quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Palestra sobre o livro "Ópera do Poeta e do Bárbaro"


 
Palestra sobre o projeto de literatura Ópera do Poeta e do Bárbaro, de Pio Ottoni Júnior, ministrada por Angela Delgado na Biblioteca Demonstrativa de Brasília.
            Bom-dia a todos! Que o espírito de meu pai, que foi um excelente orador, encarne em mim agora, amém!
            Por causa do sobrenome da dinâmica coordenadora desta Biblioteca, Conceição Moreira Salles, sonhei que aqui embaixo havia um Banco, onde ela estava angariando público para esta palestra, pois vocês não haviam podido vir. Ainda bem que foi apenas um pesadelo!
Estive aqui no dia em que veio o Afonso Romano de Sant’ Anna. Não pude ficar, mas foi quando resolvi fazer a minha palestra neste local, cativada que fui por esta platéia tão simpática. Soube que se reúnem há vinte e seis anos! Não sei por onde andei nesse tempo todo...
Apresento-lhes minhas credenciais:
            Meu nome é Angela Ottoni de Menezes Delgado, morei durante nove meses na Bélgica, sou tradutora, publiquei uma trilogia pela Thesaurus Editora, sou avó de seis netos e como se isso fosse pouco, tenho a incumbência de ministrar-lhes uma palestra.  
E a inicio como os portugueses começam quase todas as suas falas:
Ora bom, vou lhes falar sobre a obra de um carioca que tinha “sotaque de mistério e de sonho”, vertida por mim para a língua francesa, para atrair os francófonos e por lutar contra a tendência do tempo, cada vez mais veloz, em que se decretou, e muitas pessoas acreditam nisso, que ontem já é passado; a antevéspera já caducou e é imemorial o que ocorreu no ano anterior. Justamente porque o tempo tem andado tão apressado, é que não está tão longe assim o ano da publicação de uma pequena edição, restrita aos familiares, de Ópera do Poeta e do Bárbaro, pelo autor, Pio Ottoni Júnior, em 1976, doente de câncer.. Afinal, vocês já estavam quase começando a se reunir...
 Pio Ottoni dissera que sua vida havia sido “um louco vulcão que nunca se atreveu a ter cratera."
 Talvez ela tenha sido este livro...
Ópera do Poeta e do Bárbaro é uma prosa poética dividida não em capítulos, mas, como  Os Lusíadas, em cantos.
            “Ao começarem a viagem através dos tempos, em companhia do Poeta e do Bárbaro, vocês participarão de seus diálogos, de suas confidências, de seus desentendimentos. Por vezes, testemunharão os conflitos entre dois velhos amigos que seguiram caminhos diferentes. Por vezes, vislumbrarão nos debates, as perplexidades que podem assaltar cada indivíduo nos seus momentos de íntima reflexão. Pio Benedicto Ottoni, homem de forte personalidade, autêntico, sereno como são os sábios, e profundamente humano, cedo se sentiu atraído pelas coisas do intelecto e do espírito. Mas, era também um esportista, um entusiasmado pela natureza, pela vida. E dedicou-se sempre a refletir sobre o mistério que cerca a natureza humana; descobriu a sinfonia da estética universal, que enxergava nas inúmeras manifestações com que a natureza nos brinda, nas maravilhas criadas pelo homem, e nos dramas e tragédias que compõem a existência humana. Seu espírito inquieto o fez subir o rio Amazonas em busca de sua nascente e a escalar montanhas, inclusive, o escarpado Dedo de Deus, nas cercanias do Rio de Janeiro. Nas Letras, leva-nos à gravidade das reflexões mais profundas, assim como às alturas dos vôos mais altos”, como bem se expressou um sobrinho seu.
Quando li este livro, achei a obra maravilhosa demais para continuar ignorada pelo mundo, pegando poeira na estante, e resolvi resgatá-la. Aprovada a tradução, melhor dizendo, versão, publiquei a nova edição, agora bilíngue, também pela Editora Thesaurus e com eles fui a Portugal e Espanha, onde lancei uma trilogia que havia publicado, mas, a “pièce de résistence” do “pacote” foi mesmo Ópera do Poeta e do Bárbaro, que, em Arouca (Portugal), faz agora, junto com a trilogia, parte do acervo da Biblioteca de sua Prefeitura (lá,Câmara municipal) e da Biblioteca Nacional de Lisboa, assim esperando que o obra do grande poeta e brasileiro Pio Ottoni se torne mais conhecida.
