quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Catarata - Autora convidada: Anna Maria Assis Ribeiro

   
 A frase vem firme, carregada de competência: a senhora está com catarata senil. A expressão do rapaz é absurdamente sorridente (é um médico, mas referir-se a ele como “rapaz”, lhe traz um sabor de elegante vingança). Sufoca o ímpeto de responder com um “senil é a sua avó!”. Mesmo porque ele provavelmente concordaria. Arruma o tom certo (entre frio e calmo) e pergunta: não entendo o senil... O tom da resposta é paciente, ela diria até resignado, evidenciando que, do ponto de vista do "rapaz", sua senilidade estende-se muito além da catarata: minha senhora! É este o nome! Consegue que um fino sorriso escamoteie a raiva: mas desnecessário. Qualquer pessoa sabe o que é simplesmente catarata. Ligeiramente irritado, ele esclarece: catarata senil é o nome desse tipo de catarata! E, com desprezo, acrescenta: nome científico, minha senhora! Seus olhos, que agora sabe senis, vagam pela sala e pousam num exuberante vaso de margaridas amarelas: lindas as suas Crysanthemum Coronarium. O rapaz arregala os olhos. Explica num tom doce: nome científico de suas margaridas amarelas.  Agora francamente irritado, o rapaz revida: existe uma grande variedade de cataratas. A sua... Corta brusca, já se levantando: já entendi, é senil! Mas existe também uma grande variedade de margaridas...  E lá vai ela pela rua, tropeçando e pensando (tanto os tropeços quanto os pensamentos são causados pela catarata). Já em casa, bate a censura! Afinal é o nome da coisa! Vai ao dicionário, em busca do “senil”. Não que ignore o significado, mas quem sabe a definição será mais doce do que a agressão da palavra. Senil: relativo à velhice e aos velhos, próprio da velhice, velho, idoso, decrépito. Puxa! Sente-se culpada! Exceção feita ao “decrépito”, que lhe parece um desagradável exagero, o resto se encaixava perfeitamente à sua condição, já nem tão recente.  Mas no fundo, lá no fundo, julga ainda que não precisava o senil! Já que o dicionário está em mãos, porque não olhar a palavra “velho”? Ela nunca havia feito isto. Quem não sabe o significado de velho? Mas será que... A primeira definição pareceu-lhe um tanto cretina: “que não é novo”. Uma obviedade desnecessária, mesmo num dicionário que necessariamente tem de o ser. Logo depois: “que existe há muito tempo”. As duas definições se aplicam a ela como uma luva e, num silogismo verdadeiro, denunciam: quem existe há muito tempo é velho e senil; existo há muito tempo; logo sou velha e senil. Não havia do que se ofender. O “rapaz” tinha razão. Cientificamente, é claro.

