…O escritor produtivo observa o escritor atormentado enquanto este se acomoda à escrivaninha, roi as unhas, tem comichões, arranca uma folha, levanta-se para ir à cozinha fazer café, depois chá preto, depois chá de camomila, lê um poema de Holderlin (embora esteja claro que Holderlin não tem nada a ver com o que ele está escrevendo), torna a copiar uma página já escrita e depois a risca linha por linha, telefona para a lavandeira (mesmo já sabendo que as calças azuis não ficariam prontas antes de quinta-feira), toma algumas notas que não serão úteis agora, talvez só mais tarde, vai consultar a enciclopédia no verbete “Tasmânia” (sendo óbvio que naquilo que escreve não há nenhuma alusão à Tasmânia), rasga duas folhas, põe na vitrola um disco de Ravel. O escritor produtivo jamais gostou das obras do escritor atormentado, quando as lê, sempre lhe parece estar prestes a chegar ao ponto decisivo, mas depois esse ponto lhe escapa, e sobra apenas uma sensação de mal-estar. Mas, no momento em que o vê escrever, sente que esse homem se debate com algo de obscuro, um emaranhado, um caminho a ser aberto que ele não sabe aonde conduz; às vezes, parece-lhe que o vê caminhar sobre uma corda suspensa no vazio, e é tomado por um sentimento de admiração. Não só admiração: de inveja também, porque sente que seu trabalho é limitado e superficial se comparado ao que o escritor atormentado está procurando.
No terraço de um chalé, no fundo de um vale, uma jovem lê um livro enquanto toma sol. Os dois escritores a observam através da luneta. “Como está absorta, com o fôlego suspenso! Com que gesto febril vira as páginas!”, pensa o escritor atormentado. “Certamente lê um romance de grande efeito, como aqueles do escritor produtivo!” “Como está absorta, quase transfigurada pela meditação, como se assistisse à revelação de um mistério!”, pensa o escritor produtivo. “Certamente lê um livro repleto de significados ocultos, como aqueles do escritor atormentado!”
O maior desejo do escritor atormentado seria ser lido como lê aquela jovem mulher; põe-se a escrever um romance como o que pensa que o escritor produtivo escreveria. Entretanto, o maior desejo do escritor produtivo seria ser lido como lê aquela mulher; põe-se a escrever um romance como o que pensa que o escritor atormentado escreveria.
Os dois escritores, primeiro um e depois o outro, abordam a jovem, e ambos lhe dizem que desejam que ela leia os romances que acabaram de escrever.
A mulher recebe os dois manuscritos. Alguns dias depois ela convida os autores a irem a sua casa, juntos, para grande surpresa deles.
- Mas que brincadeira é esta? – diz ela. – Os senhores me deram duas cópias do mesmo romance!
Ou então:
Uma rajada de vento mistura as páginas dos dois manuscritos. A leitora tenta reorganizá-los. Daí resulta um único e belíssimo romance, que os críticos não sabem a quem atribuir. É o romance que ambos os escritores sempre sonharam escrever...”
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