quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Poetas - Luís Fernando Veríssimo



            Ainda não sabemos tudo sobre Marte, mas sabemos o bastante para dizer que ele nos decepcionou. Marte foi um blefe. Os tais canais vistos pelas lunetas antigas, prova de que haveria alguma forma de vida inteligente no planeta, mesmo que fosse só de engenheiros, não eram canais. Nenhum vestígio de qualquer tipo de vida apareceu em Marte, muito menos o de uma civilização de homenzinhos verdes, ou de qualquer outra cor, com a capacidade para invadir a Terra. Anos e anos de literatura premonitória e previsões terríveis foram desperdiçados. Nos apavoraram por nada. Como no Iraque, também não havia armas de destruição em massa em Marte.
            Mas, se Marte revelou ser um imenso parque de estacionamento, que não ameaça a Terra, isso não quer dizer que não existam civilizações lá fora que cedo ou tarde entrarão em contato conosco, exigindo nossa submissão ou anunciando a invasão.
            Nada nos assegura que, se ainda não fomos invadidos por exércitos extraterrenos, não tenha havido – ou esteja havendo neste momento – missões de prospecção e espionagem, feitas por destacamentos avançados ou por agentes isolados. Não quero assustar ninguém, mas vou contar. Já tive contato com um desses agentes extraterrestres. Desconfiei quando ele disse “Vocês são engraçados...” e eu perguntei “Vocês quem?” “Vocês” brasileiros? “Vocês” carecas? “Vocês” míopes? Destros? Cardiopatas? E ele respondeu: “Vocês, gente.”
            E me confessou (já tinha bebido um pouco) que não era deste mundo, era de outro, e estava prospectando o Universo inteiro atrás de um planeta para ser colonizado pelo seu. Achava que tinha, finalmente, encontrado este planeta. Era a Terra. No seu relatório, recomendaria que a Terra fosse ocupada e sua principal riqueza natural explorada, pois era o que faltava no planeta do qual viera.
            Perguntei qual era a riqueza natural que nós tínhamos e eles não e o extraterrestre respondeu: “A poesia.” E perguntou: “Você sabe que a Terra é o único planeta do universo conhecido em que as pessoas dão nome aos ventos?” Fiquei lisonjeado com aquilo, pensando: “Taí, somos todos poetas e não sabíamos”, e perguntei o que fariam com os poetas da Terra no planeta dele.
            - Comê-los, claro – respondeu ele.

            E explicou que não havia mais poetas no seu planeta porque já tinham sido comido todos. Ou como eu imaginava que eles tinham se tornado uma civilização tão avançada?

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Homo Simius - Luci Afonso

Chego ao restaurante natural um pouco antes do meio-dia. Está vazio e há várias mesas desocupadas. Carrego quatro livros para devolver à Biblioteca e uma pasta cheia de papéis. Escolho um lugar no canto e os deixo lá antes de pegar a fila.

À minha frente, um grupo conversa com entusiasmo, ignorando a recomendação de não falar próximo aos alimentos. Cinco amigos de terno escuro debatem gestão de carreira. Absenteísmo, rotatividade e síndrome da exaustão flutuam cheios de germes sobre a comida.
Depois de pesar o prato, me dirijo à cadeira que escolhi. Para meu espanto, meus objetos foram trocados de mesa. O lugar foi ocupado por um dos cinco amigos, que está de costas para mim. Espero o pedido de licença ou desculpa:
— A senhora se importa em mudar de lugar? Queremos ficar juntos.
Ou:
— Desculpe-me, tomei a liberdade de mudar suas coisas para me sentar junto de meus amigos. A senhora se incomoda? - ao que, provavelmente, eu responderia: — Não, tudo bem. Bom apetite! - E tudo estaria em paz.

O homem não se vira. Os outros parecem ignorar o ocorrido. Penso em lhe dirigir a palavra, mas tenho receio de uma grosseria maior que estrague meu dia, como o gesto indelicado tirou minha fome. Resolvo me calar e engolir o bobó de palmito.

O assunto agora é gestão de pessoas. MBAs e doutorados pairam no ambiente, abafam o som dos talheres e silenciam os temas corriqueiros discutidos nas outras mesas.

Termina o almoço deles — o meu nem começou. Tenho a vaga esperança de ainda testemunhar um ato de arrependimento. Levanto-me e os sigo até a fila do caixa. Carrego os livros e a pasta na altura do peito para mostrar que eram meus. Nenhuma reação. Os homens pagam a conta e compram bananinhas de sobremesa.

Não desisto. Caminho atrás do grupo em direção à esteira rolante. Estão em silêncio, empanturrados, talvez. Dou-lhes mais uma chance: passo por eles bem devagar, olhando cada um nos olhos, a pasta e os livros bem expostos. Dois examinam meu corpo; um palita os dentes; outro me olha, mas não me vê. O principal suspeito observa a pasta, os livros, me encara e diz:
— Com licença...
— Sim? - pergunto, redimida.
— A senhora está atrapalhando a passagem -, e acelera a marcha, seguido pelos colegas.
— Pior que atrapalhar a passagem é mexer em objetos alheios - digo em pensamento, enquanto balbucio um pedido de desculpas que não ouvem, pois já vão longe.

