quarta-feira, 14 de outubro de 2015







            Aos  aniversariantes do mês de outubro, os meus calorosos parabéns!

sábado, 16 de maio de 2015

Manuel Bandeira na minha memória - de Anna Maria A.Ribeiro

Foto do perfil de Anna Maria Assis Ribeiro
     Em minha bem sucedida carreira de “serial clumsy”, muitos dos episódios ocorreram em momentos trágicos e de grande sofrimento. A lembrança de um deles me vem hoje na leitura da deliciosa crônica Memória sobre Manuel Bandeira, publicada no último número do Montbläat, escrita por José Roberto Teixeira Leite (será ele parente de Dr. Edgar Teixeira Leite uma das figuras que mais me encantava nas minhas lides com Reforma Agrária?). Foi um dos episódios mais absurdos de minha capacidade de criar situações embaraçosas para mim, e muitas vezes para outros, e se deu exatamente num momento de grande tristeza para mim e para muita gente. Era dezembro de 1959, tinha eu vinte e nove e naquela época apenas dois filhos. Morava em Recife, casada com um oficial da FAB. Radiante, havia vindo passar as férias no Rio de Janeiro para participar das festividades de fim de ano que todos os anos envolvia a família numa sucessão de almoços, ceias e jantares que começavam no dia 24 de dezembro e se desenrolavam até o Dia de Reis, em janeiro. Poucos dias antes do Natal um telefonema destruiu nosso mundo familiar, tão divertido e tão unido. O choque de um avião da VASP com o de um cadete da aeronáutica havia provocado a morte de todos os envolvidos. Entre eles estavam meus tios Lucia Miguel Pereira e Octávio Tarquínio de Souza, ambos escritores. Ela, crítica literária, ensaísta e autora de extraordinárias biografias de Machado de Assis e de Gonçalves Dias; ele, historiador de fama, com quem aprendi que D. Pedro I era “femeeiro”, palavra que nunca havia escutado. Em casa de Lúcia (para mim Madinha) eu havia sido introduzida, muito cedo, num mundo de beleza, inteligência e cultura. Desfilavam por lá senhores e senhoras, criadores de personagens, poesias, quadros e desenhos que me haviam sido apresentados antes dos autores, desde muito cedo. Emocionada eu apenas assistia as conversas que me pareciam mágicas. Aquela cobertura, de onde se via o Parque Guinle, era para mim um lugar sagrado. Não eram só os tios que eu havia perdido. Uns poucos que os frequentavam eram também amigos de meu pai. Mas não todos. E eu não mais os veria em sua inteligência e brilho. O enterro no São João Batista estava um tumulto. No mesmo acidente havia morrido o repórter Luciano Carneiro. Eram três personalidades que ao mesmo tempo deixavam a vida e centenas de pessoas chocadas lotavam as capelas. Minha mãe, muito abatida, pediu-me: minha filha: cuida de Tio Frederico. Ele está muito velhinho e fez questão de vir. Tenho medo que se emocione demais. Tio Frederico era um desses tios que só se vêem em enterros. Morava fora da capital e raramente sabíamos dele. Era irmão de meu avô que eu nem havia conhecido. Corri os olhos pela multidão que lotava a capela. Lá no canto, sentado e chorando muito estava Tio Frederico. Sentei-me ao lado dele, sem coragem de dizer nada. Peguei sua mão e passei a acariciá-la tentando dar um apoio que nem seria tanto. Ele me olhava com uma expressão estranha. Era visível que não queria falar nada. Respeitei o seu silêncio e ficamos apenas chorando. Vez por outra, quando o choro recrudescia, eu o abraçava e lhe dava um beijo que parecia provocar mais estranheza ainda. Ao sairmos em direção ao túmulo eu lhe dei o braço e o amparei no andar. Lembro-me que pensei: ele anda bem para idade dele. Mas assim mesmo retardei o ritmo que ele tentava imprimir como que querendo fugir de meus cuidados. Quando tudo terminou alguém que eu não conhecia apoderou-se de tio Frederico dizendo que ia levá-lo em casa. E ele partiu sem se despedir de mim, ainda chorando muito. Livre da incumbência procurei localizar a família e dou de cara com Jorge Laclette, amigo de infância, meu e de meu irmão. Não consegui achar os outros e resolvemos ir a pé para casa de minha mãe, que era na Rua Mena Barreto e onde, certamente, todos se reuniriam naquela necessidade de se estar junto depois de um golpe desses. Foi aí que Jorge fez uma declaração que me deixou confusa: não sabia que você era tão ligada ao Manuel Bandeira. Surpresa, respondi: não sou, não, Jorge. Eu o via apenas em casa de Madinha. Ele veio? Jorge arregala os olhos e dispara: você está maluca? Passou horas de mãos dadas com ele. Abraçando, beijando, agarrada a seu braço!!!  Estarrecida me dou conta de que aquele velhinho (que na época era mais moço do que sou agora) não era Tio Frederico. Até hoje, anos passados de sua morte, o nome Manuel Bandeira me dá arrepios. Mesmo quando releio as poesias que adoro. Imagino o que deve ter pensado daquela louca que dele se apoderou impedindo que fugisse das carícias e do apoio não desejados: o olhar que eu identificara como estranho era de espanto e horror! Rezo para que ele nunca tenha identificado naquela moça a adolescente que o devorara com os olhos mais de dez anos antes. Chegando a casa mamãe me interpela: E Tio Frederico?  Covardemente informo que ele havia ido direto tomar o ônibus de volta. E passei algumas horas no terror da chegada da notícia de um velho desorientado vagando pelo São João Batista. Mas, aparentemente, Tio Frederico retornou são e salvo ao seu refúgio e morreu anos depois, sem saber que havia sido abandonado por uma sobrinha neta trapalhona.      

