sábado, 19 de fevereiro de 2011

XII

      Tive insônia na noite passada, pensando que a história do livre arbítrio é uma piada. Não o seria se, mais ou menos por volta dos 18 anos, tivéssemos sonhos reveladores e alguém nos dissesse: se seguir este ou aquele caminho, terá esse ou aquele destino. Ou, iluminações mais frequentes, como, se sair amanhã de carro levará uma batida frontal e sofrerá esporadicamente da síndrome do pânico. Vai sair, mesmo assim? Não somos, porém, advertidos de nada e depois tenho que cancelar um compromisso, porque estou receosa de pegar no volante. Onde está o livre arbítrio se não tenho nem o direito de ir e vir, como na rua de mão única do Pellicano, que diz que a considera inconstitucional?     
     Além desse handicap que nos impossibilita uma real liberdade, a idade nos traz outras limitações e, apesar delas, temos que nos lembrar de mastigar – quantas vezes mesmo?  Cento e sessenta em cada garfada - e, entre outras lembranças, saber onde está aquela revista de restaurantes, porque o marido quer almoçar fora. - Vou achá-la, talvez, em cinco dias, mas garanto que acho, tenho o dom e o faro para coisas perdidas.
     Enquanto isso, podemos almoçar aqui pertinho, é caro, mas uma vez na vida e outra daqui a alguns meses...
     E o que faço agora, menos de um mês depois? Passo a limpo todo um arquivo de receitas. Pensando na utilidade desse trabalho hercúleo, tendo tantas revistas e livros de receitas culinárias, percebo sua importância, vislumbrando a diferença entre um frio quarto de hotel e a nossa casa. As receitas das fichas, quando não vieram de longe, de nossas avós e tias, foram todas feitas com carinho, a maioria pelo chef local, degustadas em muitos natais e aniversários e passarão de filha para neto, ad eternum.
       Digitando as receitas, outrora batidas à máquina, depois de “salsa”, automaticamente digito “cebolinha” e novamente me reportei ao Ciro Pellicano e seu qualificativo “rigoroso”, que “cansado da longa parceria com o substantivo inverno, aproveita o advento da publicidade e mergulha de cabeça num relacionamento simbiótico com a expressão controle de qualidade. Apaixonam-se e um não sai mais do dicionário sem a companhia do outro. Mas, quando a união se desgasta, Rigoroso não perde tempo e flerta com outras expressões, não conseguindo, porém, estabelecer uma união mais duradoura. Aconselhado por amigos, frequenta um curso de atualização profissional, passando a trabalhar como advérbio. Fazendo o quê? Rigorosamente nada.”
Ao contrário do Rigoroso, estou sempre ocupada e, hoje, em minha caminhada reparei que algum dono de cachorro não recolhera o que devia ter colocado em um saquinho e tive o ímpeto de prevenir a quem vinha atrás de mim, mas, pensando que talvez o casal enxergasse tão bom quanto Quérida Sister e jamais admirasse o céu, em suas andanças, contive-me.



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