2004


domingo, 8 de dezembro de 2013

Irremediavelmente amigos

Anna Maria Assis Ribeiro


Eram amigos desde sei lá quando. Parelhos em idade, ele três anos mais velho. Um
belo homem. Ela não era uma bela mulher, mas agia como se fosse e isto
convencia a todos de que o era. Naquela época estava ela nos primeiros anos dos
cinqüenta, ainda trabalhando na mesma empresa em que durante tantos anos,
empenharam-se juntos em inúmeros projetos. Ele, não mais. A cátedra de
professor numa universidade rural havia criado uma distância complicada de se
dar jeito, já que ele resolveu morar por lá.
E como os dois detestavam falar ao telefone, a conversa de todo sempre havia
ficado difícil. Conversa infindável, esta. Falavam de tudo: da vida, do
trabalho, dos filhos, dos companheiros, e do que mais viesse. Mas,
sobretudo, era no assunto “trabalho” que mais se encontravam. Formavam um time
perfeito, azeitado, mesmo nas discordâncias que quando surgiam sempre
resultavam num avanço pelo convencimento de um ou do outro que passava a remar
junto. A ela fez uma enorme falta quando se foi para outras paragens. Eles se
entendiam pelo olhar. Entusiasmavam-se tanto que quando iniciavam um novo projeto ficavam envolvidos dias após dia, entrando noite adentro no terreno das idéias, das descobertas, de soluções novas. Por vezes, numa coincidência incrível o Eureka vinha em uníssono. Custou a engrenar com outros parceiros. Numa bela tarde de maio ele a surpreendeu aparecendo em seu  trabalho. Estava morrendo de saudades, disse.                                                         Foi uma festa. Coisa tão boa vê-lo. Tinham tanto assunto para por em dia! Em linhas gerais até que ela sabia do que andara acontecendo: o terceiro casamento dele tinha ido pro brejo. Assim como o dela. Engraçado. Era a primeira vez que ambos estavam solteiros ao mesmo tempo. Sempre havia sido uma gangorra. Ele casava; ela descasava. Ela casava; ele descasava. Em todas estas idas e vindas, haviam ficado amigos também do cônjuge do outro que com o descasamento desaparecia das vidas... dos dois. E era assim que, a seu turno, eles tomavam a posição de terceira pessoa sempre presente junto ao casal que estivesse estável no momento. No dia em que ele apareceu, assim de surpresa, ela estava sem carro. O dela tinha dado um treco (para ela, carros não davam defeitos, davam trecos). Felicitou-se. Assim poderia pegar uma carona, esticando a conversa e quem sabe até esticando a esticada, num jantar. O carro deslizava pelo aterro do Flamengo ao som de uma música que ambos curtiam. E ele falou: lembra? O pôr-do-sol estava deslumbrante. Tudo tão bom. Tão bonito. E ela comentou: quando o dia começou não se anunciava tão perfeito. Ele sorriu: perfeita é você! Puxa, mulher, que saudade! Do lado de cá também, ela declarou. Ele, por segundos, desviou os olhos e olhou para ela. Parecia emocionado. Não, não era bem isto, era outra coisa. “Outra coisa” que começou a dar nela também. Cruzes, ela pensou, não pode ser. Que absurdo! E ele respondeu a seu pensamento, como sempre fazia e perguntou: absurdo por que? Ora - ela respondeu aflita – você nunca sentiu isso... Ele interrompeu: isso que você está sentindo agora... também? Ela emudeceu numa emoção adolescente. Meu Deus! A mão direita, firme, deixa o volante e se apossa da mão dela. Mágica! Pura mágica! Ele também emudeceu. Aumentou o som e a velocidade do carro que naquele dia lindo dirigiu-se à Copacabana. Daí Ipanema e Leblon se seguiram lindos, lindos. A chegada à Barra foi uma emoção só. Até a entrada no Motel foi fantástica. E foi ai que bateu nela o nervoso! Pode isto?! Tenho que falar alguma coisa. Qualquer coisa. Este silêncio está me deixando aflita demais. Naturalidade. É isto! Tenho que ser natural. E foi assim que ao entrarem no quarto ela perguntou: você conseguiu emplacar aquele projeto? Os olhos dele brilharam: e como! Vou mostrar a você.  Abre a pasta que havia trazido consigo e dela tira um calhamaço de papeis. No início em pé, ao lado da mesa de entrada, ele começa a explanação. Ela não se lembra do momento em que se sentaram e começaram a discutir sobre um ponto sobre o qual não concordavam. Lembra-se apenas que subitamente ele disse: estou morto de fome. Vamos pedir alguma coisa para comer? Ela apenas acenou com a cabeça. Estava concentrada tentando achar argumentos que sustentassem seu ponto de vista. Jantaram ainda discutindo. Afastaram os pratos e continuaram a discussão. Muito tempo depois foram interrompidos pelo som do telefone. Ele foi atender e voltou informando espantado: perguntaram se vamos ficar a noite toda! Ambos olharam para os respectivos relógios... e foram acometidos de um riso incontrolável. Sem a música e sem o belo pôr-do-sol, o projeto falara mais alto. Já voltando, na altura de Ipanema, ele comentou: jantarzinho caro, este, né?  

sábado, 30 de novembro de 2013

Auto-aprendizagem poética - Guido Heleno


AUTO-APRENDIZAGEM POÉTICA




A despeito de tudo 

continuo do mesmo jeito 

o chão abriu-se a meus pés descalços 

caí na armadilha como Alice em seu precipício mágico 

sabendo que todo final é a ponta de um novo início 

Malgré tout                                                                                                    
je suis comme toujours                                                                                   
la terre s´étant ouverte sous mes pieds déchaussés                                          
je suis tombé dans la trappe comme Alice dans son gouffre magique                                              tout en sachant que chaque fin est la pointe d´un nouveau début


A despeito de tudo 
tenho sobrevivido às tempestades 

mantido a dignidade das aparências 

enquanto a alma se esfarrapa em manchadas tiras 

este coração se tritura em sustos e frituras 

correndo à risca o que o destino dita 

ou o que indicam as cartas de tarot 

Malgré tout                                                                                                      
j´ai survecu à des tempêtes                                                                             
j´ai tenu la dignité des dehors                                                                           
tandis  que l´âme se déchire en lambeaux ternis                                               
ce cœur à moi se triture en sursauts et brûlures                              
laissant littéralement aller ce qu´impose le destin                               
ou ce que désignent les cartes de tarots

