segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Sexto capítulo de "Beijos na alma"

A pressa de acordar para viver um novo dia me leva a dormir, mal o dia finda ou a noite começa, mas como fechar os olhos,se ainda não havia terminado de ler seu livro? À uma hora da manhã estava eu imersa na crônica "Espelho”, não examinando rugas, porém, matutando que, sem ter passado em um concurso, sequer saído de casa ou ganho a loteria (ou ganhei?), inesperadamente ficara mais rica.
O final do livro levou-me a reacomodar minha bagagem interior:
Com muito respeito afastei Saramago para o canto e apertei um pouco Ítalo Calvino; com cuidado enrolei Victor Hugo; com delicadeza comprimi Rosa Montero, Maturana e Chico Buarque; com amor superpus Pio e Luiz Ottoni e muitos outros e outras; dobrei experiências, aprendizados e alegrias; tirei melancolias, medos, mágoas e passei para uma mala de mão a música que me oxigena.
Tudo isso para abrir espaço para algo de peso que não pode ficar de fora: você, que foi convidada a vir me visitar e que me presenteou com seus livros, e a quem ofereci chá e pão de queijo, cuja receita aqui segue:
Pão de queijo
Ferva três copos de leite com uma xícara de óleo e escalde um quilo de polvilho doce.
Depois de frio, acrescente três copos de Queijo de Minas curado e ralado e oito ovos para dar ponto na massa resultante.
Faça pequenas bolas e asse ou congele.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Quinto capítulo de "Beijos na alma"

De volta a Brasília, releio um trecho de um livro da Clarice Lispector:
"Havia em Recife as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes.
- Aquele branco é meu.
- Não, eu já disse que os brancos são meus.
- Mas esse não é totalmente branco, tem janelas verdes."
Vem-me à lembrança a fantasia que tínhamos, minha irmã e eu, de sermos outras pessoas: Éramos Sônia e Ana, e eu, a primeira ou a segunda (não me lembro mais), por ser na realidade a número quatro entre inúmeros irmãos e suspeitar que deveria ser caro aprender balé, tinha então a fantasia não de possuir isso ou aquilo, mas sim a de ter aulas disso e daquilo. Das oito às nove era o balé; das nove às dez, patinação; das dez às onze aulas de equitação; à tarde, depois do colégio, aulas de línguas... E tudo voluntariamente, sem qualquer coerção materna.
E de fantasia em fantasia, acabei mesmo me enfronhando nas Línguas. Como prova, segue abaixo uma tradução:
“Entendemos por ‘poesia’, não apenas as palavras e as fórmulas dos poetas, mas um impulso místico, amalgamável, extático, visível ou latente em cada um de nós. Ele se manifesta através das palavras, mas também pelas emoções, paixões, sobressaltos, arrebatamentos, cantos, danças.”
Estou lutando no momento contra outro tipo de sobressalto. Aquele que me deixa apavorada, ao sentir quão frágil é a linha entre a sanidade e a insanidade. Sinto que a solução é alargar essa linha com muita emoção, paixão, arrebatamento, canto e dança.
E aí me transformei em blogueira!
Há anos que desejava transmitir as músicas de que gostava e, em minha santa ingenuidade, achava que isso demoraria muito para ser possível. Então, o segredo é desejar, e o universo nos satisfará. Daí a minha felicidade, aliás, alegria, já que é isso que importa, pois como disse John Locke: “Pergunte a si mesmo se você é feliz, e deixará de ser.”