quarta-feira, 6 de maio de 2015

A PIPOCA - por Rubem Alves


A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-mo a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo - porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela.
Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do candomblé...
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista do tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa - voltar a ser crianças!
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosas. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! - e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. "Morre e transforma-te!" - dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perde-la-á." A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...

domingo, 26 de abril de 2015

TERROR NOTURNO – por ANNA MARIA A. RIBEIRO

Foto do perfil de Anna Maria Assis Ribeiro

     Por mais de uma vez estas crônicas falaram de Fräulein Grete. Até mesmo num pedido de desculpas pelo ódio infantil que lhe tinha, já que na provecta idade em que me encontro entendi que sua intenção era das melhores ao tentar me educar com rigidez militar. Tinha eu apenas quatro anos e uma de minhas queixas era a diferença que havia entre o trato dispensado a mim e aquele de que era alvo meu irmão de dois anos. Ele entregue aos exclusivos e ternos cuidados de Babá, maravilhoso ser humano de quem tenho até hoje enorme saudade. Até mesmo de Fräulein ele recebia carinhoso tratamento:meine schöne (meu lindo) enquanto eu ouvia um ríspido: richten sie (endireite-se!destinado a garantir um futuro saudável para minha coluna. O que, diga-se de passagem, não aconteceu ou porque eu não obedecia ou porque a postura correta na infância em nada garante a higidez na velhice. Outra queixa, mais que justificada, era a confusão que se estabelecia para o ato de falar. Morávamos em São Paulo, numa chácara linda e, sei lá por que razões Mamãe decidiu que além da Governanta alemã eu deveria ir para o colégio francês L’Assomption. Isto misturado ao linguajar do choffeur italiano (não se dizia motorista naquela época) complicou muito a forma de me expressar. Eu era acordada em português por Babá, tomava café em alemão com Fräulein, ia para o colégio ouvindo Seu Anselmo cantar a plenos pulmões em italiano antes de ingressar num mundo francês! Inexplicável também era o fato de que, acordada por Babá, eu era posta para dormir por Fraulein. E é ai que entra o terror noturno. Fräulein me fazia rezar em alemão, ajoelhada ao lado da cama, uma oração que para mim tinha um significado muito desagradável. Hoje, totalmente esquecida deste idioma, sou capaz de como um papagaio repeti-la sem entender o que estou dizendo.  Ich bin kein, soll niemand drin wohnen als Jesus allein. Amen. Fui conferir no Google a grafia e se a tradução correspondia à exortação marcada para sempre em minha memória: unicamente Jesus deveria habitar meu coração! E meu irmão, e meu cachorro, e meus pais, e minha irmã recém-nascida? Que droga, eu pensava! Tudo bem que Jesus também lá estivesse, mas só Ele?! Tentei discutir isto comFräulein. De nada adiantou. Ou melhor, ela me fez alguma reprimenda pelo que julgou ser uma blasfêmia. Não deve ter usado esta palavra, mas pelo enfático tom do qual me lembro devia significar isto ou coisa pior. Mas o terror vinha depois desta afirmação de exclusiva moradia cardíaca. Já eu na cama, Fräulein sentava-se ao lado e começava a cantar! A intenção devia ser, é claro, dar-me o carinho de uma canção de ninar. Mas o fato é que a cantoria soava como uma terrível ameaça que se repetia noite após noite. E as palavras que também papagueio agora sem ter ideia do que significam (também transcritas e traduzidas com auxilio do Google) eram, naquela época, por mim compreendidas e vaticinavam algo terrível:
Guten Abend, gut’ Nacht!
Mit Rosen bedacht,
mit Näglein besteckt,
schlupf unter die Deck’!
Morgen früh, wenn Gott will,