Aprender é uma questão de acreditar-se vivo 
ser barro ou cobre nos dedos artesanais dos minutos 

com toda a dignidade de um pintassilgo 

que mesmo preso no visgo 

canta seu código ao mundo 

desacreditando-se de gaiola e viveiros 

Apprendre c´est une affaire de se crôire vivant                                            
d´être de l´argile ou du cuivre                                                                
sous les doigts artisanales des  minutes                                              
et toute la dignité d´un chardonneret                                                        
qui même pris dans la glu                                                                    
chante son code au monde                                                                          
se décriant de cages et de volières


É a vida, camarada, 
bate o anjo suas leves mãos em meus ombros cansados 

sopra-me palavras nos ouvidos 

atira-me estrelas nos olhos 

estar atento aos indícios 

às configurações dos farelos sobre a mesa. 

sei das bulas e regulamentos 

conheço os perigos e corro os riscos 

peixe no anzol, mas dentro d’água ainda 

feliz por nadar tão rápido em direção contrária 

C´est la vie, mon ami,                                                                                    
 l´ange bat ses mains légères sur mes épaules fatiguées                          
souffle-moi des mots aux oreilles                                             
me jette des étoiles sur mes yeux                                               
question d´être attentif aux signes                                                    
aux configurations des sons sur la table.                                                  
 je sais les bulles et les règlements                                                             
je connais les dangers et je cours leurs risques.                
Un poisson à l´hameçon, pourtant encore dans l´eau                     
heureux de nager si vite à contre-courant


Em tudo se aprende 
não há como se livrar das limalhas sendo um potente ímã 

juntam-se folhas e poemas, fungos e rascunhos 

uma frase de Ferlinghetti, a imitação de Renoir na parede 

esta rede de fios eternos 

onde me deito para morrer e renascer a cada noite 

de cada dia.

Partout on apprend 
pas moyen d´échapper les limailles                                                       
si l´on est un aimant puissant .                                                           
Des feuilles et des poèmes,                                                                   
des fungus et des brouillons s´entassent.                                        
Une phrase de Ferlingueti, la copie de Renoir sur le mur,              
ce réseau de fils éternels                                                                      
où je me couche pour mourir et rennaître à chaque nuit                 
de chaque jour.





quinta-feira, 24 de outubro de 2013

E se só me restasse este dia - Angela Delgado

    

     O marido está almoçando na cozinha com a tevê ligada. Como hoje é um dia muito especial, faço o prato e, sem reclamações, vou almoçar, como mereço, ao ar livre  ao som de um coro de mil e uma cigarras. Disso, em Brasília no mês de outubro, não há como escapar, nem em meu apocalipse particular. Diga-se de passagem, isso é segredo, pois não quis melindrar ninguém, passando-o com uns em detrimento de outros. Como a Parca não me avisou com antecedência sobre esta minha ida brusca e prematura, não posso pegar um avião e ir despedir-me de minha querida irmã que mora na Inglaterra. Aliás, neste meu derradeiro dia, passando ela com a filha, genro e duas netas, quinze dias, nas Canárias.
    Fazer o quê, então? Deixar aqui o meu amor incondicional por toda a minha família e amigos é uma despedida. Fajuta, mas não posso nem sair à francesa e nem espalhar o pânico: último dia?! Mas, como? E a nossa viagem marcada para o ano que vem? É realmente uma pena, mas, quem sabe, poderei me juntar a vocês? Estarei lá em espírito, serve?

