Era uma vez um bando de rãs – embora sua
aparência sugira o contrário – são seres poéticos. Sobre uma rãzinha, Matsuo
Bashô (1644-1694) escreveu o seu haicai: “Ah, o velho lago./De repente a rã no
ar/e o tchibum na água...” As rãs da nossa história não saltavam em lagos, porque
viviam presas no fundo de um poço. Só que elas não sabiam que estavam presas no poço, por pensar que o universo era daquele jeito. (Muitas pessoas
vivem também presas no fundo de poços, sem se dar conta disso...)
Tudo começara muito tempo antes, num
momento de enlevo amoroso. Um casal de rãs apaixonadas ia saltando numa noite
de lua cheia em busca de um ninho onde fazer amor. Olhavam para a lua romântica
e não viram o buraco à sua frente (isso acontece frequentemente com os
apaixonados...). O pulo seguinte os levou da luz romântica da lua ao escuro do
fundo do poço. Pularam muito, o mais que podiam, para sair do poço.
Inutilmente. O poço era muito fundo.
Resolveram, então, transformar sua desdita
em felicidade. Como naqueles filmes em que um lindo jovem e uma linda jovem
naufragam e vão parar numa ilha paradisíaca de onde não podem sair. Lembro até
do nome do filme: Numa ilha com você...
Como não havia o que fazer no fundo do poço, puseram-se freneticamente a fazer
amor, não por luxúria, mas para matar o tempo. Frequentemente, na vida dos
casais, acontece o mesmo: faz-se amor não por amor, mas para combater o tédio.
O resultado foi o esperado: rãzinhas e mais rãzinhas. O poço se encheu
de rãs e o casal solitário se transformou numa grande sociedade de rãs.
Como acontece com todos os seres vivos, o
casal original, o Adão e a Eva das rãs, ficou velho e morreu. Com isso,
morreram os únicos que tinham memória do mundo de fora. As rãs-filhas, sem
memória da beleza do mundo, pensavam que o poço era tudo o que havia no
universo. E o que havia lá dentro era lama, lesmas, mau cheiro, moscas,
minhocas, lacraias e escorpiões... Assim, suas cabeças só pensavam lama,
lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões.
Aconteceu que, numa manhã ensolarada, voava
por aqueles campos um pintassilgo que, passando perto do poço, ouviu a
orquestra de rãs coaxando lá no fundo. Curioso, ele baixou o seu voo e entrou. Foi um grande susto para as rãs, que pensavam ser elas os
únicos habitantes do universo. Algumas rãs disseram que se tratava de um extrapoço (pois não há
extraterrestres?). Outras, que era alma do outro mundo. Umas poucas, de
índole mística, pensaram tratar-se de um anjo. E outras havia que, tendo lido
Freud, afirmavam que o pintassilgo era uma alucinação coletiva.
O pintassilgo, penalizado da triste
condição das rãs (triste para ele, que conhecia as belezas do mundo; mas as
rãs, elas mesmas, que só conheciam o fundo do poço, estavam muito felizes...),
começou a cantar: cantou flores, cantou rios, cantou nuvens, cantou pássaros,
cantou borboletas. O que mais fascinou as rãs foi pensar que havia animais que
não pulavam como elas: animais que voavam como o pintassilgo. As rãs se
dividiram. Os sociólogos fizeram uma pesquisa. O resultado foi: 45% das rãs
achavam que o passarinho era doido, pois falava sobre coisas que todas as rãs
em juízo perfeito sabiam ser fantasia; 50% concordavam com os teóricos da
psicanálise – o dito passarinho, que se sabe não existir, por não existirem
coisas com asas, não passava de uma alucinação; somente 5% das rãs acreditaram
no pintassilgo. E uma coisa curiosa aconteceu com estas: começaram a nascer
asas em suas costas, asas como as do pintassilgo. E elas viraram pássaros –
meio desajeitados, é bem verdade. Mas não importa. O fato é que se puseram a
voar e saíram do poço. O pintassilgo, sentindo-se rejeitado por 95% da
população de rãs, achou prudente ir embora para nunca mais voltar. E assim
ficaram as rãs, pelo resto de suas vidas, sem o canto do pintassilgo.
Corujas, como se sabe, são aves noturnas
de rapina. Caçam animais no escuro. Pois o pintassilgo estava doido para contar
sobre as rãs no fundo do poço. Viu uma coruja num galho de árvore. Chegou perto
dela e lhe contou sobre as rãs. Rãs, como se sabe, são um deleite para o
paladar. Até os humanos as apreciam, especialmente fritas. Ouvindo falar de um
punhado de rãs, a coruja abriu os olhos, prestou atenção e pensou: “tenho
comida garantida para a próxima estação”.