wirst du wieder geweckt.
A última frase significa: amanhã se Deus quiser você vai acordar! E se Deus não quisesse? Eu podia morrer durante a noite! Um horror! Pior é que esta possibilidade me parecia bem provável como castigo por minha recusa de manter somente Jesus no coração teimando em povoá-lo com seres humanos!  Noite após noite esta ameaça se renovava e ao ser acordada a cada manhã por um anjo terreno (Babá) eu respirava aliviada. O mais apavorante é que esta mesma canção em português era cantada por Babá para meu irmão tendo na última frase o desejo de que uma bela musica embalasse seu sono. Ou seja, a ameaça era mesmo só a mim dirigida. Não mais podendo aguentar o horror perguntei a Papai se de fato eu poderia não acordar. Ele riu e disse que era maluquice e que eu não deveria me impressionar com isto. Estabeleceu-se então uma discussão teológica, totalmente incompreensível para mim, entre Mamãe (muito devota) e Papai (nem tanto) que longe de me esclarecer provocou duvidas muito serias. Reivindiquei então ser posta na cama por Babá. Era uma solução e me foi concedida esta benção, com uma condição: Fräulein se encarregaria do preparar para cama e Babá me garantiria bons sonhos! Vai daí que eu continuaria a ouvir a voz de comando dada sempre à mesma hora e da mesma forma: zähne putzen (escovar os dentes). Esta é uma das raras frases que ainda digo em alemão sabendo o que estou falando. E certamente a que me credenciará como idiota se algum dia me for necessário mostrar proficiência neste idioma!

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Algumas lembranças da minha infância, na casa da rua Bambina - por Cecília Ottoni de Menezes



            Quando nasci, saindo da maternidade, no bairro do Humaitá no Rio de Janeiro, fui com meus pais para a nossa casa e de meus irmãos, que era também a de primos, amigos e empregadas queridas que lá passaram muito tempo. Era em Botafogo, à Rua Bambina número 160.
            No dia em que fiz seis anos, me lembro bem. Ganhei dois presentes bem importantes para mim, um dos quais a boneca Soneca. Eu pulava pela casa, toda feliz com ela e com Mariazinha, a nova arrumadeira, que era sensacional e que ficou conosco muitos e muitos anos, sendo um anjo na minha vida.
            Falando um pouco da casa. Era grande, com várias salas: a de visitas, a de jantar, a saleta e o bolário. A primeira, com portas de vidro e reservada às visitas de mais cerimônia, guardava objetos que meu pai trouxera de alguns países que visitara, como por exemplo um biombo chinês. Havia, igualmente, uma varanda na frente. A saleta recebeu o nome de Sala do Cascateio, dado por nosso irmão Cristiano. Um dia a inauguramos e foi ótimo! Juntou-se ali um monte de gente, primos, amigos, irmãos. Ele propôs que todos falassem juntos o que quisessem. E o amigo Ceará picou um monte de papeizinhos que foram jogados para o alto. Engraçado foi que cheguei nessa hora e, sem saber o que estava acontecendo, fiquei bastante admirada.
             Do bolário, onde se guardava bolas de vôlei; de futebol, novas e murchas, e suas respectivas bombas, tínhamos acesso ao campo de futebol, onde havia uma bela Mangueira. Quando as frutas amadureciam, meu irmão Álvaro, acordava cedinho e catava as dele, mas, quando eu lhe pedia, ele me dava uma com um largo sorriso.
           Até que um dia, como ele mesmo conta, acordou com um sapato novo Vulcabrás ao lado, preto, brilhante e a história de que, com ele, iria para um colégio interno.
           Puxa vida! Eu me lembro quando íamos visitá-lo, no colégio em Lorena, meus pais, meus irmãos Marcelo e Tereza, e eu. Voltávamos com o coração apertado, e chorávamos de saudades. Depois as cartas nos consolavam um pouco, porque, para nos alegrar, ele sempre contava algo pitoresco de lá, com carinho, arte e seu jeito característico com as palavras. E no campo de futebol da Bambina, ele era o mais craque.


