Desde o início desta pandemia, meu filho me disse que a vida nunca mais seria a
mesma.
Quão certo ele estava e está!
Mas, você sabe de onde eu venho?
A vida é instável, muda com o vento. Cada época tem suas
doçuras e barbáries.
Vim de um lar de três andares, onde em uma de suas duas
escadas era afixado e lido o Jornal da Casa. O terceiro piso consistia em um
grande salão de jogos,onde se divertiam dez irmãos e seus amigos nas mesa de totó; sinuca e ping-pong,com campeonatos e até me lembro que uma vez fui campeã. Deve ser por isso que adoro ping-pong até hoje, com a idade de 74 anos.Lá de cima descortinava-se o campinho de futebol, onde também jogávamos voley, acendíamos fogueiras e até se passou um filme. Sou muito grata pela família unida, inteligente, poética, lúdica, bem humorada, alegre e inesquecível que tive.
Tínhamos a ajuda de uma cozinheira, uma copeira e arrumadeira, uma lavadeira e passadeira, uma babá e uma Bebé, que havia sido babá da mamãe! Enquanto esta secretariava meu pai e zelava pela prole, Bebé, que
ficou conosco até quase o fim de sua vida, ensinava o serviço doméstico às, por
ventura, novas ajudantes, e subia a escada levando a roupa passada.
Ela dormia em um quarto espaçoso, onde havia um grande rádio
e sempre foi por nós estimada.
Duas outras dormiam na cama-beliche de outro quarto.
Havia ainda o faxineiro e a costureira, que dormiam em suas
casas.
Perto da hora do almoço, lá de cima, ouvíamos o. som de uma campainha, que significava que devíamos interromper o que estávamos fazendo e lavar as mãos, para no segundo toque, descermos e nos dirigirmos à mesa, pois a comida estava servida. Nessa sala havia uma vitrola e quando se colocava um twist de um disco de Chubby Checker na vitrola, eu não me continha, levantava e dançava, feliz da vida.
Soube há algum tempo que o filho do nosso irmão,que era o número cinco na fileira dos filhos e editor do jornal aludido acima,
ainda pequenino, após ter visto hipopótamo,
tigres e macacos no Zoológico, descansava em um banco, quando seu pai lhe
perguntou de qual bicho gostara mais.
- Das formigas!
Havia sido seu primeiro contato com elas e ficara fascinado
com o trabalho intenso da sociedade das formigas, carregando folhinhas e
entrando em frestas.
Ficaremos marcados, a exemplo dos combatentes brasileiros
que, em plena guerra contra os nazistas em Monte Castello na Itália, se
perguntaram:
"- Você sabe de
onde eu venho?
- Eu vim da Bahia.
- Nunca fui à Bahia.
- Pois devia."
E foi da vontade de voltar para o Rio de Janeiro, Espírito
Santo, Minas Gerais, Santa Catarina, Mato Grosso e pra onde mais vieram, que
tiraram a força necessária para prosseguirem e vencerem.
Que esta pandemia não nos roube a recordação de onde viemos,
que sejamos gratos pela vida passada,
pela que nos é ofertada diariamente e que esta praga no mínimo una irmãos
confinados, comungando da mesma tristeza e preocupação com suas vidas
autoritariamente tolhidas.
Angela de Menezes Delgado
27/3/2021