quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Palestra sobre o livro "Ópera do Poeta e do Bárbaro"


 
Palestra sobre o projeto de literatura Ópera do Poeta e do Bárbaro, de Pio Ottoni Júnior, ministrada por Angela Delgado na Biblioteca Demonstrativa de Brasília.
            Bom-dia a todos! Que o espírito de meu pai, que foi um excelente orador, encarne em mim agora, amém!
            Por causa do sobrenome da dinâmica coordenadora desta Biblioteca, Conceição Moreira Salles, sonhei que aqui embaixo havia um Banco, onde ela estava angariando público para esta palestra, pois vocês não haviam podido vir. Ainda bem que foi apenas um pesadelo!
Estive aqui no dia em que veio o Afonso Romano de Sant’ Anna. Não pude ficar, mas foi quando resolvi fazer a minha palestra neste local, cativada que fui por esta platéia tão simpática. Soube que se reúnem há vinte e seis anos! Não sei por onde andei nesse tempo todo...
Apresento-lhes minhas credenciais:
            Meu nome é Angela Ottoni de Menezes Delgado, morei durante nove meses na Bélgica, sou tradutora, publiquei uma trilogia pela Thesaurus Editora, sou avó de seis netos e como se isso fosse pouco, tenho a incumbência de ministrar-lhes uma palestra.  
E a inicio como os portugueses começam quase todas as suas falas:
Ora bom, vou lhes falar sobre a obra de um carioca que tinha “sotaque de mistério e de sonho”, vertida por mim para a língua francesa, para atrair os francófonos e por lutar contra a tendência do tempo, cada vez mais veloz, em que se decretou, e muitas pessoas acreditam nisso, que ontem já é passado; a antevéspera já caducou e é imemorial o que ocorreu no ano anterior. Justamente porque o tempo tem andado tão apressado, é que não está tão longe assim o ano da publicação de uma pequena edição, restrita aos familiares, de Ópera do Poeta e do Bárbaro, pelo autor, Pio Ottoni Júnior, em 1976, doente de câncer.. Afinal, vocês já estavam quase começando a se reunir...
 Pio Ottoni dissera que sua vida havia sido “um louco vulcão que nunca se atreveu a ter cratera."
 Talvez ela tenha sido este livro...
Ópera do Poeta e do Bárbaro é uma prosa poética dividida não em capítulos, mas, como  Os Lusíadas, em cantos.
            “Ao começarem a viagem através dos tempos, em companhia do Poeta e do Bárbaro, vocês participarão de seus diálogos, de suas confidências, de seus desentendimentos. Por vezes, testemunharão os conflitos entre dois velhos amigos que seguiram caminhos diferentes. Por vezes, vislumbrarão nos debates, as perplexidades que podem assaltar cada indivíduo nos seus momentos de íntima reflexão. Pio Benedicto Ottoni, homem de forte personalidade, autêntico, sereno como são os sábios, e profundamente humano, cedo se sentiu atraído pelas coisas do intelecto e do espírito. Mas, era também um esportista, um entusiasmado pela natureza, pela vida. E dedicou-se sempre a refletir sobre o mistério que cerca a natureza humana; descobriu a sinfonia da estética universal, que enxergava nas inúmeras manifestações com que a natureza nos brinda, nas maravilhas criadas pelo homem, e nos dramas e tragédias que compõem a existência humana. Seu espírito inquieto o fez subir o rio Amazonas em busca de sua nascente e a escalar montanhas, inclusive, o escarpado Dedo de Deus, nas cercanias do Rio de Janeiro. Nas Letras, leva-nos à gravidade das reflexões mais profundas, assim como às alturas dos vôos mais altos”, como bem se expressou um sobrinho seu.
Quando li este livro, achei a obra maravilhosa demais para continuar ignorada pelo mundo, pegando poeira na estante, e resolvi resgatá-la. Aprovada a tradução, melhor dizendo, versão, publiquei a nova edição, agora bilíngue, também pela Editora Thesaurus e com eles fui a Portugal e Espanha, onde lancei uma trilogia que havia publicado, mas, a “pièce de résistence” do “pacote” foi mesmo Ópera do Poeta e do Bárbaro, que, em Arouca (Portugal), faz agora, junto com a trilogia, parte do acervo da Biblioteca de sua Prefeitura (lá,Câmara municipal) e da Biblioteca Nacional de Lisboa, assim esperando que o obra do grande poeta e brasileiro Pio Ottoni se torne mais conhecida.