 Bebé e Tereza


            Atrás do campo havia uma área com a casinha da Bebé, que tinha sido babá da minha mãe, tendo vindo morar conosco, acho que quando mamãe se casou. Ela era proprietária de um ovo de Madeira e cerzia meias com ele. Era boníssima, mas gostava de controlar as empregadas quanto ao desperdício das coisas. Um dia, pedi um suco de laranja para a Vanda, a cozinheira, e Bebé disse que era ela quem iria fazê-lo, pois ela é que sabia espremer até o fim, sem desperdiçar laranjas. Eu lhe respondi que queria que Vanda o fizesse, pois ela fazia mais rápido e eu estava com pressa. Discutimos. E ela começou a ficar brava. Veio atrás de mim,e eu subi a escada correndo com Bebé furiosa atrás de mim. O problema era que ela sofria do coração, e, às vezes tinha ataques, precisando-se chamar uma ambulância. Esse dia foi um deles e ela foi para o hospital.
           Fiquei preocupada, me sentindo culpada, até podermos nos abraçar de novo e vermos que estava tudo bem.
            Passando agora ao terraço do terceiro andar, "vemos" mesa de pingue-pongue, totó, sinuca e tevê; local aonde minha babá Petita, que também era uma querida, me levava para ver o repórter Esso, porque era gamada pelo apresentador. Lá havia também um som e minhas irmãs Tereza e Angela ficavam ouvindo as músicas românticas que curtiam. Às vezes, assistíamos de lá de cima a campeonatos de vôlei e futebol, que aconteciam no campo.
            De vez em quando, Angela fazia uma fogueira nesse campo. E também passava filmes em uma tela grande, lá colocada para a sua turma.
            Cada quarto abrigava dois irmãos. Tereza e eu gostávamos de curtir os sapatos e bolsas no quarto de Regina e Angela. Quando queriam conversar algum segredo, começavam a falar em Inglês. Nós não entendíamos e ficávamos furiosas. Regina gostava de ajudar a mamãe a nos educar. Matriculou-nos, a mim e a Tereza, no tênis no Clube Naval Piraquê da Lagoa, assim como no balé. Contratou uma empregada, a Lucimar, só para arrumar nosso quarto e nos levar aonde precisávamos ir. Regina gostava também de trazer novas modas de cabelos e roupas para nós, Angela também gostava de fazer penteados nos nossos cabelos. O problema era que Regina queria sempre que vestíssemos o que ela queria, mesmo quando nosso gosto era contrário. Quando Regina foi para os Estados Unidos, sofremos muito de saudades. Ela mandava muitas cartinhas, lindas e cheirosas, que eu amava, e quando voltou trouxe uma mala, grande, cheia de roupas e chicletes. Foi uma festa a Regina de volta e aqueles presentes maravilhosos.
            Uma vez, eu devia ter ainda seis anos, uma amiga do colégio Jacobina levou uma boneca que andava. Foi um sucesso na escola. Naquela época era uma novidade boneca que andava.
            Regina nos mandara revistas dos
Estados Unidos e um dia eu estava folheando-as, e que vejo! Uma propaganda da boneca igualzinha aquela!! Recortei-a e lha enviei, comentando que gostaria muito de tê-la. A boneca andava com pilhas e vinha com patim vermelho, bochechas rosinhas, e era lourinha, linda e cheirosa!
            No dia da chegada da Regina, meus pais, meus irmãos e eu fomos buscá-la no aeroporto. Estávamos esperando-a e olhando através de um vidro. De repente, ela apareceu, logo colocando, a seu lado, a boneca para andar! Igualzinha a que eu queria!! Foi muita alegria para mim! E ela contou que a pusera para andar no corredor do avião e havia sido um sucesso.
           Regina costumava fazer um resumo do Jornal do dia e falava para Tereza e eu o estudarmos e depois nos tomava a lição. A cada resposta certa, ela nos dava, digamos, o equivalente a um real, para que ficássemos mais cultas.
           O quarto do Cristiano emendava com o do Jorge. O deste tinha uma janela que dava para uma escada que vinha desde o primeiro andar e seguia até o terraço.
           Eu gostava de me sentar na escada em frente à janela do Jorge, que geralmente estava estudando física ou geometria. E pedia para ele fazer pra mim uns bonequinhos de papel que ficavam em pé. Geralmente ele fazia. E eram esplêndidos!
           Meu quarto, dividido com Tereza, tinha uma janela que dava para aquela escada. E, lendo gibi, eu via Álvaro e Marcelo subirem contentes com suas caixinhas de botões, para jogar futebol de botão no terraço. O que me afligia, pois quase sempre, dali a uns quarenta minutos, desciam os dois brigando, xingando cobras e lagartos. Foi gol! Não foi! Eu que ganhei! Foi falta! Não foi! E demorava pra essa briga acabar.
           No jantar, tudo parecia bem com todos, mas eu ficava igualmente tensa, pois geralmente havia discussões sobre política. Um dia saiu uma briga tremenda e Bento, o noivo da Regina, puxou a Tereza e a mim da mesa e nos levou para cima, pra não assistirmos a briga.
           Eu gostava de inúmeras coisas daquela casa, como o fato de haver vários quartos com diversos ambientes e nove irmãos que, embora às vezes bravos e tal, eram carinhosos e sensíveis em muitas situações. Sentia-me, porém, às vezes invadida e carente de um ambiente mais simples, com mais atenção dos meus pais, que tinham que se dividir entre seus dez filhos. Papai passava a semana toda em Brasília, onde trabalhou como Deputado Federal por 20 anos consecutivos, só indo para casa aos fins de semana.
            Mamãe costumava ir ao centro fazer compras ou ir ao dentista. E eu,frequentemente, ficava esperando-a na sacada que havia em seu quarto e que dava para a rua. Ficava ali horas naquela varandinha, morrendo de saudades. Muitas vezes me sentia perdida naquela casa grande sem a mamãe. Quando esta chegava eu a abraçava e ficava atrás dela pela casa. Gostava de chamar sua atenção, às vezes de forma meio lúdica, colocando debaixo de seu travesseiro, um bonequinho de borracha, desses que a gente apertava e fazia um barulhinho, finh fuinh. Assim, ao deitar a cabeça para dormir, ela ouviria o apito, e se lembraria de mim.
            A atenção da mamãe era muito disputada na casa. Tinha a hora do aeiou. Às vezes queríamos falar com ela e ela estava ao telefone. Geralmente demorava demais pra acabar! Ficava num eterno aeiou! 