     A caçula tão amada, embora independente diria: - Mãe, o que vai ser de mim sem você? 
     É por esse e outros diálogos que tive que me calar e viver este dia mais ou menos normalmente. No momento, há dois netos aqui. Penso em, como última lembrança e contribuição, apresentar o livro Onde está Wally aos netinhos mais novos, grudados na telinha, vendo desenho. Tentarei mesmo assim. Não é que deu certo? Ele, com cinco anos de idade e sua irmã de oito, se encantaram ao ver Wally, aquela figurinha de camisa vermelha listrada incorporada ao cenário asteca de 200.000 anos, com suas cordas e cavalos assustados. Virando a página, ei-lo no mundo das pirâmides em meio a centenas de pessoinhas e sarcófagos, há 4.500 anos atrás. Em seguida, Wally se mistura aos romanos em um feriado no Coliseu, onde cristãos eram atirados aos leões (disso meus netinhos não ficaram sabendo). Depois viaja com os vikings e seus chapéus de chifre, em um mergulho de mais de mil anos. Continuando sua trajetória, o desafio agora é encontrar o bonequinho de camisa listrada, que está perdido no meio de catapultas e de uma multidão ao fim de uma das Cruzadas, há mais de 800 anos. Daí para cair entre camponeses, malabaristas, trovadores e bobos da corte na Idade Média é só um virar de folha. Mais uma, e, com certa dificuldade, o encontramos, fugindo das espadas e flechadas dos samurais no Japão de 400 anos atrás; nos barcos dos piratas com tapa-olhos há 250 anos; com um livro na mão, na Corrida do Ouro dos americanos, no final do século XIX; ainda concentrado em seu livro - esse é dos meus - em um baile em Paris há 100 anos, quando os homens usavam perucas e as mulheres dançavam Cancã; e, finalmente, no futuro, ao lado de naves, extraterrestres, robôs e mísseis.
     Assim, meu último dia vai se escoando. Eu, aqui, escrevendo, imagine, quando sou despertada pela campainha do telefone. É meu neto primogênito avisando que não vem almoçar e eu lembro-lhe da aula de dança de salão, daqui a pouco, quando em vez de eu ir dançar, neste que seria meu último dia, vou bem-humorada, como “votorista”, como bem lembrou uma “mãetorista”, que conheci outro dia.
     (Claro que se fossem realmente minhas últimas horas eu dançaria, mas como era só faz-de-conta, assisti à aula do sofá.)
     Voltamos, ouvindo pelo som do carro músicas deliciosas e entre elas, algumas que eu costumava ouvir nas festinhas da época de meus 15 anos, como "La mer" e "Unchained melody" com Ray Conniff, quando praticamente minha vida começava e, fechando seu ciclo, encerra-se com as mesmas músicas.
     Se tudo não passou de um pesadelo, pelo menos caprichei neste dia a mais vivido. Não saí muito da rotina, porém ficou mais do que provado de que gosto dela.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O Jogador de xadrez - Stefan Zweig

     Tenho vários irmãos que gostam muito de xadrez. Como somos dez, em meus tempos de solteira, havia épocas em que se passando pelo corredor, em cada quarto se vislumbravam dois jogadores debruçados sobre um tabuleiro de xadrez. Por isso, fiz uma espécie de resenha do livro acima, "Le Joueur d´échecs":
     Nele um dos personagens, austríaco, é preso pela Gestapo e confinado em um quarto hermeticamente fechado para o mundo exterior, contendo apenas uma porta, uma cama, uma cadeira, uma bacia e uma janela gradeada. A porta permanecia trancada noite e dia, sem que ele tivesse acesso a um livro, a um jornal, papel ou lápis. Ele estava imerso no nada. Tiraram-lhe seu relógio, para que  não mensurasse mais o tempo; sua caneta para que não mais escrevesse; seu canivete para que não cortasse suas veias; e cigarro, era coisa proibida. A única figura humana que via era a do carcereiro, que tinha ordem de não lhe dirigir a palavra e de jamais responder-lhe a qualquer pergunta. Ele nunca ouvia uma voz humana. Dia em noite, seus olhos, orelhas e demais sentidos não encontravam o menor alimento. Ele ficava só, desesperadamente só, frente a si mesmo, com seu corpo e quatro ou cinco objetos mudos: a mesa, a cama, a janela, a bacia. Vivia como um mergulhador sob seu aparelho de mergulho, nesse negro oceano de silêncio, mas, como um mergulhador pressentindo já que a corda que o ligava ao mundo se rompera, e que ele nunca seria içado dessas profundezas mudas. Não havia nada a fazer, nada a ouvir, em volta de si reinava o nada vertiginoso, um vazio sem dimensões no espaço e no tempo. Ia e vinha em seu quarto, com pensamentos que surgiam em sua mente, sem trégua, seguindo o mesmo movimento. Mas, por mais desprovidos de matéria que pareçam, os pensamentos necessitam também de um ponto de apoio, sem o qual giram em voltam de si mesmos em um louco redemoinho. Eles também não suportam o vazio. De manhã à noite, esperava por alguma coisa que nunca acontecia. Esperava, recomeçava a esperar e nada. Os pensamentos giravam em sua cabeça até suas têmporas doerem.
     “Isso durou quinze dias nos quais vivi fora do tempo, fora do mundo. Para mim, este consistia em uma mesa, uma porta, uma cama, uma bacia, uma janela e quatro paredes. Enfim começaram os interrogatórios. Eu era chamado bruscamente sem saber se era noite ou dia. Era conduzido por corredores para lugar ignorado...”
     Resumindo, para esses interrogatórios, esperar fazia parte do método. Começava-se por abalar os nervos do acusado indo buscá-lo no meio da noite. Depois, quando ele havia se recobrado, reunindo todas as suas energias para a audiência, faziam-no, para domá-lo no corpo e na alma, esperar durante uma hora, duas horas, três horas antes de interrogá-lo.
    Apesar da ansiedade e do cansaço decorrente, era, contudo, um alívio estar em outro cômodo. Seus olhos bebiam detalhes estúpidos e insignificantes, e ... de repente eles se fixaram. Havia descoberto alguma coisa protuberante no bolso de um dos casacos dos guardas, dependurados em um cabide. Aproximou-se e acreditou reconhecer, através do tecido o formato retangular de um livro. Um livro!
     Com habilidade, dissimulou e se apoderou do volume. De volta ao quarto, após passar por várias peripécias, como a ter que simular um acesso de tosse, para recolocar em sua cintura o livro que escorregava pela perna, qual não foi seu espanto ao deparar com representações tais como: a2-a3, Sf1-g3 (estou estranhando esses movimentos e como o manual de xadrez foi emprestado há séculos, vou perguntar ao irmão campeão o que um S estaria fazendo ali.)
      A princípio, essa espécie de álgebra era incompreensível para o nosso personagem. Mas pouco a pouco, vendo que se tratava de um manual de xadrez, compreendera que as letras a, b, c designavam as linhas longitudinais e os números de 1 a 8 as transversais. Encurtando a história, ele, com o lençol fez um tabuleiro de xadrez e com migalhas de pão as peças, sendo as pretas as que tinham mais quantidade de poeira (!). Durou três meses seu cativeiro e, quando foi libertado, lógico que venceu o campeão mundial de xadrez...

