segunda-feira, 6 de novembro de 2017

As rãs, o pintassilgo e a coruja - Rubem Alves



     Era uma vez um bando de rãs – embora sua aparência sugira o contrário – são seres poéticos. Sobre uma rãzinha, Matsuo Bashô (1644-1694) escreveu o seu haicai: “Ah, o velho lago./De repente a rã no ar/e o tchibum na água...” As rãs da nossa história não saltavam em lagos, porque viviam presas no fundo de um poço. Só que elas não sabiam que estavam presas no poço, por pensar que o universo era daquele jeito. (Muitas pessoas vivem também presas no fundo de poços, sem se dar conta disso...)
     Tudo começara muito tempo antes, num momento de enlevo amoroso. Um casal de rãs apaixonadas ia saltando numa noite de lua cheia em busca de um ninho onde fazer amor. Olhavam para a lua romântica e não viram o buraco à sua frente (isso acontece frequentemente com os apaixonados...). O pulo seguinte os levou da luz romântica da lua ao escuro do fundo do poço. Pularam muito, o mais que podiam, para sair do poço. Inutilmente. O poço era muito fundo.
     Resolveram, então, transformar sua desdita em felicidade. Como naqueles filmes em que um lindo jovem e uma linda jovem naufragam e vão parar numa ilha paradisíaca de onde não podem sair. Lembro até do nome do filme: Numa ilha com você... Como não havia o que fazer no fundo do poço, puseram-se freneticamente a fazer amor, não por luxúria, mas para matar o tempo. Frequentemente, na vida dos casais, acontece o mesmo: faz-se amor não por amor, mas para combater o tédio. O resultado foi o esperado: rãzinhas e mais rãzinhas. O poço se encheu de rãs e o casal solitário se transformou numa grande sociedade de rãs.
     Como acontece com todos os seres vivos, o casal original, o Adão e a Eva das rãs, ficou velho e morreu. Com isso, morreram os únicos que tinham memória do mundo de fora. As rãs-filhas, sem memória da beleza do mundo, pensavam que o poço era tudo o que havia no universo. E o que havia lá dentro era lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões... Assim, suas cabeças só pensavam lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões.
    Aconteceu que, numa manhã ensolarada, voava por aqueles campos um pintassilgo que, passando perto do poço, ouviu a orquestra de rãs coaxando lá no fundo. Curioso, ele baixou o seu voo e entrou. Foi um grande susto para as rãs, que pensavam ser elas os únicos habitantes do universo. Algumas rãs disseram que se tratava de um extrapoço (pois não há extraterrestres?). Outras, que era alma do outro mundo. Umas poucas, de índole mística, pensaram tratar-se de um anjo. E outras havia que, tendo lido Freud, afirmavam que o pintassilgo era uma alucinação coletiva.
     O pintassilgo, penalizado da triste condição das rãs (triste para ele, que conhecia as belezas do mundo; mas as rãs, elas mesmas, que só conheciam o fundo do poço, estavam muito felizes...), começou a cantar: cantou flores, cantou rios, cantou nuvens, cantou pássaros, cantou borboletas. O que mais fascinou as rãs foi pensar que havia animais que não pulavam como elas: animais que voavam como o pintassilgo. As rãs se dividiram. Os sociólogos fizeram uma pesquisa. O resultado foi: 45% das rãs achavam que o passarinho era doido, pois falava sobre coisas que todas as rãs em juízo perfeito sabiam ser fantasia; 50% concordavam com os teóricos da psicanálise – o dito passarinho, que se sabe não existir, por não existirem coisas com asas, não passava de uma alucinação; somente 5% das rãs acreditaram no pintassilgo. E uma coisa curiosa aconteceu com estas: começaram a nascer asas em suas costas, asas como as do pintassilgo. E elas viraram pássaros – meio desajeitados, é bem verdade. Mas não importa. O fato é que se puseram a voar e saíram do poço. O pintassilgo, sentindo-se rejeitado por 95% da população de rãs, achou prudente ir embora para nunca mais voltar. E assim ficaram as rãs, pelo resto de suas vidas, sem o canto do pintassilgo.
     Corujas, como se sabe, são aves noturnas de rapina. Caçam animais no escuro. Pois o pintassilgo estava doido para contar sobre as rãs no fundo do poço. Viu uma coruja num galho de árvore. Chegou perto dela e lhe contou sobre as rãs. Rãs, como se sabe, são um deleite para o paladar. Até os humanos as apreciam, especialmente fritas. Ouvindo falar de um punhado de rãs, a coruja abriu os olhos, prestou atenção e pensou: “tenho comida garantida para a próxima estação”.
