quarta-feira, 14 de março de 2012


Uma releitura da rabada

Humberto Werneck

        No primeiro momento, ela julgou ter ouvido “rabanada” – e estranhou que o marido tivesse posto tanta ênfase numa sugestão caindo de óbvia: cadê a novidade, se no nosso Natal sempre teve rabanada? A proposta não era variar um pouco, driblar a mesmice culinário-natalina? Eu disse rabada, corrigiu o marido, e, vendo a tempestade armar-se no rosto da mulher, tratou de esclarecer: sei que você não gosta de rabada, mas o que estou propondo é outra coisa, é uma... uma releitura da rabada, entende? E enveredou, animado, pela enumeração de ingredientes e procedimentos que haveriam de converter em algo deleitável o que para ela sempre foi inapelavelmente deletável.
        Quem mandou provocar, desafiando-o a dar uma chacoalhada no ramerrão de seus cardápios dezembrinos? Precisava o ano acabar em rabada? Já não bastava a pavorosa noite em que, num restaurante de Aruba, ele desafiou o chef a lhes servir “alguma coisa surpreendente”, coisa essa em que resultou ser uma sopa de iguana, sim, um daqueles lagartões asquerosos que rastejam seu look antediluviano pelo pedregal da ilha caribenha? Para não decepcionar o mestre-cuca, ela enrolou uma desculpa que, desossada, ficaria assim: gostava muito de sopa de iguana, mas não a ponto de tomá-la.
        Ao longo de sua vida conjugal, a coitada tem provado não poucas bizarrias, pois à mesa (mas também na cama, benza Deus!) o marido não se conforma com o trivial, mesmo o variado. Faz tempo que, em todos os terrenos, o companheiro baniu o feijão-com-arroz. E dizer que quando o conheceu ele mal dava conta de distinguir uma alface de uma couve... Ela não sabe se foram as más companhias do escritório – o fato é que em dado momento a esquisitice culinária se insinuou, para ficar, em sua vida de casada. Ciao, bife acebolado, adeus mandioca frita , nunca mais frango com, quiabo. Ela chegou a achar que tivesse batido nele um deslumbramento de nouveau riche gustativo. Mas durou pouco aquela fase em que todo o restaurante se voltava para contemplar, na mesa deles, um desses pratos que pegam fogo e para os quais o acompanhamento mais adequado seria um extintor de incêndio, tão indispensável quanto a ambulância que acompanha certas maioneses de casamento.
        Foi também por essa época que ele fez sua entrada na seara da enologia – a crer na mulher, depois de ter visto na televisão um seriado sobre vinhos no qual Renato Machado, lá pelas tantas, numa cave na região de Champagne, sorve algum daqueles néctares franceses e com ele dá uma bochechada tão judiciosa quanto inolvidável. Se fizer isso na minha presença eu saio por aquela porta, ameaçou ela. Talvez por isso o camarada não tenha progredido muito nos meandros da enologia. O máximo de que era capaz, ironizava a mulher, era informar muito sério, depois de uma discreta bochechada: é tinto!
        Ainda assim, houve uma noitada em que, num restaurante fino, ele derrubou, qual jogador de boliche, meia dúzia de garrafas, felizmente só em sentido figurado, a pretexto de que o conteúdo tinha tal e tal problema. Noitada que resultou ruinosa para as finanças conjugais, pois, sendo outro o parecer do sommelier, a casa o fez pagar pelos vinhos que mandou abrir e não consumiu.
        Com a comida, a coisa é mais séria. De quando em quando, sua imaginação culinária entra em surto. O homem adora cardápios opinativos, desses que anunciam “delicioso peixe levemente puxado em suave molho de...”. Quanto mais rebuscado, mais ele se põe a salivar. Recentemente, encantou-se com umas “Pérolas de Tapioca”. Em outro safári gastronômico, arrastou a mulher para um “Atum Unilateral”, sem saber que chegaria à mesa um prosaico peixe frito de um lado só. Na escolha da sobremesa, guiou-se pelo ouvido: Rolinhos de Gengibre e Rosas. Não estava grande coisa, admitiu- mas que nome! Que nome! A mulher tem como certo que um dia ainda vai ouvi-lo pedindo, como o sujeito afetado da velha piada, “um quarto de porco, mas com janelas para o mar.” Não sem antes passar, neste Natal, por uma rabada. Mas não qualquer uma: uma rabada relida.

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