          - Ah!! EH?! Ih! Oh, Ulh!
            Se estivéssemos com pressa era um tormento.
            O quarto dos dois irmãos mais velhos, Vianney e Luiz, era interessante. Em cima da mesa deles geralmente havia um avião em construção, um aeromodelo, que faziam com ripas de madeira e papel vegetal, e o colocavam para planar no Vale Florido, em Petrópolis, onde alugávamos uma casa de campo.





            Eram muito habilidosos, grandes engenheiros! No quarto deles havia uma janela que dava para um corredor, e, ao fim deste, situava-se o banheiro deles, e o escritório do papai.
            Que quando estava em casa, quase sempre era ali que ficava, concentrado, escrevendo suas palestras. Trabalho que amava fazer. Fez um programa na rádio Nacional durante quarenta anos, programa este irradiado por cinco minutos todos os dias da semana, de manhã e, depois, pela manhã e à tarde. Eram palestras sobre variados assuntos, como curiosidades científicas ou algo que ele tirava do cotidiano, com algum alento construtivo e espirituoso. Lembro-me de uma que falava sobre uma descoberta de que na nossa lágrima havia um efeito de antibiótico, algo assim, mas não era de qualquer lagrima, só daquelas do cantinho do olho, naquela mais profundamente sentida. Que interessante. Ele tinha muito talento para escrever; tinha poder de síntese, fina e espirituosa sensibilidade. Uma grande e linda alma, o meu pai Eurípides.
            De vez em quando, estando ele no escritório, compenetrado em seu trabalho, eu ia visitá-lo um pouquinho, e ele me dava atenção. Depois, falava que precisava voltar ao trabalho, mas, sem deixar de expressar um suave e verdadeiro carinho. Outras vezes, eu estava chateada com alguma coisa, e chegava lá reclamando, e ele pedia:- Dê um sorriso!