            Primeiramente, cogitei em dar a palestra para os alunos do curso de tradução na UnB, já que se trata de um livro bilíngue, mas lá me disseram que eu teria que me ater ao processo tradutório. Uma pena, dada a profundidade do livro, porém, eu daria um jeitinho de camuflar o conteúdo, lendo alguns trechos e perguntando se alguém teria traduzido de forma diferente, ao mesmo tempo abordaria o processo tradutório, aprenderia, talvez, com os alunos - e adoro aprender - como também divulgaria as belezas do livro. Mas, aqui, não preciso dessa camuflagem e posso abertamente ler vários trechos, sem que me fuzilem por isso. Esse foi outro motivo para eu estar aqui. Afinal, o conteúdo do livro é belíssimo e seria impossível ignorá-lo, apesar de que, sendo tradutora, óbvio que poderia falar sobre o processo tradutório. Difícil seria discorrer unicamente sobre ele.
Portanto, vamos ao processo tradutório:
Quando estava vertendo o livro, uma formiguinha teimava em passear pelos meus papéis. Eu a soprava, ela voltava; dava-lhe um peteleco, ela retornava; esmagava-a e lá vinha ela, ou ele, pois, se meu pai verdadeiramente não encarnou em mim hoje, naquele dia, meu tio, o autor do livro, certamente encarnou no inseto bisbilhoteiro, a inspecionar o meu trabalho.
            O duro foi quando me emocionei em um trecho, procurei-o para lhe mostrar minhas lágrimas e não o encontrei. Havia saído para dar uma voltinha...
            E mais: na digitação, um parágrafo teimava em ficar em caixa alta. Não conseguia de jeito nenhum diminuí-lo. Depois de várias tentativas, após descobrir um erro em suas linhas e corrigi-lo é que o parágrafo se normalizou. Foi de arrepiar.
            Continuando o processo tradutório, após o trecho em que o Poeta, cansado, senta sobre uma pedra e chora, lê-se (à página 38):
“Foi então
Que alguém
Me bateu às costas.
E disse: Levanta-te, vem conosco...”
 Fiquei na dúvida se não deixava a frase começar com um pronome ou se respeitava o original. Consultei um amigo revisor e sua opinião foi que eu não deixasse a frase começar por um pronome. Já um dos meus irmãos dizia que eu devia respeitar o original, mesmo porque quando ele lia um poema, seguia a cadência das frases e não a dos versos, ou seja, não fazia pausa no fim de cada verso, e, sim, ao final da frase, dois, três versos adiante, quando encontrava um ponto, para que a leitura fizesse sentido e ele captasse a mensagem do autor. E, continuava ele, “a regra de não começar a frase com o pronome se refere à frase. Por isso, acho que o “me bateu” não agride. Concordo que a eufonia deva prevalecer, se bem que isso também é um pouco subjetivo.” Finalizou.
Acatei sua opinião, mas, quando li a boneca, que é aquele “rascunho” do livro a ser publicado, dei de cara com um “me bateu-me”, quase enfartei. Por um triz o livro seria publicado com o respeito ao original e, ao mesmo tempo, à norma culta!
            Bem, alguns podem achar minha versão bastante literal. Defendo-me dizendo que a melhor maneira de se aprender uma língua, depois de viajar, é justamente a leitura, cercada de dicionários, de livros bilíngues, cujos tradutores não devaneiem muito e façam outras poesias inspiradas no que deviam traduzir. Sei que, visando enriquecer o texto, podendo, devemos optar por sinônimos graficamente diferentes do original, e me lembro das aulas do meu professor de tradução, que dizia que as traduções eram como as mulheres: quando belas, não eram fiéis e quando fiéis não eram belas.  Mas, continuo achando que se você quiser ensinar uma língua através de uma tradução, é bom não se afastar muito do que o escritor escreveu. Há tradutores que criam outra obra.
            Se bem que, às vezes é mister um certo afastamento, como demonstra o questionamento, infelizmente  tarde demais, de um dos meus nove irmãos, autor da orelha do livro, bastante arguto, mas sabendo pouco francês, que me questionou dizendo que eu havia traduzido “condecorado” por “decorado”. “Condecorado, em francês se diz “décoré”, e “décoré” tanto se refere a uma insígnia recebida quanto a um ambiente na Casa Cor. Mas, para evitar o quiproquó, eu deveria ter mudado o verbo “condecorar” para “marcar” (pág.15): assim, “condecorada por uma pegada”, em vez de “décorée d’une empreinte du pied”, ficaria:  “marquée d’une empreinte du pied”.
(Enxugando a palestra) No Canto Sexto, o Poeta um pouco desanimado de cooptar Bárbaro para o seu campo, desabafa:
“E eu me acabrunhei com uma ilusão tamanha,
Que obriguei minha língua a jurar a minha alma
Que jamais de novo tentaria converter um Bárbaro.
Para fugir ao suplício de apalpar a impotência das palavras,
Perante a onipotência de sentidos que as palavras podem ter.”