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

BRASILIENSOPITECUS

Alexandra Rodrigues

O brasiliensopitecus é uma espécie capital do Planalto Central. A sua constituição resultou de um amplo processo migratório de terras distantes que o conduziu a deixar seus ancestrais e a se aventurar, no centro do território Brasilis, a um encontro com uma surpreendente diversidade de espécies.
         O brasiliensopitecus típico acorda todos os dias entre o verde e o céu, separado de ambos apenas pelo concreto do seu apartamento. Falamos, entenda-se, do planopitecus, esse homo alado que voa nas asas de uma vida relativamente confortável, entre um parque ecológico, um ministério e um shopping. Nenhum outro brasiliensopitecus se desloca tão rápida e naturalmente entre os espaços abertos, verdes e ensolarados de uma natureza superabundante e os espaços fechados de luz branca, com elevadores ou escadas rolantes. Assinale-se que o lagopitecus - a variante lacustre do brasiliensopitecus - compartilha esse estilo de vida, resguardando-se as especificidades dessa variação genética.
         Outra variante do brasiliensopitecus - o satelitopitecus - reside em cidades com segurança e prosperidade inversamente proporcionais à distância a que se situa do brasilensopitecus. Os satelitopitecus das mais variadas condições sócio-econômicas afluem todos os dias, em abundante escala, ao espaço dos planopitecus, assegurando o comércio, os serviços e grande parte da função pública, tornando-se como que habitantes sem habitação.
         O brasiliensopitecus alado e lacustre é uma espécie de grandes simetrias geográficas, mas de escandalosas assimetrias sociais. Dentro de suas casas assentes sobre a terra ou sobrepostas em camadas de seis andares organizados em blocos, por ordem inteiramente alfabética, podem ser identificadas duas áreas peculiares, tradicionalmente denominadas de área social e área de serviço. Na primeira convivem os seres alados e os lacustres, e na segunda os seres denominados de perifericopitecus. Estes percorrem diariamente enormes distâncias para servir aos brasiliensopitecus, limpando e cozinhando, e assim angariam seu sustento, tradicionalmente denominado de salarius minimus. Aqueles periferopitecus que não acordam às 4 da manhã para percorrer dezenas de quilômetros em precários transportes superlotados, moram nos apartamentos e casas dos planopitecus, geralmente em minúsculos cubículos anexos à cozinha, onde convivem com a roupa para passar, o aspirador e outros indispensáveis utensílios dos seres alados e lacustres.
         Não se entra diretamente nos apartamentos dos habitantes alados. Quando algum visitante chega aos blocos de moradia dos planopitecus, dirige-se a um periferopitecus que fica o dia inteiro dentro de um minúsculo compartimento situado na base do prédio, e é este ser quem se comunica com o planopitecus do apartamento, anunciando a chegada do visitante e solicitando autorização para a sua entrada. Só então este tem acesso a uma porta que o periferopitecus abre, por meio de um comando operado pelo dedo indicador da sua mão direita.
Geralmente os periferopitecus que guardam as entradas dos blocos de habitação dos planopitecus moram na base do prédio com suas famílias, em um espaço menor que a sala do planopitecus.  A sua remuneração é diretamente proporcional ao espaço que ocupam. Porém, as suas habilidades revelam-se inversamente proporcionais ao salarius minimus e ao espaço ocupado, haja vista que os planopitecus não sabem em geral fazer tarefas básicas como consertar seus eletrodomésticos, regular a descarga de seus vasos sanitários ou até mesmo resolver problemas com suas luminárias ou seus confortáveis chuveiros. Esta realidade merece ser investigada pela ciência, visto que a escolaridade e a preparação intelectual dos planopitecus é supostamente superior à dos periferopitecus funcionários de seus lares; o que afinal não é tão certo assim, visto que os planopitecus nomeiam suas ruas apenas com letras e números, em lineares combinações de 1 a 16, na casa das centenas, repetindo sempre as letras S e Q e variando apenas os símbolos que designam os pontos cardeais.
         A propósito de pontos cardeais, pode-se afirmar que o brasilensopitecus é uma espécie muito orientada: sempre informa em que ponto cardeal se encontra, para qual está se deslocando e sabe invariavelmente em que ponto cardeal se situam lojas, farmácias, escolas, hospitais. O brasiliensopitecus não é apenas orientado, mas também espaçoso e ao mesmo um tanto megalomaníaco: ele gosta de superquadras, de superempregos (para poucos, reconheça-se), de super e até de hipermercados.
         O brasiliensopitecus ocupa um espaço atravessado por eixos, eixinhos e eixões que regulam seus movimentos vitais. Constituído por cabeça, tronco e rodas, não necessariamente por essa ordem, ele dirige seus modernos meios de transporte pelas amplas avenidas da cidade.  As largas e longas pistas são um convite à velocidade, controlada por estranhos aparelhos com nome de pássaro. Embora geralmente mais educado no trânsito do que outras espécies tropicais, por vezes provoca acidentes que derrubam árvores, postes e vidas.
         A propósito, no final de uma das asas ocupadas pelos planopitecus, uma quantidade surpreendente de hospitais, aliada à existência de um gigantesco cemitério, sugere que os seus habitantes se envolvam com frequência em conflitos bélicos. De fato, os brasiliensopitecus não raro são atacados pelos habitantes de outras cidades, e até do país inteiro, e acusados, equivocadamente, de serem os responsáveis por diversas calamidades públicas, o que acarreta ferimentos danosos à sua dignidade e reputação.
         A despeito dos ataques e agressões sofridas, com projéteis disparados por todos os meios de comunicação, o planopitecus é fiel à sua cidade e consideravelmente preocupado com a realidade da periferi(d)a, embora raramente a visite. Aliás, acredita-se que tenha havido inicialmente uma massiva onda migratória de homens especialmente fortes para a construção das asas da cidade; mas há evidências de que os construtores tenham sido posteriormente expulsos para as áreas periféricas, por motivos até hoje desconhecidos.  Suspeita-se de poderes ameaçadores que se infiltram e instalam, em progressão geométrica, no território nativo desta espécie, a qual originariamente reconhecia apenas três poderes estruturantes da sociedade.
            É em meio a esses mistérios e contradições que se desenvolve essa espécie capital de promissor futuro, o brasiliensopitecus, com suas originais e contrastantes variações. Entretanto, pesquisadores atuais levantam pertinentes questionamentos: como evoluirá essa nova espécie que se fixou no Planalto Central do território Brasilis? Que devir terá o brasiliensopitecus, criador de uma civilização plena de contradições sociais e marcada por tão acentuadas diferenças culturais? Como será construída a síntese dessa diversidade? Ocorrerá, no futuro, um embate decisivo entre os planopitecus e os periferopitecus? Poderão os espaços verdes e ensolarados do brasiliensopitecus transformar-se em espaços fechados com luz branca e folhas verdes de outra natureza? Sobreviverá ele, como espécie, aos poderes que vorazmente se instalam no seu habitat?
Afinal, quais serão, daqui a milhares de anos, os achados arqueológicos em relação a essa civilização tão singular?