            Muitas vezes eu não estava com vontade de sorrir. Ele insistia. Eu dava  um sorriso sem graça, forçado, e acabávamos achando graça de verdade do fato.
            Há tantas coisas interessantes para serem lembradas daquela casa, durante a minha infância!               O "Alguém!" do Vianney, por exemplo, era assim: De repente, ele chamava, bem alto:                        - ALGUÉEM! 
            E poderia ser para nos dar algo interessante, que ele não queria mais ou para nos pedir algum favor. Então, nos arriscávamos para ganhar algo, ou para ter que lhe fazer um favor..


                                                             A família











domingo, 22 de fevereiro de 2015

Um trechinho de "Dicionário do brasileiro de bolso" - Teixeira Coelho


Alguns verbetes deste excelente dicionário:

LEVANTAR UM DADO

Os dados provavelmente estão sempre no chão ou, em todo caso, em algum nível inferior ao daquele que por eles procura, caso contrário seria impossível levantá-los. Os dados não são mais simplesmente obtidos ou conseguidos. Agora tudo é mais difícil. O conhecimento é um poço profundo e o pesquisador um halterofilista.

LEVANTAR UMA DÚVIDA

A ninguém ocorre "abaixar uma certeza". Dúvidas devem ser levantadas sem que se saiba se será possível, em seguida, abatê-las. O despencar de uma dúvida não equivale ao soerguimento de uma certeza. É raro aquele que tem uma dúvida. Parece menos auto-incriminador levantá-la.
De onde e para onde essa dúvida é levantada?


ONDE

(De dirigente "classista" na TV)
"Falei com o ministro ontem, onde ninguém me disse que essa medida seria tomada."

Não é mero erro ocasional; é clara a tendência de recurso ao "onde" para substituir outros advérbios - o "quando" em particular. É um processo de destemporização dos acontecimentos e dos sujeitos e sua consequente espacialização ou territorialização. Curiosamente, teóricos da pós-modernidade já apontaram para a decadência de categoria moderna do tempo e a ascensão da categoria pós-moderna do espaço. Até o início da modernidade o tempo era apenas um dado, componente inevitável do cenário da existência. Quando, na era moderna, o tempo passa a ser, além de medido, também fracionado, equacionado, construído, dilatado, comprimido e finalmente equiparado ao ou traduzido em dinheiro (tempo é dinheiro), tornou-se referente central da vida. Agora, na idade pós-moderna, é como se o tempo estivesse, na hipótese mais nobre, sendo abolido ou diminuído, encurralado, desbastado, pulverizado (pelo desenvolvimento de técnicas de locomoção, como no avião; pelo aprimoramento daquelas outras que permitem a superação imaginária das distâncias, como na TV) ou, na alternativa menos nobre, confundido, mascarado, apagado, eliminado da memória e da consciência das pessoas (o desejo de uma juventude o mais duradoura possível, a vontade de recuar ou ignorar a velhice parecem indícios desse fenômeno). Tenta-se agarrar o espaço por não ser mais possível viver o tempo, tenta-se apreender o espaço para através dele fruir imaginariamente um tempo ilusório...


PERFIL

"Vamos encontrar a pessoa com o perfil adequado para o cargo." (De um governador na TV.)

Muito atual. Antes, procurava-se a pessoa com a experiência adequada, com o currículo apropriado, com a competência exigida.
Hoje, basta reparar em sua silhueta.

PLATAFORMA

Os candidatos a cargos públicos comstumavam subir em plataformas para dali anunciar seus programas de governo. Por um claro processo metonímico, a palavra passou a significar, ela sozinha, programa de governo.

POSTURA

O que era uma característica típica dos galináceos, hoje tomou de assalto as páginas dos jornais, dos livros e as falas de todo mundo. Tudo é postura, não há mais decisões, atitudes, manifestações, inclinações. Seu uso é considerado sinal de erudição.

E por aí vai... Recomendo a leitura.