Ainda nesse Canto, o autor falando sobre o idioma da Poesia, diz que
“o poeta fala-o em verbos,
O músico canta-o em sons,
O pintor escreve-o em cores,
O cineasta o traduz em filmes,
O escultor conversa-o em formas,
O pirotécnico exprime-o em fogos,
 O arquiteto declama-o em estruturas.
Mas sempre balbuciando, soletrando,
Sempre num esforço rude de expressar o mistério,
De identificar em sons aquilo que nasceu sem som...”

Outro trecho que, acho, agradará a vocês é o da página 136:
           “E aconteceu
Que foram ambos à mesma festa:
Bárbaro analisa o ambiente – o poeta distribui amabilidades.
Bárbaro pesquisa alguém disponível – o poeta pesquisa alguma fada ali.
Bárbaro descobriu alguém aceitável - o poeta, um querubim em pessoa.
Bárbaro cumprimenta com técnica – o poeta promete um amor eterno.
Bárbaro serve champagne à dama – o poeta bebe à saúde da dama.
Bárbaro fez a conquista – o poeta está declamando versos.
Bárbaro oferece seu carro – o poeta nem moto tem.
Bárbaro dá o braço à dama – o poeta se embriagou e é expulso da festa.”

Por falar em carro, outro dia, estando no Rio, onde já não ando mais só de táxi, visto que nem ele é à prova de violências, peguei um ônibus com minha neta de sete anos e lhe perguntei:
- Clarinha, você já andou de ônibus?
- Já. No do aeroporto.
- O que leva os passageiros da sala de embarque ao avião não conta.
- Andei também no da Disney.
- Muito menos esse! Clara, você está andando em um ônibus de verdade, pela primeira vez, e, como nosso tio Pio contava, A Primeira Vez é o nome de uma fada,

“A fada do belo universal.
Os poetas vivem conversando com ela,
Pois tudo vêem como se fosse pela primeira vez.
Olham para o céu, como quando, no berço, olharam.
Contemplam o arranha-céu, como se fosse inventado hoje.
Vivem suas ruas de sempre, como um turista as passearia.
Por isso vibram, fremem, cantam.”

Vamos para a página 138:
“Mas não!
Não curem a alma doente dos estetas,
Pois suas moléstias são adubos sagrados,
Que dão seiva à floração das obras geniais.
É só nos miasmas deste solo que nascem obras eternas
E foi nesta jeira que Hamlet e a Divina Comédia nasceram.

Não curem os achaques dos sangues artistas,
Pois que a raça dos artistas não pode morrer.
Apesar de suas doenças, problemas e rebeldias,
De seus desatinos, de suas vidas repletas de erros,
A despeito de tudo, a raça dos poetas não pode morrer.
Para que a megera Rotina não mate o sentido do universo.
Para que tudo não seja engolido pelo marasmo dos prosaísmos banais.
Para que o tédio não gele os calores todos da existência.
Para que a morte não devore a vida.

Deixai os artistas doentes,
Deixai-os, eles sabem viver assim,
Pois que assim escreveram Vozes d'África,
Compuseram a Nona Sinfonia e esculpiram Moisés.
Deixai-os: os artistas serão sempre o que sempre foram,
Sofrendo muito, mas não há solução para seus problemas,
Pois há muitos milênios os poetas choram
E enquanto viverem chorarão.”