Caída a noite, bateu suas asas e entrou
dentro do poço. Noite ou dia, não fazia diferença: no poço era sempre escuro.
Chegando lá, foi outro susto para as rãs. E a coruja, que não era boba, nada
falou sobre as belezas do mundo de fora. Se as rãs acreditassem num mundo cheio de coisas bonitas, era possível que começassem a ter esperança. E é
a esperança que faz crescer asas nas costas não só das rãs, como também de
todos os bichos, inclusive dos homens. Com asas nas costas, as rãs se
transformariam em pássaros, voariam, sairiam do poço e iriam fazer tchibum na
lagoa. E na lagoa estariam a salvo do seu bico. “Esqueçam as bobagens que o
pintassilgo cantou”, disse a coruja. “O pintassilgo é um poeta e fala sobre
coisas que não existem. O que realmente importa é que vocês compreendam os seus
próprios pensamentos. Podem acreditar em mim. As corujas, na literatura, são
símbolos da sabedoria. Eu sou sábia.”
A coruja iniciou, então, um detalhado
processo de análise das ideias das rãs. Mas, como elas só conheciam lama,
lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões, o resultado da
análise era sempre lama, lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e
escorpiões – reelaborados, é bem verdade. E assim aconteceu. As rãs, através
dos anos de análise, foram ficando cada vez mais “resolvidas” quanto a lama,
lesmas, mau cheiro, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões. E se esqueceram
das belezas cantadas pelo pintassilgo poeta. A coruja, por sua vez, foi ficando
cada vez mais gorda, enquanto, a intervalos regulares, uma rã desaparecia...
As histórias – coisas que nunca
aconteceram – têm o poder de nos ajudar a compreender as coisas que acontecem.
Esta história, pura brincadeira, é sobre nós mesmos. Somos rãs no fundo do
poço. Poços podem ser a casa, o casamento, o emprego, a bolsa de valores, a
religião, as superstições, as memórias... O fundo do poço pode também ser a
própria alma. Para entender a alma, Platão inventou uma estória parecida com a
das rãs. Ele nos descreveu como prisioneiros acorrentados no fundo de uma
caverna, com as costas voltadas para a entrada. Nessa posição, não vemos o
mundo lá fora (como as rãs), mas apenas as sombras deste mundo, projetadas na
parede à nossa frente.
De que forma podemos quebrar a corrente
que só nos permite ver as sombras? Qual o poder que dá asas às rãs, para que
elas saiam do poço e vejam o mundo de fora?
Disse Bernardo Soares que não vemos o que
vemos. Vemos o que somos. Só veem as belezas do mundo aqueles que têm belezas
dentro de si. Com o que concordaria Ângelus Silésius, místico e poeta que viveu
no século XVII, que dizia que, a menos que tenhamos o paraíso dentro de nós,
não há forma de encontrá-lo fora de nós mesmos.
Essa é a questão central da terapia: abrir
os olhos aos cegos.
Bachelard – maravilhoso pintassilgo –
dizia que um psicanalista é uma pessoa que, ao receber do seu cliente uma rosa,
volta-se para ele e lhe pergunta: “E o esterco, onde está?”. Como se o abismo
da alma, fosse um esgoto! Essa visão terapêutica tem suas origens na
psicologia do inquisidor que pressupunha que aquele que estava sendo
interrogado mentia sempre. Assim, tudo o que ele dissesse de bondade e beleza
não passava de máscara, disfarce para o pecado escondido. Sua tarefa era
sistematicamente destruir a bela máscara para chegar ao rosto horrível: da rosa
para o esterco.
A essa visão sinistra do inconsciente,
Bachelard contrapõe “um inconsciente tranquilo, sem pesadelos...”. Bachelard, se psicanalista fosse, ao receber esterco
do seu paciente, perguntaria, com um sorriso: “E a rosa, onde está?”. A tarefa
do terapeuta, então, não pode ser compreendida como uma infinita análise de
esterco, mas como um alegre cultivo de flores. Há, de fato, no fundo do poço,
lama de cujas profundezas sobem bolhas malcheirosas. Mas nesse poço floresce o
lótus imaculadamente branco...
O que salva não é a análise da lama. O que
salva é a contemplação do lótus.
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