NÃO ME DIGA QUE AINDA NÃO É PÁSCOA
Alexandra Rodrigues
Acordei hoje
com um fiozinho de vontade de antecipar a Páscoa. Não aquela dos ovos
pendurados no teto do supermercado em apetitosos cachos de chocolate. Nem tão
pouco a do Cristo ensanguentado preso dentro das igrejas decoradas de lágrima e
silêncio. Nada disso. O fio de ternura que escorre hoje dentro de mim pede-me
um cântico de aleluia que corra solto pelos verdes campos da alma. Pede-me que
desate o nó que prende o sectarismo ao preconceito religioso e que me entregue,
sem rótulo, à transcendência. Que reverencie a vida ao conviver com o meu
dessemelhante no altar do cotidiano.
Esse fio de
ternura que insiste em costurar o dia de hoje pede-me que desenjaule os deuses
dos altares em que foram confinados. E que me ajoelhe diante do sagrado que é a
vida à minha volta, feita de gente e de todas as coisas vivas. Pede-me que
revisite as mitologias, que escute os mestres de todas as culturas, aqueles que
se identificam com as forças do Cosmos. E que sopram sabedoria ao ouvido da
nossa interioridade.Esses que, mais do que pastores, são barqueiros.
Entre no barco
- diz-me a voz da Ternura - deixe-se conduzir pela Vida sem medos ou
ressentimentos. Não se deixe morrer de tantas mortes. Não se deixe morrer da
morte do amor, da morte da confiança, da morte da sabedoria.
O que verdadeiramente
temo não é essa morte que encerra a nossa passagem, mas a que jaz dentro de nós
enquanto estamos vivos. Aquela que nos rouba a anima. A que enterramos no
cemitério do eu quando nos tornamos desconfiados, cínicos, distantes,
previsíveis, quando a vida deixa de ser um passeio aventureiro de coração
aberto e se torna uma excursão com roteiro fechado aos lugares de sempre.
Sabe, o que eu
queria mesmo era brincar de morrer e ressuscitar todos os dias como criança
sapeca que se esconde e inesperadamente reaparece com uma risada,que brinca de
vivo-morto, que vive a ressurreição como uma força tremendamente lúdica que
restaura a vitalidade.
- Veja,
sou eu mesma, vá, ponha a sua mão no meu peito, sentiu? Essa é a cicatriz de
quando brincamos de espada e a sua acertou em cheio no meu peito. Vamos brincar
de novo? Eu caio no chão e finjo de morrer, depois você me dá a sua mão e cuida
do meu machucado. E eu vivo de novo e continuamos o jogo de morrer-viver.
É essa
ressurreição que me move e comove.
Não me diga
que pregaram nossas dores na cruz. Não me diga que derrubaram árvores para
construir templos. Não me diga que é dentro deles que preciso rezar pela vida.
Sabe, eu preciso mesmo é de reflorestamento interno, de me deixar penetrar pelo
mistério das coisas, de escutar o coral das vozes do mundo cantando aleluia na
vastidão do dia.
Por favor,
não me diga que ainda não é Páscoa.
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