Outro trecho que tem agradado a muita gente é o da página 216:
                         “Não olhes com olhos gregos uma estátua asteca,
Pois nenhuma obra-prima resiste a um exame assim.
Não pesquises com alma vienense um coração chinês,
Pois lentes sem focalização só podem divisar absurdos.
Não cotejes indumentárias tupis com figurinos de Paris,
Pois Paris é bastante diferente das florestas tupis.
Não abras compêndios de Bach ao sabiá,
Pois o sabiá tem tantos admiradores quanto Bach,
Respeita as leis profundas de cada coisa,
Respeita, é tudo! E tudo entenderás!
                        E quando se pensa que a beleza no livro já foi mais do que suficiente, vem mais: a que destaquei na contracapa desta edição, por exemplo:
                        « Dias em que a vida
                        Dizia tantas coisas, que atordoava.
                        E o eu de cada um era uma editora de poemas impossíveis
            E o cérebro e o coração eram um furacão de partos
            E não havia parteiras para tantos partos
            E não havia berços para tantos filhos
            E não havia verbos para tantas idéias
            E não havia paz para tanto assombro.”
            Depois de o autor, no canto sétimo, ter louvado os que cantaram, no Canto seguinte, cujo título é “Mas quantos não puderam cantar”, ele exorta a todos que cantem ou louvem ou se expressem, e sai à procura de gênios. Anda pelas calçadas, tentando ouvir algum virtuoso tocando música, e acaba sentado em um banco da Avenida Rio Branco no Rio. Abre a Ilíada e adormece. Foi quando Homero se espreguiçou, e na folha do livro que ele não sabia se lia ou não lia, falou:
- Procuras Gênios? Vem comigo. Sei onde moram.
Chamaram Rafael e Wagner e partiram.
                                                                                                                                                      "E quando caí                                                                                                                                   em mim  estávamos                                                                                                                                     chegando à Avenida Rio Branco.                                                                                                                   Paramos e Homero avisou: Fiquemos aqui,                                                                                               Os Gênios passarão por aqui.                                                                                                                     Protestei:                                                                                                                                                       Não, procuremos as Academias,                                                                                                               Os Ateliês, os Conservatórios!                                                                                                               Ficar aqui na Avenida, como despreocupados,                                                                                         Como turistas, como apreciadores da moda,                                                                                              Como estudantes que não foram à aula?                                                                                                                                                                                                     Eles nada responderam:                                                                                                                                Olhavam o movimento.                                                                                                                               Era de tarde.                                                                                                                                                  Os carros avançavam, buzinavam ônibus
E as esquinas desaguavam magotes à calçada.
Desfilava o povo, passavam senhoras, passavam senhores,
De caras comuns, de maneiras comuns, de almas comuníssimas
E aquela cena, num passeio da Avenida, me era uma desilusão,
A mim, que vinha de tão longe, e acompanhado de três mortos,
Para descobertas sensacionais no mundo dos vivos.

Almas comuns?
Perguntou um deles irritado.
Não existem almas comuns, nunca existiram,
Cada alma é uma tragédia, cada coração um drama,
Cada momento uma esfinge, cada olhar um...

Mas não escutei o fim da frase,
Pois Wagner, de perto me chamava,
Dizendo que um rapaz de terno cinza passara
E que o seguíssemos, pois era um Gênio que passava.
Segurei Wagner: Não sejas louco, conheço o rapaz,
Ele não é compositor, nem sabe música,
É um pobre garçom de restaurante,
É apenas um homem a mais...

Wagner cravou-me os olhos acesos,
Em que ferviam acordes fulminantes
E gritou: Não existe homem a mais, não existe!
Que importa onde a vida o jogou, se sua alma é Gênio?
Que importa seu restaurante, se as almas nunca são garçons?

       Algum comentário ou pergunta?
Vou sortear agora três exemplares e quem não for contemplado com a Ópera do Poeta e do Bárbaro, poderá, a título de consolação, ganhar no sorteio da trilogia: Ephemeris, a idade do nunca (explico esse “nunca”. Estamos na faixa de idade em que nunca fomos tão esquecidas, nunca havíamos sentido essa dor antes, nunca mais teremos coragem de andar na “Montanha Russa” e por aí vai); Crônicas & Sabores, que como o título indica, contém receitas culinárias; e A segunda se fez quarta, que, devido à celeridade do tempo, hoje se chamaria A segunda se fez sexta. Um dos meus netos perguntou se comecei a escrevê-lo na segunda e o terminei na quarta. Mas elepoderia se intitular A segunda se fez quinta, já que é o dia em que uma das netas me informou ser o dia propício para a minha leitura.
- Vó, não é “óia de istudá”.
- E quando posso ler?
- Na quinta-feira...
 Arre, ficar sem respirar tanto tempo?!
Espero que tenham gostado da minha palestra inaugural. Pelo menos, eu não esquecerei esta fada. E agora me lembro de minha mãe elogiando uma sobrinha muito bonita e delicada: “... essa fada...” Percebendo o cacófato, tentou corrigir: “essa fadinha...”
Obrigada pela atenção e por colocarem à minha disposição o seu valioso tempo. Que Deus vos proteja e Feliz Natal a todos!