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O voto decisivo e traiçoeiro - Angela Delgado



Contrariamente à esperança de milhares de brasileiros, Celso de Mello, a quem jamais nos referiremos como o “saudoso ministro”, começou seu pronunciamento tentando, mas não conseguindo, justificar seu voto. Retroagiu aos idos de 1603, 1909, 1980, 1990, porém não chegou ao “aqui e agora”, botando a perder o momento histórico que seria a sua, e apenas sua, grande chance de restaurar a credibilidade do povo na justiça brasileira.
                Tudo se perdeu em artigos, parágrafos, incisos, alíneas, comentados com sorrisos destoantes com o nosso luto.

                Os embargos infringentes tão descabíveis na última e derradeira instância foram quase abolidos há algum tempo, conforme confessou Celso de Mello, acrescentando uma frase proferida pelo jurista Pontes de Miranda: “Muita injustiça se tem afastado com os embargos infringentes, onde o interesse não é individual e sim público.”
              A quem o ministro quer enganar? A injustiça que se fez hoje no STF terá tristes consequências. O Ministro Celso de Mello também foi incongruente ao afirmar que se manifestara contra os embargos infringentes, mas agora ao que demonstrou, involuiu. Se não cabe Habeas Corpus no Supremo, por que cabem embargos infringentes?

O ministro do veto de Minerva concluiu, espichando sua longa fala com referências à competência da corte interamericana, já prevendo o próximo passo de Zé Dirceu.
            Pedindo vênia aos bandidos que estão presos, que se abram as cadeias no país da impunidade!

Sabia que encontraria nas manchetes dos jornais do dia seguinte a palavra "pizza", bastante desgastada, que não expressa com veemência a indignação de um povo. Será que uma expressão mais forte como "Holocausto" ou "Canalhas" seria censurada pelo jornal? Celso de Mello perdeu uma oportunidade de ouro de afastar pessoas nefastas à sociedade. Com a frase "... ministros não podem deixar-se contaminar por juízos paralelos, resultantes de manifestações da opinião popular" se traiu. Ratos nos contaminam, enquanto raios de luz, de sol e o justo clamor da massa nos contagiam. Mas, teremos que esperar só mais um pouco. Eles não escaparão da condenação e se Joaquim Barbosa não entregou a Toga ontem, é porque faz questão de consolidar a merecida condenação.
Detalhe: o livro de  "1968, o que fizemos nós", de Zuenir Ventura, de 2008,  fala que José Dirceu e Celso de Mello dividiram um quarto, ou seja, são amigos de longa data. Daí, a  desculpa jurídica para inocentar o amigo.
O que explica, mas não justifica tamanho antipatriotismo.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Letra da música de fundo



Dvi lipe riči                            

Više mi vridi to ča me voliš
to ča me uvik razumiš ti.

Tebi je dosta da san ti blizu
kakve san voje ti odma znaš
bez da ti rečen bez da te pitan
sve ča mi triba uvik mi daš

Kraj tebe zaspen na tvrdoj stini
tilo je sito na kruvu i vodi
ništa mi drugo dušo ne triba
samo da jutro s tobon me budi

Više mi vridi to ča me voliš
to ča me čuvaš i razumiš
nego da nađen sve blago svita
ča će mi ako jubavi ni.

Više mi vride dvi lipe riči
ča mi ih rečeš za laku noć
ka lipa pisma ča dušu mi liči
sritna san s tobon anđele moj.

Ti si pokaza ča za te značin
kad si pred sviton ruku mi da
kad nisi sluša ča za me kažu
nego na moju stranu si sta.

