Faz muito tempo
que não venho aqui. Com um pequeno esforço vou lembrar exatamente quanto tempo
faz, mas, por ora, um barulho vindo dos fundos chama a minha atenção e me
atrai.
Deixe ver se
ainda me lembro... Quarenta e sete passos da porta da sala até o quintal. Mas,
se eu der passadas largas, consigo reduzir quatro ou cinco. Enquanto coloco um
pé depois do outro no friso reto do ladrilho, me recordo de quando Joana e eu
apostávamos quem chegava primeiro ao balanço de madeira. Eu sempre ganhava,
embora soubesse que era uma aposta sem sentido. Com nove anos, minhas pernas
eram maiores e mais firmes, mas apesar disso Joana insistia em competir.
Durante anos foi
assim, até que, numa manhã de chuva branda, eu a encontrei sorridente, me
esperando no balanço. Foi aí que notei que ela havia crescido e era mais alta,
mais magra e mais ágil do que eu. Mas meu desaponto não durou um fôlego, porque
Joana, com sua voz aquecida, apenas me olhou e disse. “É muito chato chegar na
sua frente! Eu gosto de te encontrar me
esperando.”
Se eu pudesse
saber, teria percebido que aquela frase se tornaria uma verdade constante nos
anos que se seguiriam. Eu, embora mais velha, passei a vida competindo por
alguma coisa e me deixando magoar pelas perdas. Joana, dócil, encarou os
problemas com naturalidade e fez das conquistas um evento corriqueiro,
elegante. Nem quando ficou viúva, com dois filhos pequenos, ela se queixou ou
esmoreceu.
Alguém deixou uma
torneira aberta. Meu ouvido é afiado para o barulho de água. Talvez eu deva ver
o que é... Não. Estou muito cansada e preciso de um banho antes de me encontrar
com as pessoas.
Enquanto minhas
pernas tentam subir o primeiro lance de escadas, o passado grita:
- Luiz! A água da
bica está escorrendo! Quebra a mão se fechar?
Tonha ainda está
viva! Essa voz meio rouca, meio falsete é inconfundível! Quantos anos ela deve
ter agora? Setenta e dois, setenta e três, eu acho. Num minuto a água para de
escorrer, mas ela continua os resmungos
contra meu sobrinho:
- Muito
preguiçoso! Não sei quem foi que você puxou! Se acostumou mal porque a Tonha
está aqui pra fazer tudo, não é mesmo? Tonha cozinha, Tonha lava, Tonha arruma
a cama, Tonha fecha a bica. Menino mimado!
A voz se afasta antes que eu tenha tempo de
alcançá-la para um longo abraço. A mesma Tonha de sempre, chamando a si mesma
na terceira pessoa. Desde que nasci, o rosto negro é a única moldura de que me
lembro em volta do meu berço. A mão de Tonha me segurando para andar, o sorriso
incentivando minhas bobagens de criança, o cafuné na cama. Nunca entendi como
ela sempre foi capaz de se multiplicar entre o fogão, a pia e as brincadeiras
que fazia conosco e, anos mais tarde, com os filhos de Joana.
Minha primeira
frustração foi o dia em que perdi a corrida até o balanço para Joana. Os passos
que ela aprendera a dar, mais largos e mais rápidos do que os meus, tinham
feito mais que ganhar uma corrida: quebraram a minha autoconfiança. E eu me
senti cheia de um sentimento que depois aprendi ser tristeza. Tonha, como
sempre, estava lá, com as suas lições de vida.
- Cara feia pra
mim é fome – disse ela, tentando me abraçar e me animar. – Acho que um
chocolate pode estar perdido aqui no meu bolso, querendo ser mordido por uma
menina bonita e cheirosa.
- Não quero! –
respondi com maus modos.
- Xi! A coisa tá
feia mesmo! Nem quer ver o meu chocolate...
- Não! – gritei.
- E por que tudo
isso?
- Porque eu perdi
para a Joana a aposta de ver quem chega primeiro no balanço.
- Ah! Só isso?
- Só?! Eu nunca
perdi para ela, nunca, nunquinha!