domingo, 11 de dezembro de 2011

Capítulo XXXV - Reminiscências - Angela Delgado

                                         
                                                                    
                - Eney me conta que, quando garotos, derreteram um pedaço de cano em uma panelinha (Mestre Cuca teria um enfarte) e colocaram em uma caixinha o chumbo derretido, que logo se solidificou e virou goleiro de jogo de botão. Eu me lembro desses goleiros!
                - Também que a bola, não a do jogo de botão (esta estaria irremediavelmente perdida), mas a de futebol caiu no vizinho, e não havia ninguém em casa. Uma casa geminada com a nossa, em que meu pai mandou construir um terceiro andar (não na casa contínua, na nossa), de onde avistávamos o pátio interno do vizinho e onde se instalara a bola “isolada”.
                Tristemente a visualizávamos, loucos para continuar a partida de futebol.
                - Naquele tempo, sem computadores...
                - Pregamos com taxinhas um barbante no fundo externo de uma cesta de papéis e a descemos emborcada, até ela chegar ao alvo. No entanto, como a subiríamos? Pegamos, então, o excedente do chumbo derretido que havíamos guardado e que se tornara um cubo, e com ele preso com duas voltas de um barbante, golpeamos o cesto emborcado e encaixado na bola, para que esta ficasse bem presa e não caisse ao ser içada. O que foi feito com muita emoção e sucesso, já que a bola, para a nossa sorte, havia se imobilizado justamente na parede divisória das casas!
              Foi nossa melhor pelada!
             - Quanta engenhosidade! E a história do aeromodelismo?
             - Escalamos a montanha em Petrópolis e lá de cima, soltei o avião, que foi arrebatado por um vento inesperado, caindo poucos metros adiante. Recuperado o avião, depois de ter recebido a permissão de minha agora atenta “torre interna”, planou, deu um show fazendo até uma curva, e desapareceu. Voltamos para casa e, no dia seguinte, quando todos foram jogar futebol, fui a pé, pois não poderia trazer o avião de volta estando de bicicleta, entrei mato adentro e trouxe o meu troféu!
                - Que beleza! Quantos anos você tinha?
                - Uns quinze, mas nesta foto, você está parecida com a mulher do Sarkozy, esqueci o nome dela...
                - Eu também!
                - É Madame Sarkozy!
                 - Muito engraçadinho. Tenho um cd dela. Vou lá buscar. Mas, eles estão guardados por ordem alfabética... Ainda bem que o nome dela é... Carla Bruni!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Ler o mundo

     Como diz Afonso Romano, “Quando a gente gosta de um livro (é a mesma coisa com um filme), fica cutucando as pessoas, ‘Você precisa ler’, ‘Eu adorei, leia, que vai curtir”.
                Não tenho o costume de usar esse último verbo, mas cutuco-os para saborearem Ler o mundo,  do qual pincei o seguinte:
Penso, logo leio – (tema de uma campanha francesa)
                “... Já se falou que o homem é um ser lúdico, enquanto outros afirmam que é um ser que pensa. Mas pode-se dizer também que o que nos caracteriza é sermos seres que narram sua própria história. Assim como na natureza há os roedores e os herbívoros, os humanos pertencem à espécie dos narradores. Narram oralmente, narram por escrito, narram pelo teatro, narram pelo cinema, narram por cores e volumes, narram fofocando por telefone e até por e-mail não fazem senão narrar.
                Cada texto
                         o seu contexto
                Cada letra
                         os arabescos

                Cada folha
                        outro dia
                        desfolhado
                        outra grafia

                Cada página
                        O branco do destino
                         com rasuras
                         desatinos
                Cada qual
                        com sua pena
                        moderna e antiga
                 Cada qual
                         com sua tinta
                         íntima
                         escorrida

                Cada escrita
                        uma roupa
                        na pele
                        da página
                        despida.