sábado, 1 de janeiro de 2011

Capítulo IV

 

     Em minha temporada carioca anual, dia ensolarado, voltando do mar, ou melhor, da beira-mar por causa da poluição, reparo que, diante da pequena inclinação da areia, dou uma corridinha - seria para tomar impulso? Do portão da minha casa até à porta da entrada, venço a ladeirinha do mesmo modo, como uma menina. Não que desgoste da criança interior, mas, vou corrigir isso, pois, uma mulher tem que ter um molejo machucado, indolente e sensual. Vinicius tinha razão. E agora, curtirei a praia, guardando caneta e óculos. Onde está o estojinho deles? Sumiu dentro da bolsa! Impressionante como as coisas desaparecem e até notas, que escrevemos como lembretes, parecem ter ojeriza às pessoas de certa idade, ou curtem a brincadeira de esconde-esconde.
     Voltando da praia de ônibus, senta-se ao meu lado uma mulher, que me pergunta se o mar estava bom. Coisa de carioca que, tendo que trabalhar, quer ouvir que a água estava suja. Depois de satisfazê-la com o que queria escutar, despejei minha indignação de brasileira:
     - Vou escrever para "O Globo" e perguntar como o prefeito tolera que os ônibus indiquem a direção em inglês. Não sou xenófoba, mesmo porque sou tradutora e adoro ler em outras línguas, mas protesto contra o letreiro "Sugar Loaf" nos ônibus do Rio. Não se traduz nomes próprios. Vide "Taj Mahal", "Machu Picchu" e outros. De mais a mais, não devemos subestimar a capacidade de aprendizado do turista, nem sempre americano.
      A sugestão da professora de inglês, Maria Eugênia, a quem desabafei minha perplexidade, é a de que a informação do destino "Pão de Açúcar" fosse ladeada com uma foto do ponto turístico.
     - Perfeito!

     Já não o é o fato de um pai, estando na praia sob um calor escaldante, perguntar à filhinha se ela queria se molhar em um daqueles chuveiros na areia, em vez de simplesmente levá-la. A criaturinha nada entende de desidratação e insolação. Os pais devem ser mais afirmativos e tomar a decisão por seus pimpolhos, em inúmeras e diversas situações, como a hora de sair da praia ou a escolha do filme a ser alugado. De preferência,  não violento.
     - Alô, Mate limão gelado!
     - Sundow, protetor, Rayto!
     - Canga!
     - Picolé de fruta, um real!
     - Olha o Globo!
     - Sorvete Itália, Kibon!

     Quando passar o próximo vendedor, vou lhe sugerir apregoar as horas. Garanto que venderia mais, pois, no meio da enxurrada de vendedores, faria a diferença dando algo em troca.
     Abro o jornal para ver a informação sobre o estado da água do mar, se está própria ou imprópria para banhos, já que os coliformes fecais não são visíveis a olho nu, e me deparo com um comentário à carta que saíra publicada no jornal, complementada com um desenho do Pão de Açúcar!

                                                 Pão de Açúcar

     Respeito a carta de Angela de M. Delgado, mas não concordo em que Pão de Açúcar seja um nome próprio que não se possa traduzir. A residência do presidente americano, White House, tem nome português, Casa Branca. Os francófonos a chamam Maison Blanche, e em espanhol é Casa Blanca. A Torre Eiffel, em seu país é Tour Eiffel, e, para os anglo-saxônicos, Eiffel Tower. Então, é perfeitamente normal que o Pão de Açúcar tenha nome distinto em inglês (Sugar Loaf), como tem em francês (Pain de Sucre). Isso indica um claro interesse dos turistas pelo monumento: afinal, só se chama algo em nossa própria língua se nos interessa de verdade."

     O susto foi passageiro, porque logo brotou em mim a resposta:

     O senhor..................... em sua carta reforçou meu ponto de vista. Os americanos não dizem "Casa Branca"e sim "White House".
     Publiquei três livros e neles há algumas expressões em inglês, francês, citações em espanhol e em italiano. Não sou contra esse tipo de globalização. Questiono a inversão, no Brasil, pelos próprios brasileiros, dos respectivos itinerários das linhas de ônibus. Uma cidadã brasileira, não obrigada a saber inglês, querendo ir ao Pão de Açúcar, pode esperar muito no ponto, enquanto passam ônibus para "Sugar Loaf", que não lhe diz nada. A língua aqui ainda é o português, como a Torre Eiffel, em seu país, é chamada de "Tour Eiffel".
Bem lembrado!