- Perdeu hoje.
- Ih! Para, viu!
Pode parar! Até você?
- Perdeu, perdeu,
perdeu.
Nem meus
movimentos bruscos soltaram os braços de Tonha. A cada tentativa, mais ela me
abraçava forte.
- Me solta! Eu tô
mandando!
- E desde quando
você manda?
Comecei a chorar
alto, mas não adiantou. Tonha me prendeu até que tudo o que restou foi um
soluço entrecortado, sem forças. Só então ouvi de novo sua voz.
- Perdeu hoje,
ganha amanhã. É assim que a vida é.
- Mas é ruim...
- É, é ruim.
Imagina então como é que foi para a Joana esses anos todos, perdendo, perdendo,
hein?
- Hã, hã.
Coitadinha, né? Primeira vez que ela ganha. Esses anos todos perdendo,
perdendo... Que horrível, né, Tonha? Foi bom ela ganhar hoje. Pra não ficar
triste.
- Isso mesmo.
- Amanhã eu ganho
de novo.
- Ou ela...
Antes que eu
emburrasse de novo, Tonha mudou de assunto:
- Chocolate mole
é bom?
- Não.
- Então corre e
come este aqui porque senão vai virar mingau de chocolate – disse, me
entregando minha barra preferida.
Chego,
finalmente, ao meu quarto, o terceiro depois do topo da escada. Tudo está impecável,
como sempre. O casarão, mesmo velho, possui conforto em cada um dos cinco
grandes quartos, todos com suíte, fiação elétrica restaurada e móveis modernos.
Mas o que é isso?! Onde está a minha cama entalhada? E o guarda-roupa que fazia
par com a cama? Abro assustada a porta do banheiro e vejo que até o armário de
laca sumiu. Meu primeiro impulso é descer na mesma hora para perguntar sobre o
acontecido, mas a necessidade do banho me vence. De qualquer forma, Joana não
parece estar em casa e é melhor perguntar diretamente a ela sobre essas
mudanças não autorizadas no meu quarto.
Enquanto a água
bem quente me alivia o cansaço, escuto um carro sendo ligado e, logo a seguir,
a voz de Tonha, gritando:
- Luiz, já tô pra
tirar o jantar, menino! Isso é lá hora de sair?
Deixa guardado
que depois eu esquento, Toninha – ele grita de volta.
Toninha? Essa é
boa! Nunca pensei que alguém conseguisse diminuir ainda mais o nome da pobre
Maria Antônia.
Bom, Luiz acaba
de sair sem eu ter tempo de falar com ele. Maria Fernanda, minha sobrinha, mora
em outra cidade, desde que se casou. Pelo visto, restamos na casa Tonha e eu,
mas ela não me viu entrando e é capaz de achar que sou um ladrão. Vou descer e
dar um alô.
O cheiro de peixe
grelhado captura meu estômago vazio e um instinto garante que vem acompanhado
de purê de batatas batido com ervas ainda de um molho de mel e mostarda. Antes
de entrar na cozinha, o barulho de metal de correntes desvia a minha atenção de
novo para o quintal. Tenho certeza de que é o velho balanço se agitando em
boas-vindas. Desisto do peixe e sigo em direção ao barulho, mas quando abro a
porta dos fundos vejo que o balanço está parado. Engraçado... Nem tem vento.
Com certeza é minha memória me pregando peças. A volta à casa de meus pais está
me fazendo ir e vir no tempo. Sem pressa, me viro novamente para o cheiro
divino do peixe de Tonha, mas, assim que dou as costas ao quintal, escuto outra
vez o rangido do balanço atrás de mim. Pelo visto, estou mais cansada do que imagino.
Dentro da
cozinha, caminho silenciosamente até Tonha e abraço por trás, estalando um
beijo em sua bochecha gorda. Ela se volta e, apalpando o meu rosto, pergunta:
- Berma?
De repente,
percebo que Tonha não enxerga. Seus olhos sem brilho miram o vazio além de mim.
- Bernadete, é
você mesma?
- Claro que sou,
Tonha. Não me conhece mais?
- Mas... mas...
