Uma
releitura da rabada
Humberto
Werneck
No primeiro momento, ela julgou ter
ouvido “rabanada” – e estranhou que o marido tivesse posto tanta ênfase numa
sugestão caindo de óbvia: cadê a novidade, se no nosso Natal sempre teve
rabanada? A proposta não era variar um pouco, driblar a mesmice
culinário-natalina? Eu disse rabada, corrigiu o marido, e, vendo a tempestade
armar-se no rosto da mulher, tratou de esclarecer: sei que você não gosta de
rabada, mas o que estou propondo é outra coisa, é uma... uma releitura da
rabada, entende? E enveredou, animado, pela enumeração de ingredientes e
procedimentos que haveriam de converter em algo deleitável o que para ela
sempre foi inapelavelmente deletável.
Quem mandou provocar, desafiando-o a dar
uma chacoalhada no ramerrão de seus cardápios dezembrinos? Precisava o ano
acabar em rabada? Já não bastava a pavorosa noite em que, num restaurante de Aruba,
ele desafiou o chef a lhes servir “alguma coisa surpreendente”, coisa essa em
que resultou ser uma sopa de iguana, sim, um daqueles lagartões asquerosos que
rastejam seu look antediluviano pelo pedregal da ilha caribenha? Para não
decepcionar o mestre-cuca, ela enrolou uma desculpa que, desossada, ficaria
assim: gostava muito de sopa de iguana, mas não a ponto de tomá-la.
Ao longo de sua vida conjugal, a coitada
tem provado não poucas bizarrias, pois à mesa (mas também na cama, benza Deus!)
o marido não se conforma com o trivial, mesmo o variado. Faz tempo que, em
todos os terrenos, o companheiro baniu o feijão-com-arroz. E dizer que quando o
conheceu ele mal dava conta de distinguir uma alface de uma couve... Ela não
sabe se foram as más companhias
do escritório – o fato é que em dado momento a esquisitice culinária se
insinuou, para ficar, em sua vida de casada. Ciao, bife acebolado, adeus
mandioca frita , nunca mais frango com, quiabo. Ela chegou a achar que tivesse
batido nele um deslumbramento de nouveau
riche gustativo. Mas durou pouco aquela fase em que todo o restaurante se
voltava para contemplar, na mesa deles, um desses pratos que pegam fogo e para
os quais o acompanhamento mais adequado seria um extintor de incêndio, tão indispensável quanto a ambulância que
acompanha certas maioneses de casamento.
Foi também por essa época que ele fez
sua entrada na seara da enologia – a crer na mulher, depois de ter visto na televisão
um seriado sobre vinhos no qual Renato Machado, lá pelas tantas, numa cave na
região de Champagne, sorve algum daqueles néctares franceses e com ele dá uma
bochechada tão judiciosa quanto inolvidável. Se fizer isso na minha presença eu
saio por aquela porta, ameaçou ela. Talvez por isso o camarada não tenha
progredido muito nos meandros da enologia. O máximo de que era capaz, ironizava
a mulher, era informar muito sério, depois de uma discreta bochechada: é tinto!
Ainda assim, houve uma noitada em que,
num restaurante fino, ele derrubou, qual jogador de boliche, meia dúzia de
garrafas, felizmente só em sentido figurado, a pretexto de que o conteúdo tinha
tal e tal problema. Noitada que resultou ruinosa para as finanças conjugais,
pois, sendo outro o parecer do sommelier,
a casa o fez pagar pelos vinhos que mandou abrir e não consumiu.
Com a comida, a coisa é mais séria. De
quando em quando, sua imaginação culinária entra em surto. O homem adora
cardápios opinativos, desses que anunciam “delicioso peixe levemente puxado em
suave molho de...”. Quanto mais rebuscado, mais ele se põe a salivar.
Recentemente, encantou-se com umas “Pérolas de Tapioca”. Em outro safári gastronômico,
arrastou a mulher para um “Atum Unilateral”, sem saber que chegaria à mesa um
prosaico peixe frito de um lado só. Na escolha da sobremesa, guiou-se pelo
ouvido: Rolinhos de Gengibre e Rosas. Não estava grande coisa, admitiu- mas que
nome! Que nome! A mulher tem como certo que um dia ainda vai ouvi-lo pedindo,
como o sujeito afetado da velha piada, “um quarto de porco, mas com janelas
para o mar.” Não sem antes passar, neste Natal, por uma rabada. Mas não qualquer
uma: uma rabada relida.
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