sábado, 16 de maio de 2015

Manuel Bandeira na minha memória - de Anna Maria A.Ribeiro

Foto do perfil de Anna Maria Assis Ribeiro
     Em minha bem sucedida carreira de “serial clumsy”, muitos dos episódios ocorreram em momentos trágicos e de grande sofrimento. A lembrança de um deles me vem hoje na leitura da deliciosa crônica Memória sobre Manuel Bandeira, publicada no último número do Montbläat, escrita por José Roberto Teixeira Leite (será ele parente de Dr. Edgar Teixeira Leite uma das figuras que mais me encantava nas minhas lides com Reforma Agrária?). Foi um dos episódios mais absurdos de minha capacidade de criar situações embaraçosas para mim, e muitas vezes para outros, e se deu exatamente num momento de grande tristeza para mim e para muita gente. Era dezembro de 1959, tinha eu vinte e nove e naquela época apenas dois filhos. Morava em Recife, casada com um oficial da FAB. Radiante, havia vindo passar as férias no Rio de Janeiro para participar das festividades de fim de ano que todos os anos envolvia a família numa sucessão de almoços, ceias e jantares que começavam no dia 24 de dezembro e se desenrolavam até o Dia de Reis, em janeiro. Poucos dias antes do Natal um telefonema destruiu nosso mundo familiar, tão divertido e tão unido. O choque de um avião da VASP com o de um cadete da aeronáutica havia provocado a morte de todos os envolvidos. Entre eles estavam meus tios Lucia Miguel Pereira e Octávio Tarquínio de Souza, ambos escritores. Ela, crítica literária, ensaísta e autora de extraordinárias biografias de Machado de Assis e de Gonçalves Dias; ele, historiador de fama, com quem aprendi que D. Pedro I era “femeeiro”, palavra que nunca havia escutado. Em casa de Lúcia (para mim Madinha) eu havia sido introduzida, muito cedo, num mundo de beleza, inteligência e cultura. Desfilavam por lá senhores e senhoras, criadores de personagens, poesias, quadros e desenhos que me haviam sido apresentados antes dos autores, desde muito cedo. Emocionada eu apenas assistia as conversas que me pareciam mágicas. Aquela cobertura, de onde se via o Parque Guinle, era para mim um lugar sagrado. Não eram só os tios que eu havia perdido. Uns poucos que os frequentavam eram também amigos de meu pai. Mas não todos. E eu não mais os veria em sua inteligência e brilho. O enterro no São João Batista estava um tumulto. No mesmo acidente havia morrido o repórter Luciano Carneiro. Eram três personalidades que ao mesmo tempo deixavam a vida e centenas de pessoas chocadas lotavam as capelas. Minha mãe, muito abatida, pediu-me: minha filha: cuida de Tio Frederico. Ele está muito velhinho e fez questão de vir. Tenho medo que se emocione demais. Tio Frederico era um desses tios que só se vêem em enterros. Morava fora da capital e raramente sabíamos dele. Era irmão de meu avô que eu nem havia conhecido. Corri os olhos pela multidão que lotava a capela. Lá no canto, sentado e chorando muito estava Tio Frederico. Sentei-me ao lado dele, sem coragem de dizer nada. Peguei sua mão e passei a acariciá-la tentando dar um apoio que nem seria tanto. Ele me olhava com uma expressão estranha. Era visível que não queria falar nada. Respeitei o seu silêncio e ficamos apenas chorando. Vez por outra, quando o choro recrudescia, eu o abraçava e lhe dava um beijo que parecia provocar mais estranheza ainda. Ao sairmos em direção ao túmulo eu lhe dei o braço e o amparei no andar. Lembro-me que pensei: ele anda bem para idade dele. Mas assim mesmo retardei o ritmo que ele tentava imprimir como que querendo fugir de meus cuidados. Quando tudo terminou alguém que eu não conhecia apoderou-se de tio Frederico dizendo que ia levá-lo em casa. E ele partiu sem se despedir de mim, ainda chorando muito. Livre da incumbência procurei localizar a família e dou de cara com Jorge Laclette, amigo de infância, meu e de meu irmão. Não consegui achar os outros e resolvemos ir a pé para casa de minha mãe, que era na Rua Mena Barreto e onde, certamente, todos se reuniriam naquela necessidade de se estar junto depois de um golpe desses. Foi aí que Jorge fez uma declaração que me deixou confusa: não sabia que você era tão ligada ao Manuel Bandeira. Surpresa, respondi: não sou, não, Jorge. Eu o via apenas em casa de Madinha. Ele veio? Jorge arregala os olhos e dispara: você está maluca? Passou horas de mãos dadas com ele. Abraçando, beijando, agarrada a seu braço!!!  Estarrecida me dou conta de que aquele velhinho (que na época era mais moço do que sou agora) não era Tio Frederico. Até hoje, anos passados de sua morte, o nome Manuel Bandeira me dá arrepios. Mesmo quando releio as poesias que adoro. Imagino o que deve ter pensado daquela louca que dele se apoderou impedindo que fugisse das carícias e do apoio não desejados: o olhar que eu identificara como estranho era de espanto e horror! Rezo para que ele nunca tenha identificado naquela moça a adolescente que o devorara com os olhos mais de dez anos antes. Chegando a casa mamãe me interpela: E Tio Frederico?  Covardemente informo que ele havia ido direto tomar o ônibus de volta. E passei algumas horas no terror da chegada da notícia de um velho desorientado vagando pelo São João Batista. Mas, aparentemente, Tio Frederico retornou são e salvo ao seu refúgio e morreu anos depois, sem saber que havia sido abandonado por uma sobrinha neta trapalhona.      

quarta-feira, 6 de maio de 2015

A PIPOCA - por Rubem Alves


A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-mo a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo - porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela.
Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do candomblé...
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista do tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa - voltar a ser crianças!
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosas. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! - e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. "Morre e transforma-te!" - dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perde-la-á." A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...