Desnorteada pelos recentes acontecimentos, encosto-me na parede, respiro fundo e me lembro de que é hora do dentista. A chuva engrossou. Saio correndo até o carro e, de longe, avisto um bicho morto pendurado na janela do motorista. É o retrovisor, arrancado com fúria, mas ainda preso aos fios elétricos. Cancelo todos os compromissos e vou me refugiar em casa: o Homo Simius está à solta.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Vem e passa - Angela Delgado

     Pulverizo WD-40 no basculante do banheiro, mas nada acontece. Deixo-o por mais meia hora e tenho que arrematar o serviço com o martelo de borracha. Finalmente, consigo fechar a janela. Ganho o dia, porque o que me levara a remediar a situação fora ter visto, logo ao acordar, uma barata na parede do banheiro. O inseto veio de fora, pois a casa foi dedetizada há pouco - como dissera o marido -, então,  enquanto ele está às voltas com o bacalhau na cozinha, resolvi fechar na marra a janela, há anos impossível de ser fechada.
     Nesse dia obteria mais uma vitória: o neto, inusitadamente, não conseguira trocar a música do meu blog, e eu só dormi depois de triunfar: ufa, consegui!
     Assim, enquanto o “chef" coleciona quitutes, vou somando o que, pelo menos para mim, são pequenas vitórias gratificantes. É um baita preconceito achar que é coisa de homem tentar consertar fechadura; pegar em alicate e martelo; resolver um problema na cerca... Não que eu goste especialmente desses afazeres. Do que gosto é de consertar coisas, sejam lá o que forem. E claro que enveredei por esse lado por estar a cozinha ocupada...
     Mas por que escrevo isso? Porque também me apraz escrever e por causa do conselho de uma amiga escritora:

     “Não se preocupe com o pecado das letras e nem com a militar formação das frases. Escreva. Não busque os olhos críticos, tente encontrar os corações. Esqueça os títulos e as graduações. Escreva. Rime e brinque, crie, invente, seja poesia e faça poemas de vida. Escreva. Conte o seu dia, o momento do amigo, a saudade do pai. Escreva. Crie personagens, dê-lhes vida, conte histórias. Escreva. Mostre. O perigo não está em alguém não gostar do que escreveu, nem no estilo, nem nos erros. O perigo está em você não deixar livre sua alma, está em se preocupar com o que os outros fazem, em pensar que existe melhor ou pior. Escreva. Seja você em cada linha, seja cada palavra, viva tudo o que escrever, seja na vida ou na imaginação. Viva. Escreva...”
   

     Então, aqui estou para contar que, em minha caminhada, cumprimento com um bom-dia a mulher que cruza meu caminho, mas que não responde. Será que é surda ou, não sendo exatamente a coisa mais linda, mais cheia de graça, que vem e que passa, está se perguntando por que a “magrela” que sou está se exercitando. Esse é o ser humano invejoso. Mas, será que é apenas aérea e sua mente está alhures, e sou eu o ser humano que julga?
     No dia seguinte, indo num doce balanço, a caminho de casa, eis que à frente vem um cidadão. Como meu neto, com seu talento teatral, costuma exagerar dizendo que não paro em Posto de gasolina à noite, com medo de ser assaltada, sequestrada, violentada e morta, cogito em atravessar a rua, porém a calçada sombreada do lado de cá foi mais forte, e ouço do indivíduo um sorridente bom-dia! É o ser humano que também pode surpreender.
     Mariazinha é outro exemplo disso: Trabalhara para minha mãe, igualmente Maria, durante 40 anos e depois continuou a servir aos filhos de D.Maria, ao mesmo tempo em que plantara uma semente de amendoeira em sua casa, planejando se aposentar, quando a árvore crescesse o suficiente para que ela pudesse ler sob sua sombra!
      Um dia, não muito belo, o aviso foi dado da maneira mais pitoresca e eufemística possível: A árvore estava dando sombra...  
      Embora tenha eu sugerido, em tom de brincadeira, que ela fosse urgentemente podada, 
para que não se perdesse a Mariazinha, fiquei encantada com seu gosto pela leitura e lhe enviei alguns livros, para o seu mais do que merecido descanso.                                                     
     Lembro-me agora de outro modo de se transmitir a má notícia, bem sui generis: Seu animal de estimação morreu no telhado, no incêndio, involuntariamente provocado pelo desespero de seu marido, que, vendo-se arruinado financeiramente, se suicidou.
     E uma cronista incrível, que estava me alegrando diariamente com seus textos, anuncia, de supetão, sua derradeira postagem, sem ao menos ter proclamado a subida do "gato ao telhado"...