismo" é muito próxima do conceito de "Hesed", piedade ou misericórdia, que descreve um dos traços do Altíssimo, Adonai ("Senhor", termo usado para se referir a Deus no judaísmo), o Deus israelita (que, aliás, é o mesmo que "encarnou" em Jesus, para os cristãos).
Hassídicos eram conhecidos como "bêbados de Deus", enlouquecidos pela piedade divina (e pela vodca que bebiam em grandes quantidades para brindar a vida...) que escorre dos céus para aqueles que a veem.
São muitas as angústias de quem acredita haver um encontro com Deus após a morte. Mas ninguém precisa acreditar em Deus ou num encontro como esse para entender a força de uma narrativa como esta: o primeiro encontro, em nossa vida, que pode vir a ser terrível, é consigo mesmo. Claro que se Deus existe, isso assume dimensões abissais.
Para além do fato óbvio de que o conto fala do medo de não estarmos à altura da vontade de Deus, ele também fala do medo de não sermos seres morais e justos, como Moisés e Elias, exemplos de dois grandes "heróis" da Bíblia hebraica. Ser como Moisés e Elias significa termos um parâmetro moral exterior a nós mesmos que serviria como "régua".
A resposta do sábio ancião ao jovem muda o eixo da indagação: Deus não está preocupado se você consegue seguir parâmetros morais exteriores, Deus está preocupado se você consegue ser você mesmo.
Não se trata de pensar em bobagens do tipo "Deus quer que você seja feliz sendo você mesmo" como pensaria o "modo brega autoestima de ser", essa praga contemporânea. Trata-se de dizer que ser você mesmo é muito mais difícil do que seguir padrões exteriores porque nosso "eu" ou nossa "alma" é nosso maior desafio.
Enfrentar-se a si mesmo, reconhecer suas mazelas, suas inseguranças e ainda assim assumir-se é atravessar um inferno de silêncio e solidão. Ninguém pode fazer isso por você, é mais fácil copiar modelos heroicos, por isso o sábio diz que Deus não quer cópias de Moisés e Elias, mas pessoas que O enfrentem cara a cara sendo quem são.
Podemos imaginar Deus perguntando a você se teve coragem de ser você mesmo nos piores momentos em que ser você mesmo seria aterrorizante. Aí está o cerne da "moral da história" neste conto.
Noutro conto, um justo que morre, chegando ao céu, ouve ruídos horrorosos vindo de uma sala fechada. Perguntando a Deus de onde vem aquele som ensurdecedor, Deus diz a ele que vá em frente e abra a porta do lugar de onde vem a gritaria. Pergunta o justo a Deus que lugar seria aquele. Deus responde: "O inferno". Ao abrir a porta, o justo ouve o que aqueles infelizes gritavam: "Eu, eu, eu...".
Ao contrário do que dizia o velho Sartre, o inferno não são os outros, mas sim nós mesmos. Numa época como a nossa, obcecada por essa bobagem chamada autoestima, ocupada em fazer todo mundo se achar lindo e maravilhoso, a tendência do inferno é ficar superlotado, cheio de mentirosos praticantes do "marketing do eu".
Casas, escritórios, academias de ginásticas, igrejas, salas de aula, todos tomados pelo ruído ensurdecedor do inferno que habita cada um de nós. O escritor católico George Bernanos (século 20) dizia que o maior obstáculo à esperança é nossa própria alma. Quem ainda não sabe disso, não sabe de nada.
Só quem perdeu a esperança de ser virtuoso deveria falar sobre moral.