Bez da te pitan bez da ti rečen
sve ča mi triba ti ćeš mi dat
i čagod za me čuješ od judi
uvik na moju stranu ćeš stat

TWO NICE WORDS

It's more worth to me that you love me
that you always understand me.

For you it is enough that I'm near you.
You know instantly what mood I'm in.
Without my saying, without my asking
you always give me everything I need.

Next to you I (can) sleep on a hard rock
body is full with bread and water
I don't need anything more, my darling
only to wake up next to you in the morning.

It's more worth to me that you love me
that you always understand me
than finding all the wealth of this world
what would I do with it if there is no love?

Two nice words are worth more to me,
which you say for a "good night",
like a beautiful song that cures my soul;
I'm happy with you, my angel.

You showed how much I mean for you
when you took my hand in front of the others
when you didn't listen what they are talking about me
(when you rather) stood by my side

Without my asking, without my saying
whatever I need, you provide
and whatever you hear about me from the others
you will always be by my side.

 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Alta ajuda - Tarlei Martins


Li em algum lugar que a filosofia é uma espécie de auto desajuda. É que a filosofia não facilita nada. Não tenho a menor atração pela dita literatura de autoajuda. Não gosto do excesso de simplificação que é o caminho da autoajuda. Também não gosto do excesso de complicação pelo qual costuma se embrenhar a filosofia – ou certos filósofos. Sou devoto mesmo é da alta ajuda que pode advir da alta literatura. O ser humano é um macaco complexo, como já disse Caetano numa canção. A literatura é um dos mais sofisticados e complexos exercícios de alteridade a que um ser humano, esse macaco complexo, pode se entregar. Porque a verdade é que quase nada sabemos de nós mesmos. A literatura nasce da falta, da falha… Somos cheios de buracos. A literatura é o impulso que leva o homem a querer saber de si – que é um querer saber de todos. Como diz uma canção, “todos nós um nó / todos nós os mesmos”. A literatura é a arte da procura. Quem escreve literatura, quem vai ao fundo de si mesmo, às vezes tem vislumbres de como se tramam os fios do feixe de sentimentos que comanda e sustenta o macaco complexo que somos. Esses vagos clarões sobre a desordem constitutiva dos nossos sentimentos são altamente redentores, humanizadores. A alta literatura propicia o que tão sabiamente disse Guimarães Rosa: “É preciso sentir até tirar as cascas da alma”. É isso que nos salva. Ou nos põe no caminho da salvação. Amém.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Revisão de receitas --- Roberto Klotz



        Preparei jantar para quatro. Convidei um casal de amigos. Eduardo, conheço pouco. Conversamos algumas vezes, sujeito perspicaz, introvertido e bem humorado. Ana é extrovertida, muito bonita e talentosa. Trabalhadora e dinâmica, consegue realizar dez atividades simultâneas. No escritório, sem cerimônia, assiste a todos os programas culinários matutinos e vespertinos, enquanto realiza tarefas de todos os tipos. É um casal à vontade. Sem frescuras nem fricote.  Mesmo assim, ofereço cardápio de escolhas: pizza portuguesa, lasanha de espinafre ou miojo de frango. Cerveja para acompanhar.
       Depois dos pratos esvaziados e apetites amenizados, tentei trocar algumas receitas. Estou engatinhando no mundo da culinária e Ana guarda orgulhosamente vários prêmios de concursos de gastronomia. Minha namorada até manifesta uma pontinha de ciúmes.
        Ana é expert na cozinha e eu sou ás no fogão. Percebi que nada havia a trocar e implorei que ela fizesse uma revisão no meu caderno de receitas. As receitas teimam em desagradar paladares, mesmo com tudo cuidadosamente anotado.
        Ana aceitou a insólita tarefa.
        Com toda a experiência e capacidade de trabalho, a análise veio rápida.
       . Julgo que seu problema são as vírgulas. Com excesso de vírgulas você pode queimar o angu. Na falta, ficará cru.
       . Outro problema é que você inicia muitas vezes com locuções adjetivas em vez de parágrafos. Sem parágrafos, você pode salgar demasiado e a comida ficará intragável.
        . Seu caderno está repleto de sugestões de macarrão miojo. Você repete muitas receitas: de pizza muçarela contei pelo menos oito formas diferentes de descongelar e assar.
        .  Recomendo eliminar suco de miojo.
          . Receita para uma vida feliz com Kama Sutra está no caderno errado.
          . Tortilhas, carne ou frango desfiado, pasta de feijão e guacamole fazem parte de um autêntico taco mexicano. O que não faz parte é tomar um copo de tequila para cada ingrediente.
          . Para deixar limpas e cheirosas as meias deixe de molho durante três dias com sabão em pó e amaciante. Rasgue a página. Está totalmente fora do contexto. Jamais poderia estar junto com sobremesas. Talvez no capítulo de molhos.
          . Não é a roupa de tirolês que vai melhorar o sabor do cachorro-quente com salsichas vienenses.
          . Reza para Santa Clara de Cascadura, quanto fritar ovos, não vai adiantar para não quebrar a gema. Procure outro santo.
          . A sopa de asas de galinha ao molho rosé está bleh. Insossa.
          . Pizzas podem e devem ser evitadas ao menos às terças-feiras. No café da manhã de terças-feiras.
         . Duas aspirinas diariamente após o café da manhã fazem parte do receituário médico e não gastronômico.
          . Comentário final: entendo que você tem talento e que vale a pena insistir na sua obstinação em aprender a cozinhar. Ao menos a capa do seu caderno é muito bonita.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Um desabafo - Angela Delgado



