domingo, 2 de março de 2014

QUEDA DO MINISTRO EM TRÊS TEMPOS -- Anna Maria Assis Ribeiro

Episódio 1

Orgulhosa, ela escutou o convite: o Ministro queria conhecê-la. Sua solução para a automação no tratamento das informações daquele importante projeto era uma inovação, na época. Merecia elogios. Aprontou-se, o mais executiva que conseguiu com seu guarda-roupa nada ortodoxo e mandou-se para o ministério. Ali sentada, frente ao Ministro emoldurado pela Bandeira e pelo retrato do Presidente, deitou falação. Às folhas tantas o Ministro embatucou diante de uma fórmula matemática. Ela levantou-se, rodeou a mesa e colocou-se em pé, a seu lado, curvando-se para melhor explicar. Foi neste exato momento que sentiu alguma coisa roçar no peito do pé, acondicionado numa meia Dior, como pedia a ocasião (naquele tempo os Ministros eram importantíssimos! Acreditem os mais jovens). Deus! Faça com que não tenha corrido um fio! Esta meia é caríssima! Um discreto olhar revelou o horror! Uma barata instalara-se ali! O mundo desabou. Tudo escureceu! Privação de sentidos total! Ao voltar a si, percebeu-se de quatro, em cima da mesa do Ministro, aos gritos: Mata! Mata! A Bandeira e o Presidente da República ainda ladeavam o Ministro que em pé, com uma frieza glacial, ordenou: a senhora desça! Procurando manter elegância, impossível pelo quadrúpede recuo, escorregou mesa abaixo, obedecendo à ordem severa: a senhora está dispensada.
Episódio 2
Alguns meses depois. No dia 29 de dezembro duas datilógrafas batiam furiosamente uma Instrução Especial que teria efeitos tributários e que deveria para tanto, depois de assinada pelo Ministro, ser publicada no DO, antes do dia 31. Naquele tempo não existia xerox e o raio da Instrução era em 8 vias. As máquinas não eram corretivas e as cópias eram feitas com carbono, naquelas folhas fininhas, fininhas. Um trabalho cão. Terminaram já tarde. Alguém graduado tinha que ir colher a assinatura do Ministro. Infelizmente o único alguém disponível era ela. Fazer o quê? Disfarçou-se o mais que pode. Mas não surtiu efeito. Ao entrar viu o horror do reconhecimento nos olhos do Ministro. Um exame discreto para o chão garantiu a não existência de baratas por perto e ela postou-se ao lado do Ministro virando as páginas para que ele rubricasse cada uma daquelas malditas folhas de papel fino. A cada folha um sentimento de alívio. Nada iria acontecer. Foi aí que surgiu, sabe-se lá de onde, um copeiro com uma bandeja com xícaras de café. Cheias e pelando. Ao levantar o braço, alçando mais uma folha, foi-se a bandeja pelos ares. As xícaras derramaram-se sobre o Ministro e sobre a Instrução Especial, inundando-os de café. Em sua aflição ela tentou secá-lo com as próprias folhas da Instrução enquanto ele se debatia aos tapas, tentando dela se livrar. Escorraçada, ela retornou e confessou-se ao Presidente e ao Diretor que entre risos e censuras fizeram com que duas datilógrafas passassem a noite em claro (nunca mais falaram com ela, as duas).
Episódio 3
Alguns meses mais se passaram e ela foi chamada ao Gabinete do Presidente. O Diretor também estava presente. Solenes eles informaram que a Missão Francesa viria visitar a instituição, a convite do Ministro. Ela, em hipótese alguma, deveria estar presente. Que fosse a praia, ao cinema, onde bem lhe desse na telha, mas sob pretexto algum deveria aparecer nas imediações do prédio, no dia da visita. Enfim alguma coisa de bom havia resultado dos incidentes. O acúmulo de trabalho lhe tirava até os fins de semana. Uma trégua seria mais que bem vinda. No dia da visita arrebanhou os filhos: vamos à praia! Se eu vou faltar ao trabalho, vocês vão faltar colégio! Uma heresia nunca vista! Naquele tempo ela não tinha telefone. Era difícil conseguir. Era o número 1.144 da fila para obtê-lo! A campainha da porta revelou um colega e o prenúncio de tragédia: o interprete havia quebrado a perna num acidente de carro. Que conhecesse o projeto e falasse francês só mesmo ela. Tremeu! Uma hora depois se viu numa sala, sentada como um suspeito em interrogatório, acuada pelo Diretor e pelo Presidente que de pé, ferozes, gritavam: fique o mais afastada possível! Imóvel. Aja como um robô!  O olhar do Ministro, ao vê-la, revelou pânico. Ela engoliu em seco e com uma voz trêmula começou a traduzir e verter as diversas manifestações. Aos poucos foi se acalmando. É claro que nada iria acontecer. Até o momento em que um idiota qualquer sugeriu que o Ministro mostrasse ao General Francês, o CPD. Naquele tempo computadores eram raridades dignas de serem exibidas. A escada que conduzia ao CPD não tinha o espelho dos degraus. O Ministro, ao lado do General, começou a descida. Ela veio atrás, traduzindo, furiosamente. E... eis que o salto de seu sapato pisa fora do degrau e ela tomba para frente. Falta de outro apoio agarra-se às costas... do Ministro. Alguém que estava atrás impede sua queda. Mas ninguém, ninguém mesmo, impede a do Ministro que rola os felizmente poucos degraus que faltavam. Confusão total. Todos se precipitaram para ajudar o Ministro a recompor-se da queda. Ele levanta-se rubro de raiva gritando: esta mulher é uma catástrofe! Demita-se!
Epílogo
O Diretor e o Presidente não cumpriram a ordem e ela ficou escondida, impedida de participar de qualquer evento em que o Ministro pudesse estar presente. Já se passaram anos, muitos anos. O trauma causado não a abandonou, nem com seis anos de terapia. O Ministro, agora bem velhinho, às vezes vem ao Rio. Quando ela vê seu nome nos jornais recusa-se a sair de casa. Não importa o que tenha que fazer. Tranca-se no quarto enquanto ele permanece na cidade. Tem certeza que se pisar fora de casa, vai topar com ele e sabe-se lá o que poderá ocorrer! Pensa, às vezes, em se converter a alguma religião que, afirmando a existência de reencarnação, explique o que este Ministro lhe teria feito de terrível em outras vidas. Isto explicaria tudo e ela poderia se livrar, sem culpa, deste Carma.   

0 comentários:

Postar um comentário

Seu comentário aguardará moderação