                A passagem do pictograma desenhado nas cavernas ao ideograma sobre o papel foi um avanço tecnológico significativo. No pictograma faz-se a representação direta da realidade. Por exemplo: uma montanha aparece desenhada como uma montanha, uma mulher representada como um triângulo que remete à imagem da região púbica e genital feminina. A passagem para o ideograma consistiu numa operação aparentemente simples, mas que levou séculos para ser realizada. Superpor uma montanha a um triângulo púbico passou a significar não mais uma montanha e uma mulher isoladamente, mas a mulher estrangeira, aquela que veio do outro lado da montanha. Surgia, então, de forma escrita, a metáfora, que é a concretização verbal de uma abstração.

                ... O que será a universidade do século XXI?
                Continuaremos a assistir a aulas expositivas? Continuaremos a copiar à mão algumas informações dos livros? Continuaremos a fazer xerox de livros? Os professores a levar para a casa quilos de papel pra corrigir? As teses continuarão a ser apresentadas em papel e serão defendidas como na Idade Média?”
                (Acho que não. Na sala do meu neto, quando um professor coloca matéria no quadro, espocam 30 celulares fotografando-a e os roteiros de estudo e notas de provas, os alunos  acessam-nos pelo site do colégio, sem falar no Tablet que substituirá os livros...)

                “Jean Racine lia escondido na floresta um livro proibido aos monges (pelo visto proibido a todos...). Descoberto pelo sacristão, o livro lhe foi tirado e queimado. Mas, Racine, dias depois, achou outro exemplar e levou-o para ler também ocultamente na floresta. Seu gesto também foi descoberto e o novo livro queimado. Quando ele achou um terceiro exemplar, decorou-o inteiramente e ele mesmo o entregou ao sacristão dizendo: “Agora podes queimar este também, como fizeste com os outros.
                Como diz o escritor Alberto Manguel, há algo que nos atinge a todos hoje. Compartilhamos nossa memória com o computador. Pior: conferimos a ele a nossa memória. E já que a nossa memória está eletronicamente fora de nos, confessa:: Trabalho com medo de perder um texto ‘memorizado’- medo que para meus ancestrais só vinha com as dilapidações da idade, mas que para mim está sempre presente: medo de uma falta de energia, de tocar na tecla errada e apagar tudo da minha memória, e para sempre.”

                No capítulo Aindaesperança, Affonso Romano nos conta que “A cidade, melhor dizendo, a cidadezinha tem 5.500 habitantes. E seu monumento principal reproduz uma pilha de livros com vários metros de altura. Não colocaram ali o busto de alguém, nenhum general a cavalo, nenhuma escultura abstrata. A cidade de Morro Reuter elegeu o livro como a coisa principal de sua vida.
                A cidadezinha, de colonização alemã, que tira seu sustento da indústria de calçados, está a uma hora de Porto Alegre. Não tem nem hotel. Por isso, hospedei-me em Novo Hamburgo, ao lado. Não tem hotel, mas tem cinco bibliotecas no município. É uma cidade nova. Tem treze anos de vida e há treze anos, desde que surgiu, Morro Reuter realiza sua Feira do Livro. Não estranha que tenha 98,4% de pessoas alfabetizadas. Pergunto, então, por aqueles pouquíssimos analfabetos, transformados aqui em peça rara. Explicam-me que são alguns doentes mentais,  pessoas velhas demais ou de paradeiro ignorado.
     Fui lá e constatei.
                E por aí afora, desde então, vivo dizendo que ainda há esperança. Se uma cidade elegeu o livro (a cultura) como seu projeto principal, nem tudo está perdido. Dentro dos tiroteios e incertezas, surge um caminho.”

                Em outro capítulo, Affonso Romano salienta que “ler é sair do espaço exterior para o tempo interior.”
                E a chave de ouro começa a surgir antes do término do livro, com a belíssima frase: “Numa sociedade sofisticada tecnologicamente, a leitura não é um luxo beletrista, mas uma tecnologia indispensável à sobrevivência pessoal e social.” E termina com a carta da página 226, onde comenta um estarrecedor episódio.
    
               Boa leitura a todos!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Segunda e última parte da resenha do livro "A menina que roubava livros"

            Liesel costumava passar pelas casas dos ricos onde buscava roupa para ser lavada. Com a guerra e os tempos difíceis, as madames foram dispensando o serviço. Liesel sempre se preocupava com isso, mas quando também foi dispensada pela mulher do prefeito, a única que ainda solicitava os serviços de sua mãe, em cuja casa e biblioteca podia ficar lendo, Liesel levou um choque tão grande, que recusou o livro que lhe era estendido como consolo.