     A coluna de Merval Pereira de "O Globo" de ante-ontem destacou que:

"... a filósofa Marilene Chauí, uma das intelectuais do petismo, disse com todas as letras em evento comemorativo dos 10 anos do PT no poder:

"A classe média é o atraso de vida, é a estupidez. É o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante, arrogante, terrorista..."

Só isso, Sra. Palestrante?
Ela estava se olhando no espelho e se retratando, em vez de olhar para a estupenda classe média que está aí nas ruas corajosa, lutando por um Brasil melhor e clamando por um basta na corrupção; na roubalheira; no mau uso do dinheiro público e na impunidade, além de exigir a saída de Renan Calheiros, o repúdio à PEC 37; a melhoria da educação, da segurança, da saúde (Ronaldo, sem saúde ninguém vai a lugar nenhum, muito menos assiste a jogos).

     Parte do vandalismo, já se sabe (pela publicação da "Veja" Edição histórica de junho"), foi encomendado por um grupo de petistas, que desembolsou 30.000 reais pela farsa. O motorista do caminhão, que levou os pneus para serem queimados em frente ao estádio, confessou que recebeu 250,00 reais. Seria a bolsa-vandalismo?

     E é a classe média, segundo Chauí, que é terrorista...

     Disse também essa senhora, na frente do Lula (não sei se para puxar o saco), que ela odeia a classe média!

      Que os judeus odeiem os alemães ou que odiemos um político que desiludiu um povo inteiro, que mentiu, roubou e acobertou criminosos como ele, é completamente compreensível. Mas odiar generalizadamente milhares de pessoas que ela nem conhece, cujas lutas, esforços e qualidades ela desconhece! Nem os japoneses odeiam assim os americanos...

      No desdobramento de sua palestra, Chauí foi mais adiante: "A classe média é uma abominação política, porque ela é fascista, uma abominação ética, porque ela é violenta, e uma abominação cognitiva, porque é ignorante."

     Coitado do povo, que o governo faz questão de manter na ignorância, agora virou uma "abominação cognitiva"...

     E a que categoria de classe pertence M.Chauí? Uma filósofa conhecida não pode ser da classe C. É improvável que  quem passe fome e precise trocar seu voto por bolsas-esmolas consiga se formar em filosofia e ainda adquirir alguma notoriedade.

     À classe média  tampouco a petista pertence, visto ter vociferado contra ela e a caluniado.

     Classe alta, com toda essa grosseria? Pouquíssima probabilidade.

     Deve pairar em uma nova classe, ainda não muito conhecida e, para usar seu vocabulário, certamente abominável, por estar a léguas de qualquer ternura ("Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás").

     "Eu odeio a classe média."

     Essas palavras foram cuspidas para uma plateia justamente de classe média, pois os trabalhadores não podem se dar ao luxo de faltar ao trabalho para assistir a uma palestra. Nem é o seu perfil.

    A classe alta, sem contar  com os novos milionários oriundos do governo, feitos da noite para o dia, agrega muitas pessoas que estudaram e labutaram muito para lá chegar, mas provavelmente ninguém dessa classe iria marcar presença em uma sala onde falaria um membro do PT.

     Portanto, por exclusão, foi a classe média que recebeu no rosto uma declaração de ódio e reagiu boçalmente, rindo e aplaudindo!?
      Estava me esquecendo de que muitos trabalhadores, satisfeitos com tanta bolsa-esmola, não trabalham mais e, quem sabe, não teriam sido levados de caminhão para a claque?

