BRASILIENSOPITECUS
Alexandra Rodrigues
O brasiliensopitecus é uma espécie capital do Planalto Central. A sua constituição resultou de um amplo processo migratório de terras distantes que o conduziu a deixar seus ancestrais e a se aventurar, no centro do território Brasilis, a um encontro com uma surpreendente diversidade de espécies.
O brasiliensopitecus típico acorda todos os dias entre o verde e o céu, separado de ambos apenas pelo concreto do seu apartamento. Falamos, entenda-se, do planopitecus, esse homo alado que voa nas asas de uma vida relativamente confortável, entre um parque ecológico, um ministério e um shopping. Nenhum outro brasiliensopitecus se desloca tão rápida e naturalmente entre os espaços abertos, verdes e ensolarados de uma natureza superabundante e os espaços fechados de luz branca, com elevadores ou escadas rolantes. Assinale-se que o lagopitecus - a variante lacustre do brasiliensopitecus - compartilha esse estilo de vida, resguardando-se as especificidades dessa variação genética.
Outra variante do brasiliensopitecus - o satelitopitecus - reside em cidades com segurança e prosperidade inversamente proporcionais à distância a que se situa do brasilensopitecus. Os satelitopitecus das mais variadas condições sócio-econômicas afluem todos os dias, em abundante escala, ao espaço dos planopitecus, assegurando o comércio, os serviços e grande parte da função pública, tornando-se como que habitantes sem habitação.
O brasiliensopitecus alado e lacustre é uma espécie de grandes simetrias geográficas, mas de escandalosas assimetrias sociais. Dentro de suas casas assentes sobre a terra ou sobrepostas em camadas de seis andares organizados em blocos, por ordem inteiramente alfabética, podem ser identificadas duas áreas peculiares, tradicionalmente denominadas de área social e área de serviço. Na primeira convivem os seres alados e os lacustres, e na segunda os seres denominados de perifericopitecus. Estes percorrem diariamente enormes distâncias para servir aos brasiliensopitecus, limpando e cozinhando, e assim angariam seu sustento, tradicionalmente denominado de salarius minimus. Aqueles periferopitecus que não acordam às 4 da manhã para percorrer dezenas de quilômetros em precários transportes superlotados, moram nos apartamentos e casas dos planopitecus, geralmente em minúsculos cubículos anexos à cozinha, onde convivem com a roupa para passar, o aspirador e outros indispensáveis utensílios dos seres alados e lacustres.
Não se entra diretamente nos apartamentos dos habitantes alados. Quando algum visitante chega aos blocos de moradia dos planopitecus, dirige-se a um periferopitecus que fica o dia inteiro dentro de um minúsculo compartimento situado na base do prédio, e é este ser quem se comunica com o planopitecus do apartamento, anunciando a chegada do visitante e solicitando autorização para a sua entrada. Só então este tem acesso a uma porta que o periferopitecus abre, por meio de um comando operado pelo dedo indicador da sua mão direita.
Geralmente os periferopitecus que guardam as entradas dos blocos de habitação dos planopitecus moram na base do prédio com suas famílias, em um espaço menor que a sala do planopitecus. A sua remuneração é diretamente proporcional ao espaço que ocupam. Porém, as suas habilidades revelam-se inversamente proporcionais ao salarius minimus e ao espaço ocupado, haja vista que os planopitecus não sabem em geral fazer tarefas básicas como consertar seus eletrodomésticos, regular a descarga de seus vasos sanitários ou até mesmo resolver problemas com suas luminárias ou seus confortáveis chuveiros. Esta realidade merece ser investigada pela ciência, visto que a escolaridade e a preparação intelectual dos planopitecus é supostamente superior à dos periferopitecus funcionários de seus lares; o que afinal não é tão certo assim, visto que os planopitecus nomeiam suas ruas apenas com letras e números, em lineares combinações de 1 a 16, na casa das centenas, repetindo sempre as letras S e Q e variando apenas os símbolos que designam os pontos cardeais.
A propósito de pontos cardeais, pode-se afirmar que o brasilensopitecus é uma espécie muito orientada: sempre informa em que ponto cardeal se encontra, para qual está se deslocando e sabe invariavelmente em que ponto cardeal se situam lojas, farmácias, escolas, hospitais. O brasiliensopitecus não é apenas orientado, mas também espaçoso e ao mesmo um tanto megalomaníaco: ele gosta de superquadras, de superempregos (para poucos, reconheça-se), de super e até de hipermercados.
O brasiliensopitecus ocupa um espaço atravessado por eixos, eixinhos e eixões que regulam seus movimentos vitais. Constituído por cabeça, tronco e rodas, não necessariamente por essa ordem, ele dirige seus modernos meios de transporte pelas amplas avenidas da cidade. As largas e longas pistas são um convite à velocidade, controlada por estranhos aparelhos com nome de pássaro. Embora geralmente mais educado no trânsito do que outras espécies tropicais, por vezes provoca acidentes que derrubam árvores, postes e vidas.
A propósito, no final de uma das asas ocupadas pelos planopitecus, uma quantidade surpreendente de hospitais, aliada à existência de um gigantesco cemitério, sugere que os seus habitantes se envolvam com frequência em conflitos bélicos. De fato, os brasiliensopitecus não raro são atacados pelos habitantes de outras cidades, e até do país inteiro, e acusados, equivocadamente, de serem os responsáveis por diversas calamidades públicas, o que acarreta ferimentos danosos à sua dignidade e reputação.
A despeito dos ataques e agressões sofridas, com projéteis disparados por todos os meios de comunicação, o planopitecus é fiel à sua cidade e consideravelmente preocupado com a realidade da periferi(d)a, embora raramente a visite. Aliás, acredita-se que tenha havido inicialmente uma massiva onda migratória de homens especialmente fortes para a construção das asas da cidade; mas há evidências de que os construtores tenham sido posteriormente expulsos para as áreas periféricas, por motivos até hoje desconhecidos. Suspeita-se de poderes ameaçadores que se infiltram e instalam, em progressão geométrica, no território nativo desta espécie, a qual originariamente reconhecia apenas três poderes estruturantes da sociedade.
É em meio a esses mistérios e contradições que se desenvolve essa espécie capital de promissor futuro, o brasiliensopitecus, com suas originais e contrastantes variações. Entretanto, pesquisadores atuais levantam pertinentes questionamentos: como evoluirá essa nova espécie que se fixou no Planalto Central do território Brasilis? Que devir terá o brasiliensopitecus, criador de uma civilização plena de contradições sociais e marcada por tão acentuadas diferenças culturais? Como será construída a síntese dessa diversidade? Ocorrerá, no futuro, um embate decisivo entre os planopitecus e os periferopitecus? Poderão os espaços verdes e ensolarados do brasiliensopitecus transformar-se em espaços fechados com luz branca e folhas verdes de outra natureza? Sobreviverá ele, como espécie, aos poderes que vorazmente se instalam no seu habitat?
Afinal, quais serão, daqui a milhares de anos, os achados arqueológicos em relação a essa civilização tão singular?
O olhar da Alexandra ilumina qualquer assunto. Parabéns por convidá-la para o seu blog!
ResponderExcluir@Luci Afonso Ela é demais mesmo. Em breve postarei outra pérola dela.
ResponderExcluirUm bom domingo pra você!