            Um dia, porem, ela volta à casa e, entrando pela janela da biblioteca, apodera-se do que outrora havia lhe sido ofertado. Dias depois, o maior amigo de Liesel mostra-lhe um livro no peitoril da conhecida janela, o que foi uma grande tentação para Liesel, que se apodera do volume, onde encontra a seguinte carta:

: ... When you came back, I should have been angry, but I wasn't. I could hear you the last time, but I decided to leave you alone. You only ever take one book (mesmo quando ela os emprestava), and it will take a thousand visits till all of them are gone. My only hope is that one day you will knock on the front door and enter the library in the more civilized manner..."

      Se preferirem a versão espanhola...
    “Tendría que haberme enfadado cuando volviste, pero no lo hice. La última vez te oí, pero decidí dejarte tranquilla. Sólo te puedes llevar un libro de cada vez y tendrías que entrar un millar de veces para llevártelos todos. Lo único que espero es que algún día llames a la puerta principal y entres en la biblioteca de una manera más civilizada…”
                Quatro capítulos mais adiante, Liesel, ainda com treze anos, presencia um desfile de  judeus:
                “Las expressiones atormentadas de hombres y mujeres extenuados se volvían para  suplicarles, no ayuda – ya habían renunciado a ella -, sino una explicación.

                Liesel esperaba que fueran capaces de adivinar y reconocer en su rostro cuán profundo, genuino y perdurable era su pesar.
               ‘En mi sótano hay uno de los vuestros!’, quiso decirles…”

                O pai de Liesel, ao ver a triste procissão, não se conteve e jogou um pão a um dos passantes e isso lhe valeu, a si e ao judeu, covardes chibatadas e chutes. Mal se levantou, caiu em si, perguntando-se o que havia feito! Seria perseguido e sua casa vasculhada... Ficou, então, acertado que Max, se não fosse pego, voltaria a se encontrar com Hans Hubermann após quatro dias, em um lugar bastante afastado.

                No triste vazio no qual a casa mergulhara, Liesel leu no dicionário ganho o significado da palavra silêncio – ausência de som ou ruído.
               A ninguém escapou que o dicionário de definições estava completa e profundamente equivocado, sobretudo quanto aos vocábulos relacionados.
                O silêncio não era quietude ou calma, e não era paz.                                          
        
              A única coisa que Hans encontrou, quando chegou ao lugar combinado foi uma nota debaixo de uma pedra, junto a uma árvore: “Vocês já fizeram o bastante”.

                 Ler livros em várias línguas é uma delícia porque lendo que uma enfermeira alemã cruzou seus braços sobre seu “devastating chest” só posso sorrir ao visualizar a versão espanhola e sua “portentosa delantera”. O “Word” aqui já está ficando doido, pois não sabe mais em que língua se está escrevendo e eu, sem me dar ao trabalho de lhe esclarecer, adiciono tudo ao dicionário. O “Word” no meu notebook está ficando poliglota.
                Em outras frases, tenho que me render à beleza de uma tradução, como a que foi feita para a frase: “... half twitching, half speaking” que figurou desta maneira: “...mezclando tics y palabras...”.
               “Moonlight on dark, em espanhol ficou “Luz de luna en la oscuridad”. Dei uma olhada na versão francesa e ficou lindo: “Clair-obscur”. Não gostei como ficou em português:  Luar nas trevas.
                Não sei se vocês vão acabar gostando de tradução, mas quanto a mim, ainda vou ler este livro, no mínimo, duas vezes. Uma em francês e outra em português. Estou achando-o melhor ainda do que “Os Miseráveis”!

                Desculpem-me a demora da resenha, mas, é que não me contento com o trabalho dos tradutores. Checo tudo e se me deparo com algum achado, acrescento-o ao dicionário, para eventuais futuros consultores.
                Terminei a releitura mas não me estenderei nesta espécie de resenha. Termino-a dizendo que, apesar de conhecer a história, quase me engasguei no final (quem mandou comer um biscoito enquanto me emocionava nas últimas páginas do melhor livro que já li até hoje! E olhe que é difícil eu passar um dia sem ler...)
               Depois de passar o domingo lendo, sonhei que havia comprado um tênis para a minha mãe, que o experimentou dando alguns passos, mas ao segurá-lo, me arrependi de tê-lo comprado, pois não sabia se era um livro com cadarço ou tênis com lombada, onde, vejam só, faltavam páginas!