   Tem gente que odeia pobre (já ouvi isso até da boca de uma faxineira, sendo ela mesmo o sujeito do verbo).  
   Tem gente que odeia o esnobismo e a demonstração de riqueza, muitíssimas vezes acumulada, no Brasil de hoje, desonestamente.
   Tem gente que odeia jiló.
   Mas odiar o meio termo?
   No entanto, ela odeia. Como consegue suportar tamanha carga de ódio?

terça-feira, 18 de junho de 2013

Extratos de "Múltipla escolha" - Lya Luft



O cenário é uma casa,
Cabana ou castelo.
Alguns manequins de plástico
são os atores:
Soldados rei, servos
- e alguém que já morreu.
Portas abrem ou fecham
Num longo corredor,
Para eu inventar objetos
E falas.
Porque teatro é mentira,
Posso mudar tudo:
Criar árvores no mar,
Pássaros e trilhas
que se entrecruzam
Incomunicáveis.
(Mas por cima,
Como estrelas,
eu vou botar
Palavras.)

A realidade é que família não é para “ser feliz”: é para lutar juntos, ou uns contra os outros; para preparar para futuros embates e decisões positivas; formar boas lembranças, ser base de projetos, dar força para guerras particulares que virão.
Todas as nossas atitudes são determinantes, também as mais escondidas. Nem sempre obedecemos a mitos ou enganos, mas cumprimos desejos legítimos e sonhos possíveis, como o de saciar as nossas grandes fomes.
As fomes que nos movem são a mola que leva nossa mão à maçaneta da próxima porta, atrás da qual vamos desenhar a casa da vida. É uma construção que vai se fazendo a posteriori após esse nosso gesto. Além de cada porta está no começo um vazio que temos de preencher com escolhas: nesse momento erguem-se paredes, e vamos pegando as tintas, os móveis, as falas, as ações, o curso de toda a nossa história.
Quero expandir o conceito de fome, que é o que impulsiona o sonho: o que interessa, o cerne, o caroço, o áspero e pesado material de construção de vida, corta nossa pele, lasca nossa alma, dobra nossos joelhos.
Não há receitas, neste universo de receitas até para ser feliz em dez lições a preços módicos; não há facilitadores, ainda que a gente diminua o nariz, preencha fendas, remova manchas, entorte a alma.
Há quem reclame: os policiais deviam ser menos brutais. Deviam, ao menos cuidar do lugar onde vão atingir os facínoras: “Quem sabe um tiro no braço ou no pé?” Tive de reler a notícia: estão brincando conosco? Imaginei o pobre policial com revolverzinho velho, mirando para o bandidão com fuzil de última geração e carrão importado e pedindo, licença, moço, vou dar só um tirinho no pé.
O banditismo floresceu por falta de autoridade e ordem, mas receio que agora qualquer rigor seja objeto de clamor dos defensores dos direitos da bandidagem, que deviam era cuidar das vítimas. Seria preciso conseguir com a máxima urgência leis atualizadas e firmes, incluindo a responsabilização por seus crimes de malfeitores de dezesseis anos ou menos, frequentemente verdadeiros monstros morais. E que não lhes permitissem, não importa a idade, saírem tão depressa das prisões: a quase totalidade volta a cometer seus crimes, – e um de meus, teus filhos, pode ser a próxima vítima.
A vida é uma longa construção: em geral a enxergamos como deterioração. Não conseguimos apreciar o outro lado, que é o acúmulo, experiência, serenidade, mínima sabedoria, mais tempo, quem sabe mais bondade. Construção de emoções positivas, com porões de tristezas e um sótão de decepções, mas a sala e os quartos arejados, com portas que podemos abrir para que se revele o que ainda virá em seguida e vai se desdobrar.
Isso é o que a “a gente decide”.
Fatalidades à parte, somos senhores de algumas cenas do espetáculo chamado vida, podemos modificar algumas falas, interferir no roteiro, escolher o personagem que somos e com quem desejamos contracenar. Tudo isso, ate certo ponto, pois as circunstâncias, a família de origem, as opções posteriores até o lugar onde vivemos têm seu peso, e não é pequeno.
Com tantas ilusões infantis, que arrastamos maturidade afora, não é fácil entender que não é preciso escalar o Himalaia intelectual ou social, ser uma pessoa famosa, um homem poderoso ou uma mulher deslumbrante para que a vida tenha sentido e se atinja um grau de harmonia, que chamo de felicidade. Encontrar o contentamento não tem a ver com carteiras, cartões, medidas e pele lisa, liderança óbvia ou alta competitividade.
Criar não está limitado aos artistas: cada um de nós cria sua hora e sua honra, seu dia e sua existência.
A cada dia de cada vida, realizamos um trabalho a quatro mãos: nós e o velho amigo-inimigo chamado destino, abrindo e povoando um espaço que a cada gesto e pensamento nosso se expande e se ilumina, ou se apaga na neblina dos desejos inúteis.
Essa é a nossa múltipla escolha.
Simples assim, complicado assim.