            Primeiramente, cogitei em dar a palestra para os alunos do curso de tradução na UnB, já que se trata de um livro bilíngue, mas lá me disseram que eu teria que me ater ao processo tradutório. Uma pena, dada a profundidade do livro, porém, eu daria um jeitinho de camuflar o conteúdo, lendo alguns trechos e perguntando se alguém teria traduzido de forma diferente, ao mesmo tempo abordaria o processo tradutório, aprenderia, talvez, com os alunos - e adoro aprender - como também divulgaria as belezas do livro. Mas, aqui, não preciso dessa camuflagem e posso abertamente ler vários trechos, sem que me fuzilem por isso. Esse foi outro motivo para eu estar aqui. Afinal, o conteúdo do livro é belíssimo e seria impossível ignorá-lo, apesar de que, sendo tradutora, óbvio que poderia falar sobre o processo tradutório. Difícil seria discorrer unicamente sobre ele.
Portanto, vamos ao processo tradutório:
Quando estava vertendo o livro, uma formiguinha teimava em passear pelos meus papéis. Eu a soprava, ela voltava; dava-lhe um peteleco, ela retornava; esmagava-a e lá vinha ela, ou ele, pois, se meu pai verdadeiramente não encarnou em mim hoje, naquele dia, meu tio, o autor do livro, certamente encarnou no inseto bisbilhoteiro, a inspecionar o meu trabalho.
            O duro foi quando me emocionei em um trecho, procurei-o para lhe mostrar minhas lágrimas e não o encontrei. Havia saído para dar uma voltinha...
            E mais: na digitação, um parágrafo teimava em ficar em caixa alta. Não conseguia de jeito nenhum diminuí-lo. Depois de várias tentativas, após descobrir um erro em suas linhas e corrigi-lo é que o parágrafo se normalizou. Foi de arrepiar.
            Continuando o processo tradutório, após o trecho em que o Poeta, cansado, senta sobre uma pedra e chora, lê-se (à página 38):
“Foi então
Que alguém
Me bateu às costas.
E disse: Levanta-te, vem conosco...”
 Fiquei na dúvida se não deixava a frase começar com um pronome ou se respeitava o original. Consultei um amigo revisor e sua opinião foi que eu não deixasse a frase começar por um pronome. Já um dos meus irmãos dizia que eu devia respeitar o original, mesmo porque quando ele lia um poema, seguia a cadência das frases e não a dos versos, ou seja, não fazia pausa no fim de cada verso, e, sim, ao final da frase, dois, três versos adiante, quando encontrava um ponto, para que a leitura fizesse sentido e ele captasse a mensagem do autor. E, continuava ele, “a regra de não começar a frase com o pronome se refere à frase. Por isso, acho que o “me bateu” não agride. Concordo que a eufonia deva prevalecer, se bem que isso também é um pouco subjetivo.” Finalizou.
Acatei sua opinião, mas, quando li a boneca, que é aquele “rascunho” do livro a ser publicado, dei de cara com um “me bateu-me”, quase enfartei. Por um triz o livro seria publicado com o respeito ao original e, ao mesmo tempo, à norma culta!
            Bem, alguns podem achar minha versão bastante literal. Defendo-me dizendo que a melhor maneira de se aprender uma língua, depois de viajar, é justamente a leitura, cercada de dicionários, de livros bilíngues, cujos tradutores não devaneiem muito e façam outras poesias inspiradas no que deviam traduzir. Sei que, visando enriquecer o texto, podendo, devemos optar por sinônimos graficamente diferentes do original, e me lembro das aulas do meu professor de tradução, que dizia que as traduções eram como as mulheres: quando belas, não eram fiéis e quando fiéis não eram belas.  Mas, continuo achando que se você quiser ensinar uma língua através de uma tradução, é bom não se afastar muito do que o escritor escreveu. Há tradutores que criam outra obra.
            Se bem que, às vezes é mister um certo afastamento, como demonstra o questionamento, infelizmente  tarde demais, de um dos meus nove irmãos, autor da orelha do livro, bastante arguto, mas sabendo pouco francês, que me questionou dizendo que eu havia traduzido “condecorado” por “decorado”. “Condecorado, em francês se diz “décoré”, e “décoré” tanto se refere a uma insígnia recebida quanto a um ambiente na Casa Cor. Mas, para evitar o quiproquó, eu deveria ter mudado o verbo “condecorar” para “marcar” (pág.15): assim, “condecorada por uma pegada”, em vez de “décorée d’une empreinte du pied”, ficaria:  “marquée d’une empreinte du pied”.
(Enxugando a palestra) No Canto Sexto, o Poeta um pouco desanimado de cooptar Bárbaro para o seu campo, desabafa:
“E eu me acabrunhei com uma ilusão tamanha,
Que obriguei minha língua a jurar a minha alma
Que jamais de novo tentaria converter um Bárbaro.
Para fugir ao suplício de apalpar a impotência das palavras,
Perante a onipotência de sentidos que as palavras podem ter.”

