Anna Maria Assis Ribeiro
Eram amigos desde sei lá quando. Parelhos em idade, ele três anos mais velho. Um
belo homem. Ela não era uma bela mulher, mas agia como se fosse e isto
convencia a todos de que o era. Naquela época estava ela nos primeiros anos dos
cinqüenta, ainda trabalhando na mesma empresa em que durante tantos anos,
empenharam-se juntos em inúmeros projetos. Ele, não mais. A cátedra de
professor numa universidade rural havia criado uma distância complicada de se
dar jeito, já que ele resolveu morar por lá.
E como os dois detestavam falar ao telefone, a conversa de todo sempre havia
ficado difícil. Conversa infindável, esta. Falavam de tudo: da vida, do
trabalho, dos filhos, dos companheiros, e do que mais viesse. Mas,
sobretudo, era no assunto “trabalho” que mais se encontravam. Formavam um time
perfeito, azeitado, mesmo nas discordâncias que quando surgiam sempre
resultavam num avanço pelo convencimento de um ou do outro que passava a remar
junto. A ela fez uma enorme falta quando se foi para outras paragens. Eles se
entendiam pelo olhar. Entusiasmavam-se tanto que quando iniciavam um novo projeto ficavam envolvidos dias após dia, entrando noite adentro no terreno das idéias, das descobertas, de soluções novas. Por vezes, numa coincidência incrível o Eureka vinha em uníssono. Custou a engrenar com outros parceiros. Numa bela tarde de maio ele a surpreendeu aparecendo em seu trabalho. Estava morrendo de saudades, disse. Foi uma festa. Coisa tão boa vê-lo. Tinham tanto assunto para por em dia! Em linhas gerais até que ela sabia do que andara acontecendo: o terceiro casamento dele tinha ido pro brejo. Assim como o dela. Engraçado. Era a primeira vez que ambos estavam solteiros ao mesmo tempo. Sempre havia sido uma gangorra. Ele casava; ela descasava. Ela casava; ele descasava. Em todas estas idas e vindas, haviam ficado amigos também do cônjuge do outro que com o descasamento desaparecia das vidas... dos dois. E era assim que, a seu turno, eles tomavam a posição de terceira pessoa sempre presente junto ao casal que estivesse estável no momento. No dia em que ele apareceu, assim de surpresa, ela estava sem carro. O dela tinha dado um treco (para ela, carros não davam defeitos, davam trecos). Felicitou-se. Assim poderia pegar uma carona, esticando a conversa e quem sabe até esticando a esticada, num jantar. O carro deslizava pelo aterro do Flamengo ao som de uma música que ambos curtiam. E ele falou: lembra? O pôr-do-sol estava deslumbrante. Tudo tão bom. Tão bonito. E ela comentou: quando o dia começou não se anunciava tão perfeito. Ele sorriu: perfeita é você! Puxa, mulher, que saudade! Do lado de cá também, ela declarou. Ele, por segundos, desviou os olhos e olhou para ela. Parecia emocionado. Não, não era bem isto, era outra coisa. “Outra coisa” que começou a dar nela também. Cruzes, ela pensou, não pode ser. Que absurdo! E ele respondeu a seu pensamento, como sempre fazia e perguntou: absurdo por que? Ora - ela respondeu aflita – você nunca sentiu isso... Ele interrompeu: isso que você está sentindo agora... também? Ela emudeceu numa emoção adolescente. Meu Deus! A mão direita, firme, deixa o volante e se apossa da mão dela. Mágica! Pura mágica! Ele também emudeceu. Aumentou o som e a velocidade do carro que naquele dia lindo dirigiu-se à Copacabana. Daí Ipanema e Leblon se seguiram lindos, lindos. A chegada à Barra foi uma emoção só. Até a entrada no Motel foi fantástica. E foi ai que bateu nela o nervoso! Pode isto?! Tenho que falar alguma coisa. Qualquer coisa. Este silêncio está me deixando aflita demais. Naturalidade. É isto! Tenho que ser natural. E foi assim que ao entrarem no quarto ela perguntou: você conseguiu emplacar aquele projeto? Os olhos dele brilharam: e como! Vou mostrar a você. Abre a pasta que havia trazido consigo e dela tira um calhamaço de papeis. No início em pé, ao lado da mesa de entrada, ele começa a explanação. Ela não se lembra do momento em que se sentaram e começaram a discutir sobre um ponto sobre o qual não concordavam. Lembra-se apenas que subitamente ele disse: estou morto de fome. Vamos pedir alguma coisa para comer? Ela apenas acenou com a cabeça. Estava concentrada tentando achar argumentos que sustentassem seu ponto de vista. Jantaram ainda discutindo. Afastaram os pratos e continuaram a discussão. Muito tempo depois foram interrompidos pelo som do telefone. Ele foi atender e voltou informando espantado: perguntaram se vamos ficar a noite toda! Ambos olharam para os respectivos relógios... e foram acometidos de um riso incontrolável. Sem a música e sem o belo pôr-do-sol, o projeto falara mais alto. Já voltando, na altura de Ipanema, ele comentou: jantarzinho caro, este, né?
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