quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O Massacre dos Quirópteros - Luci Afonso



— Mãe, olha o passarinho preto!
— Quieto, meu amor, já vai começar!
O auditório estava lotado. O diretor dava as boas-vindas ao público e
anunciava o primeiro item do programa.

O menino só conseguia prestar atenção no bicho esquisito que
surgira de repente do teto. Parecia um passarinho, mas tinha cara feia
e asas sem penas. Apareceram mais dois e começaram a sobrevoar o palco.

— Mãe, olha! – Desta vez, ela enxergou as pequenas criaturas,
mas não conseguiu identificá-las. — Fique quietinho, meu bem,
é parte do cenário, - mentiu. Estava concentrada no recital.

À medida que transcorria a apresentação, outros saíram do telhado e
passaram a voar também sobre a platéia. O salão estava muito quente
e as portas, fechadas. Algumas pessoas notaram a estranha movimentação,
até que um sussurro percorreu o recinto:
— Morcegos!





A partir daí, o público passou a observar os mamíferos voadores.
Seu número parecia aumentar a cada salva de palmas.
Um casal na última fileira tentou, discretamente, deixar o auditório,
mas a porta principal estava trancada — por medida de segurança,
o zelador só a abriria às 22 horas, quando terminasse o evento.
Ainda eram 20h30min. As portas laterais, por sua vez,
estavam obstruídas pelo equipamento de som.
O casal voltou ao seu lugar em silêncio.

A esta altura, todos acompanhavam o voo das criaturas,
agora mais numerosas. O diretor, ao perceber a apreensão geral,
 tentou relaxar os presentes:
— Estamos com sorte! Para os chineses, os morcegos trazem muita felicidade.
– Como ninguém ali era chinês, não funcionou.
Todos estavam visivelmente tensos,
e alguns já se levantavam para ir embora, sem saber que ainda não poderiam sair.

Para segurar a plateia, o diretor pulou alguns pontos do programa
e anunciou a última atração, o cantor Fred Jr.,
que executaria algumas músicas da Bossa Nova.
Em seguida, passariam ao coquetel.
As pessoas voltaram a se sentar, contrariadas.

Fred Jr., muito conhecido na cidade, sofrera recentemente de síndrome do pânico
e há muito tempo não se apresentava em público. Hoje seria sua volta ao palco.
Não conseguira decorar as letras e ensaiou o tempo todo nos bastidores,
sem perceber o que se passava lá fora. Surpreso,
foi chamado antes da hora combinada.

Entrou, decidido, e já começava a dedilhar o violão
quando notou que algo estava errado. As pessoas olhavam para o alto,
nervosas, e pareciam não notar a presença dele.
Olhou também e sentiu um arrepio. Tinha medo de tudo que voasse,
de mosquito a avião, mas tinha pavor irracional e incontrolável das criaturas
horripilantes que agora enchiam a sala.

Respirou fundo e tentou distrair o público e a si mesmo com uma brincadeira:
— Acho que estão promovendo o filme do Batman! – Ninguém riu. Ele começou a cantar, mas a voz saiu fraca e desafinada. Os morcegos se agitaram, e um deles fez voo rasante na cabeça de Fred Jr. Aterrorizado,
ele largou o microfone e saiu correndo para a porta.
Muitos o seguiram.

— Está trancada! – avisou o casal que tentara escapar.
As mulheres se desesperaram, as crianças começaram a gritar.
Os morcegos se inquietaram ainda mais.
Os homens fingiram controlar o medo.

Um ambientalista argentino subiu numa cadeira
e gritou em portunhol:
— Calma, pessoal, ellos son pacíficos!

Um senhor careca, de óculos minúsculos, pediu a palavra.
Além de apreciador de poesia, era biólogo e
doutor em quirópteros (nome científico dos morcegos).
Para tranquilizar os presentes, explicou que 90% da ordem Chiroptera
eram sementívoros e apenas 10%, hematófagos, ou seja,
era mínima a probabilidade de alguém ali ser mordido.
Além disso, argumentou, os morcegos vampiros, ou Desmodus rotundus,
só atacavam em zonas rurais para se alimentar ou se defender — 
como, aliás, havia acontecido, há poucos dias, num condomínio do Distrito Federal.

A explicação teve efeito oposto: os homens se juntaram,
pegaram a mesa de madeira maciça e
tentaram derrubar a porta.
Aumentaram os gritos e o choro.
O frenesi se instalou entre bichos e humanos.
Os celulares foram acionados para chamar a Polícia, o Corpo de Bombeiros
e o IBAMA.

O auditório se transformou em campo de batalha.
O ambientalista, contrariando seus princípios,
abateu com sua pasta alguns morcegos, para defender as damas em perigo.
Uma poetisa que sempre se apresentava com um cachecol,
aproveitou-o para enforcar uns três.
As mulheres mais valentes usavam seus chales para capturar
e matar os nojentos animais. Os homens recorriam aos paletós.
O menino que os vira primeiro pegou um filhotinho e guardou-o para dissecação,
um de seus hobbies.






Fred Jr. se escondeu atrás do palco,
mas um morcego havia chegado ali antes
e estava à espreita — um Desmodus rotundus, o único na sala.
O cantor, desesperado ao ver tão próxima a repugnante criatura,
tentou atingi-la com o violão, acertando, sem querer, a cabeça do diretor,
escondido no mesmo local. Ambos desmaiaram, um, pelo golpe,
outro, pelo pavor, e o vampiro pôde se alimentar à vontade.

Todos os quirópteros foram abatidos, exceto o Desmodus,
que depois de satisfeito se refugiou novamente no telhado,
à espera de nova vítima.
A porta foi arrombada, e descobriu-se o zelador
em sono profundo no subsolo do prédio. A Polícia e os Bombeiros chegaram
e atenderam prontamente aos dois homens inconscientes,
que tinham dois grandes furos no pescoço.
Eles despertaram, desmaiaram de novo, ao saber que haviam sido mordidos,
e receberam dose preventiva de vacina anti-rábica.
O IBAMA não foi encontrado.

A sindicância instaurada pelos proprietários do auditório
não concluiu de quem foi a culpa pelo incidente.
Muitos a atribuíram ao zelador; outros, a Fred Jr.,
enquanto os estudiosos apontavam causas naturais,
como a baixa umidade e o período de acasalamento,
o que tornaria os quirópteros mais irritadiços.

Não se chegou a laudo conclusivo, mas o evento
ocupou o noticiário nacional por várias semanas
e ficou registrado no imaginário brasiliense como
o mais aterrorizante sarau literário-musical
realizado na Capital da República.

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