Ainda nesse Canto, o autor falando sobre o idioma da Poesia, diz que
“o poeta fala-o em verbos,
O músico canta-o em sons,
O pintor escreve-o em cores,
O cineasta o traduz em filmes,
O escultor conversa-o em formas,
O pirotécnico exprime-o em fogos,
 O arquiteto declama-o em estruturas.
Mas sempre balbuciando, soletrando,
Sempre num esforço rude de expressar o mistério,
De identificar em sons aquilo que nasceu sem som...”

Outro trecho que, acho, agradará a vocês é o da página 136:
           “E aconteceu
Que foram ambos à mesma festa:
Bárbaro analisa o ambiente – o poeta distribui amabilidades.
Bárbaro pesquisa alguém disponível – o poeta pesquisa alguma fada ali.
Bárbaro descobriu alguém aceitável - o poeta, um querubim em pessoa.
Bárbaro cumprimenta com técnica – o poeta promete um amor eterno.
Bárbaro serve champagne à dama – o poeta bebe à saúde da dama.
Bárbaro fez a conquista – o poeta está declamando versos.
Bárbaro oferece seu carro – o poeta nem moto tem.
Bárbaro dá o braço à dama – o poeta se embriagou e é expulso da festa.”

Por falar em carro, outro dia, estando no Rio, onde já não ando mais só de táxi, visto que nem ele é à prova de violências, peguei um ônibus com minha neta de sete anos e lhe perguntei:
- Clarinha, você já andou de ônibus?
- Já. No do aeroporto.
- O que leva os passageiros da sala de embarque ao avião não conta.
- Andei também no da Disney.
- Muito menos esse! Clara, você está andando em um ônibus de verdade, pela primeira vez, e, como nosso tio Pio contava, A Primeira Vez é o nome de uma fada,

“A fada do belo universal.
Os poetas vivem conversando com ela,
Pois tudo vêem como se fosse pela primeira vez.
Olham para o céu, como quando, no berço, olharam.
Contemplam o arranha-céu, como se fosse inventado hoje.
Vivem suas ruas de sempre, como um turista as passearia.
Por isso vibram, fremem, cantam.”

Vamos para a página 138:
“Mas não!
Não curem a alma doente dos estetas,
Pois suas moléstias são adubos sagrados,
Que dão seiva à floração das obras geniais.
É só nos miasmas deste solo que nascem obras eternas
E foi nesta jeira que Hamlet e a Divina Comédia nasceram.

Não curem os achaques dos sangues artistas,
Pois que a raça dos artistas não pode morrer.
Apesar de suas doenças, problemas e rebeldias,
De seus desatinos, de suas vidas repletas de erros,
A despeito de tudo, a raça dos poetas não pode morrer.
Para que a megera Rotina não mate o sentido do universo.
Para que tudo não seja engolido pelo marasmo dos prosaísmos banais.
Para que o tédio não gele os calores todos da existência.
Para que a morte não devore a vida.

Deixai os artistas doentes,
Deixai-os, eles sabem viver assim,
Pois que assim escreveram Vozes d'África,
Compuseram a Nona Sinfonia e esculpiram Moisés.
Deixai-os: os artistas serão sempre o que sempre foram,
Sofrendo muito, mas não há solução para seus problemas,
Pois há muitos milênios os poetas choram
E enquanto viverem chorarão.”