- Tonha, o que
foi que aconteceu com os seus olhos? – mudo de assunto para evitar a emoção.
- Velhice.
Uma dor de cabeça
vinda do nada faz minhas têmporas latejarem; me sinto tonta.
- Preciso comer
alguma coisa, Tonha – peço.
Em silêncio, ela
termina de aprontar o jantar.
- Sente aí – diz,
apontando a mesa como se pudesse ainda enxergar.
Faço isso,
ansiosa por comer o cheiro bom que toma conta da cozinha.
- Eu ouvi meu
sobrinho saindo. Joana também foi passear?
Ela não me
responde e eu não sei por que está tão ranzinza.
- Tonha, por que
é que você está esquisita comigo?
Sem me responder
de imediato, ela põe a mesa e espera eu me servir antes de se sentar ao meu
lado.
- O que é que
você veio fazer aqui, Berna? Você sabe quanto tempo faz que você foi embora?
- Muito tempo...
– sussurro.
- E voltou por
quê? Por que agora?
Por que isso, por
que aquilo. Que droga!
- Tonha, qual é o
problema?
- Você não sabe?
Agora, estou
realmente assustada.
- Não, não sei de
nada!
- Joana está
doente. Está com aquela doença ruim.
Eu não escuto.
Não quero escutar. Não esperei tanto tempo para voltar para encontrar a minha
irmã doente! Joana é saudável, mansa, adora a vida, não guarda mágoas. Eu não
quero essa verdade! Joana não tem nada!
- Mentira! Quem
disse isso?
- O doutor.
- Esses médicos
não sabem de nada!
- É, pode ser.
Mas o destino sabe.
Não tenho tempo
para as superstições de Tonha e estou magoada pelo fato de Joana não ter me
dito nada só porque eu estava distante.
- Os meninos
sabem?
- Sabem, mas não
imaginam que a mãe está no fim. Joana prefere desse jeito.
- Pare de falar
assim! Eu quero vê-la. Em que hospital ela está?
- Hospital
nenhum. Está lá em cima, deitada.
- Ela está em
casa? Mas que loucura é essa?!
Sem me responder,
Tonha se volta para a pia. E eu aproveito o que se rompe entre nós para subir
correndo as escadas, até o quarto de Joana.
No primeiro
instante, só a escuridão me rodeia. Depois de acostumar a vista, vejo primeiro
os cabelos castanhos sobre o travesseiro e, em seguida, seu corpo magro coberto
pelo edredom pesado
- Quem é? –
pergunta ela com voz sumida.
- Sou eu.
Bernadete.
- Berna! –
exclama, desta vez com um pouco mais de vigor.
- O que é isso,
minha irmã? Dando um susto em todo o mundo?
Ela estica os
braços para mim, esperando que as minhas mãos encontrem as dela, trêmulas.
Aperto com força aqueles dedos finos e frios, e me aproximo para abraçá-la.
- Você veio
porque eu estou doente, não é?
- Não, eu nem
sabia. Foi a Tonha quem me disse, agora há pouco, na cozinha.
- Você esteve com
a Tonha?
- Estive.
Joana parece, de
repente, ainda mais sem forças.
- Eu estou no
fim, Berna.
- Não fale
bobagem, Joana! Você ainda vai viver muito!
- Não, não vou.
Senão você não estaria aqui.
- Eu? Mas eu já
lhe disse que nem sabia que você estava doente!
- Você veio por
mim, Berna.
E antes que eu
consiga retrucar, seu corpo magro se aninha com suavidade no meu.
Num canto do
quarto, vejo a silhueta de Tonha, apertando fortemente as mãos.
- Minha menina
descansou, finalmente!
Quero alcançá-la
para enxugar suas lagrimas grossas, mas ela não sabe mais que estou ali.
De pé ao meu
lado, sorridente, Joana me desafia:
- Aposto com você
que chego primeiro ao balanço!
- Calma, mana.
Desta vez, vamos chegar juntas – digo, tomando a sua mão na minha.
Pouco depois, as
correntes do balanço de madeira voltam a ranger, agora num vaivém incessante.
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