     Caída a noite, bateu suas asas e entrou dentro do poço. Noite ou dia, não fazia diferença: no poço era sempre escuro. Chegando lá, foi outro susto para as rãs. E a coruja, que não era boba, nada falou sobre as belezas do mundo de fora. Se as rãs acreditassem num mundo cheio de coisas bonitas, era possível que começassem a ter esperança. E é a esperança que faz crescer asas nas costas não só das rãs, como também de todos os bichos, inclusive dos homens. Com asas nas costas, as rãs se transformariam em pássaros, voariam, sairiam do poço e iriam fazer tchibum na lagoa. E na lagoa estariam a salvo do seu bico. “Esqueçam as bobagens que o pintassilgo cantou”, disse a coruja. “O pintassilgo é um poeta e fala sobre coisas que não existem. O que realmente importa é que vocês compreendam os seus próprios pensamentos. Podem acreditar em mim. As corujas, na literatura, são símbolos da sabedoria. Eu sou sábia.”
     A coruja iniciou, então, um detalhado processo de análise das ideias das rãs. Mas, como elas só conheciam lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões, o resultado da análise era sempre lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões – reelaborados, é bem verdade. E assim aconteceu. As rãs, através dos anos de análise, foram ficando cada vez mais “resolvidas” quanto a lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões. E se esqueceram das belezas cantadas pelo pintassilgo poeta. A coruja, por sua vez, foi ficando cada vez mais gorda, enquanto, a intervalos regulares, uma rã desaparecia...
     As histórias – coisas que nunca aconteceram – têm o poder de nos ajudar a compreender as coisas que acontecem. Esta história, pura brincadeira, é sobre nós mesmos. Somos rãs no fundo do poço. Poços podem ser a casa, o casamento, o emprego, a bolsa de valores, a religião, as superstições, as memórias... O fundo do poço pode também ser a própria alma. Para entender a alma, Platão inventou uma estória parecida com a das rãs. Ele nos descreveu como prisioneiros acorrentados no fundo de uma caverna, com as costas voltadas para a entrada. Nessa posição, não vemos o mundo lá fora (como as rãs), mas apenas as sombras deste mundo, projetadas na parede à nossa frente.
     De que forma podemos quebrar a corrente que só nos permite ver as sombras? Qual o poder que dá asas às rãs, para que elas saiam do poço e vejam o mundo de fora?
     Disse Bernardo Soares que não vemos o que vemos. Vemos o que somos. Só veem as belezas do mundo aqueles que têm belezas dentro de si. Com o que concordaria Ângelus Silésius, místico e poeta que viveu no século XVII, que dizia que, a menos que tenhamos o paraíso dentro de nós, não há forma de encontrá-lo fora de nós mesmos.
     Essa é a questão central da terapia: abrir os olhos aos cegos.
     Bachelard – maravilhoso pintassilgo – dizia que um psicanalista é uma pessoa que, ao receber do seu cliente uma rosa, volta-se para ele e lhe pergunta: “E o esterco, onde está?”. Como se o abismo da alma, fosse um esgoto! Essa visão terapêutica tem suas origens na psicologia do inquisidor que pressupunha que aquele que estava sendo interrogado mentia sempre. Assim, tudo o que ele dissesse de bondade e beleza não passava de máscara, disfarce para o pecado escondido. Sua tarefa era sistematicamente destruir a bela máscara para chegar ao rosto horrível: da rosa para o esterco.
     A essa visão sinistra do inconsciente, Bachelard contrapõe “um inconsciente tranquilo, sem pesadelos...”. Bachelard, se psicanalista fosse, ao receber esterco do seu paciente, perguntaria, com um sorriso: “E a rosa, onde está?”. A tarefa do terapeuta, então, não pode ser compreendida como uma infinita análise de esterco, mas como um alegre cultivo de flores. Há, de fato, no fundo do poço, lama de cujas profundezas sobem bolhas malcheirosas. Mas nesse poço floresce o lótus imaculadamente branco...

     O que salva não é a análise da lama. O que salva é a contemplação do lótus.