Outro trecho que tem agradado a muita gente é o da página 216:
                         “Não olhes com olhos gregos uma estátua asteca,
Pois nenhuma obra-prima resiste a um exame assim.
Não pesquises com alma vienense um coração chinês,
Pois lentes sem focalização só podem divisar absurdos.
Não cotejes indumentárias tupis com figurinos de Paris,
Pois Paris é bastante diferente das florestas tupis.
Não abras compêndios de Bach ao sabiá,
Pois o sabiá tem tantos admiradores quanto Bach,
Respeita as leis profundas de cada coisa,
Respeita, é tudo! E tudo entenderás!
                        E quando se pensa que a beleza no livro já foi mais do que suficiente, vem mais: a que destaquei na contracapa desta edição, por exemplo:
                        « Dias em que a vida
                        Dizia tantas coisas, que atordoava.
                        E o eu de cada um era uma editora de poemas impossíveis
            E o cérebro e o coração eram um furacão de partos
            E não havia parteiras para tantos partos
            E não havia berços para tantos filhos
            E não havia verbos para tantas idéias
            E não havia paz para tanto assombro.”
            Depois de o autor, no canto sétimo, ter louvado os que cantaram, no Canto seguinte, cujo título é “Mas quantos não puderam cantar”, ele exorta a todos que cantem ou louvem ou se expressem, e sai à procura de gênios. Anda pelas calçadas, tentando ouvir algum virtuoso tocando música, e acaba sentado em um banco da Avenida Rio Branco no Rio. Abre a Ilíada e adormece. Foi quando Homero se espreguiçou, e na folha do livro que ele não sabia se lia ou não lia, falou:
- Procuras Gênios? Vem comigo. Sei onde moram.
Chamaram Rafael e Wagner e partiram.
                                                                                                                                                      "E quando caí                                                                                                                                   em mim  estávamos                                                                                                                                     chegando à Avenida Rio Branco.                                                                                                                   Paramos e Homero avisou: Fiquemos aqui,                                                                                               Os Gênios passarão por aqui.                                                                                                                     Protestei:                                                                                                                                                       Não, procuremos as Academias,                                                                                                               Os Ateliês, os Conservatórios!                                                                                                               Ficar aqui na Avenida, como despreocupados,                                                                                         Como turistas, como apreciadores da moda,                                                                                              Como estudantes que não foram à aula?                                                                                                                                                                                                     Eles nada responderam:                                                                                                                                Olhavam o movimento.                                                                                                                               Era de tarde.                                                                                                                                                  Os carros avançavam, buzinavam ônibus
E as esquinas desaguavam magotes à calçada.
Desfilava o povo, passavam senhoras, passavam senhores,
De caras comuns, de maneiras comuns, de almas comuníssimas
E aquela cena, num passeio da Avenida, me era uma desilusão,
A mim, que vinha de tão longe, e acompanhado de três mortos,
Para descobertas sensacionais no mundo dos vivos.

Almas comuns?
Perguntou um deles irritado.
Não existem almas comuns, nunca existiram,
Cada alma é uma tragédia, cada coração um drama,
Cada momento uma esfinge, cada olhar um...

Mas não escutei o fim da frase,
Pois Wagner, de perto me chamava,
Dizendo que um rapaz de terno cinza passara
E que o seguíssemos, pois era um Gênio que passava.
Segurei Wagner: Não sejas louco, conheço o rapaz,
Ele não é compositor, nem sabe música,
É um pobre garçom de restaurante,
É apenas um homem a mais...

Wagner cravou-me os olhos acesos,
Em que ferviam acordes fulminantes
E gritou: Não existe homem a mais, não existe!
Que importa onde a vida o jogou, se sua alma é Gênio?
Que importa seu restaurante, se as almas nunca são garçons?

       Algum comentário ou pergunta?
Vou sortear agora três exemplares e quem não for contemplado com a Ópera do Poeta e do Bárbaro, poderá, a título de consolação, ganhar no sorteio da trilogia: Ephemeris, a idade do nunca (explico esse “nunca”. Estamos na faixa de idade em que nunca fomos tão esquecidas, nunca havíamos sentido essa dor antes, nunca mais teremos coragem de andar na “Montanha Russa” e por aí vai); Crônicas & Sabores, que como o título indica, contém receitas culinárias; e A segunda se fez quarta, que, devido à celeridade do tempo, hoje se chamaria A segunda se fez sexta. Um dos meus netos perguntou se comecei a escrevê-lo na segunda e o terminei na quarta. Mas elepoderia se intitular A segunda se fez quinta, já que é o dia em que uma das netas me informou ser o dia propício para a minha leitura.
- Vó, não é “óia de istudá”.
- E quando posso ler?
- Na quinta-feira...
 Arre, ficar sem respirar tanto tempo?!
Espero que tenham gostado da minha palestra inaugural. Pelo menos, eu não esquecerei esta fada. E agora me lembro de minha mãe elogiando uma sobrinha muito bonita e delicada: “... essa fada...” Percebendo o cacófato, tentou corrigir: “essa fadinha...”
Obrigada pela atenção e por colocarem à minha disposição o seu valioso tempo. Que Deus vos proteja e Feliz Natal a todos!









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