- Deite-se de lado, por favor.
- Tem um travesseirinho para os joelhos?- pergunto, em tom de brincadeira.
- Vou buscar.
- Uau, que mordomia, obrigada!
Foi um travesseirão o que a enfermeira colocou sob minha cabeça.
- Ficarei lhe devendo o dos joelhos para a próxima colonoscopia.
- Quem disse que haverá outra?
Pela manhã, o preparo para o exame havia me obrigado a mudar-me para o banheiro, com dicionário, lápis, borracha e o que era permitido tomar: água, chá e suco, pois qualquer líquido que entrava, descia garganta abaixo, como em um elevador descendo do décimo segundo andar, de uma vez, sem escalas e acelerado.
A sala da recepção esteve bem movimentada e a maioria dos pacientes ainda ostentava cabelos pretos. Só eu ali me apresentara um pouco tardiamente, e não pensava em voltar.
Minha irmã outro dia me disse que “com a ida do nosso irmão muitíssimo mais cedo do que prevíamos - mesmo porque pensávamos que ele seria eterno, assim como nós - descobriu que se ele foi, é bem capaz de irmos também...”
A resolução foi tomada:
Iremos aproveitar mais a vida, na medida do possível, e não será em um hospital que o farei.
Com tubo de oxigênio no nariz; agulha espetada no braço e ouvindo a enfermeira dizer que o aparelho de pressão “iria estar apertando o meu braço” (ai, de tão useiro ultimamente, isto já está deixando de ser uma “akustische Halluzinationem”), forço-me para evitar chorar, ali mesmo, a perda de meu irmão, há tão pouco tempo, em, mais ou menos, "semelhante" situação. A dele, infelizmente, era gravíssima e a minha não, mas também estou momentaneamente ligada a aparelhos.
Quantos poemas ou crônicas engraçadas terá ele imaginado, na posição horizontal!
Tomara que as máquinas do futuro não mais deixem passar essas valiosas inspirações e as registrem todas. Stephen Hawking, com um toque de mão, escreve frases, selecionando palavras de uma lista delas em ordem alfabética!
A enfermeira anuncia que o anestesista me fará algumas perguntas.
- Que idade a senhora tem?
- Como? Aviso que também faria perguntas.
- O quê?
- O senhor está ouvindo igual a mim.
Rimos e ele prepara uma injeção.
- Onde o senhor a aplicará?!
- Na veia.
- Ah, bom!
Findo o exame indolor e já de olhos abertos, em um hospital "de primeiro mundo”, limpíssimo, moderno e ampliado, indagam-me que suco eu gostaria.
- De caju, de...
- Esse está ótimo – respondo logo, deixando de ouvir o resto da oferta e poupando-a de mais palavras – já que há muito tempo não tomo um dessa fruta.
Sem pressa de sair da maca, pois deixara nas mãos do marido e acompanhante um excelente livro, que esperava o estivesse deliciando, acabo tendo que me dirigir ao vestuário para me trocar.
Abro um, dois, três armários e não vejo a minha roupa. Será que ainda grogue? Reabro os armários para confirmação, aproveitando para examinar, apenas com os olhos, as que ali se encontravam, na hipótese de ter que sair de roupa literalmente trocada. Decido, porém, relatar o sumiço de meus trajes à enfermeira, que levanta os olhos do seu celular, único senão desse hospital e, provavelmente, a causa do quiproquó.
- A senhora me desculpe. Devo tê-la encaminhado antes ao vestiário masculino. Veja se estão nele.
Hoje recebi um e-mail do Banco Central pedindo o CNPJ do prestador de serviços que fará a polipectomia, em consequência do resultado da colonoscopia.
Ignoro o que seja isso e, muito menos - ou mais – o significado da palavra que se seguiu à série de números que o atendente me passou pelo telefone: milderré.
- Pode repetir?
- Milde ré.
Mil de ré. Esqueci de perguntar se esses números modernos vêm com retrovisores. Caso contrário, vejam o perigo, poderá haver algum mil por aí abalroando um desavisado 999!
E o que tentaram me dizer era que a informação requerida terminava em 0001.
Para facilitar, meu próximo número de telefone será codificado: 9987 6 CEM DE RÉ.
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