O marido está almoçando na cozinha com a
tevê ligada. Como hoje é um dia muito especial, faço o prato e, sem reclamações,
vou almoçar, como mereço, ao ar livre ao som de um coro de mil e uma cigarras. Disso, em Brasília no mês de outubro, não há
como escapar, nem em meu apocalipse particular. Diga-se de
passagem, isso é segredo, pois não quis melindrar ninguém, passando-o com uns
em detrimento de outros. Como a Parca não me avisou com antecedência sobre esta
minha ida brusca e prematura, não posso pegar um avião e ir despedir-me de
minha querida irmã que mora na Inglaterra. Aliás, neste meu derradeiro dia,
passando ela com a filha, genro e duas netas, quinze dias,
nas Canárias.
Fazer o quê, então? Deixar aqui o meu amor
incondicional por toda a minha família e amigos é uma despedida. Fajuta, mas
não posso nem sair à francesa e nem espalhar o pânico: último dia?! Mas, como? E a nossa viagem marcada
para o ano que vem? É realmente uma pena, mas, quem sabe, poderei me juntar a
vocês? Estarei lá em espírito, serve?
A caçula tão amada, embora independente diria: - Mãe, o que vai
ser de mim sem você?
É por esse e
outros diálogos que tive que me calar e viver este dia mais ou menos normalmente. No momento, há
dois netos aqui. Penso em, como última lembrança e contribuição, apresentar o livro Onde está Wally aos netinhos mais novos, grudados na
telinha, vendo desenho. Tentarei mesmo assim. Não é que deu certo? Ele, com
cinco anos de idade e sua irmã de oito, se encantaram ao ver Wally, aquela figurinha de camisa vermelha
listrada incorporada ao cenário asteca de 200.000 anos, com suas cordas e
cavalos assustados. Virando a página, ei-lo no mundo das pirâmides em meio a
centenas de pessoinhas e sarcófagos, há 4.500 anos atrás. Em seguida, Wally se mistura
aos romanos em um feriado no Coliseu, onde cristãos eram atirados aos leões (disso
meus netinhos não ficaram sabendo). Depois viaja com os vikings e seus chapéus de
chifre, em um mergulho de mais de mil anos. Continuando sua trajetória, o
desafio agora é encontrar o bonequinho de camisa listrada, que está perdido no
meio de catapultas e de uma multidão ao fim de uma das Cruzadas, há mais de 800
anos. Daí para cair entre camponeses, malabaristas, trovadores e bobos da corte
na Idade Média é só um virar de folha. Mais uma, e, com certa dificuldade, o
encontramos, fugindo das espadas e flechadas dos samurais no Japão de 400 anos
atrás; nos barcos dos piratas com tapa-olhos há 250 anos; com um livro na mão, na Corrida do Ouro dos
americanos, no final do século XIX; ainda concentrado em seu livro - esse é dos meus - em um baile em Paris há 100 anos, quando os homens usavam perucas e as mulheres dançavam Cancã; e, finalmente, no futuro, ao lado de naves,
extraterrestres, robôs e mísseis.
Assim, meu último
dia vai se escoando. Eu, aqui, escrevendo, imagine, quando sou despertada pela
campainha do telefone. É meu neto
primogênito avisando que não vem almoçar e eu lembro-lhe da aula de
dança de salão, daqui a pouco, quando em vez de eu ir dançar, neste que seria meu último dia, vou bem-humorada, como “votorista”, como bem lembrou uma “mãetorista”, que
conheci outro dia.
(Claro que se fossem realmente minhas últimas horas eu dançaria, mas como era só faz-de-conta, assisti à aula do sofá.)
Voltamos, ouvindo pelo
som do carro músicas deliciosas e entre elas, algumas que eu costumava ouvir
nas festinhas da época de meus 15 anos, como "La mer" e "Unchained melody" com Ray Conniff, quando praticamente minha vida
começava e, fechando seu ciclo, encerra-se com as
mesmas músicas.(Claro que se fossem realmente minhas últimas horas eu dançaria, mas como era só faz-de-conta, assisti à aula do sofá.)
Se tudo não passou de um pesadelo, pelo menos caprichei neste dia a mais vivido. Não saí muito da rotina, porém ficou mais do que provado de que gosto dela.
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