domingo, 1 de junho de 2014

Me conta uma história - Anna Maria Assis Ribeiro

Ela fecha a porta de casa atrás de si e pensa: agora vai passar! A entrada em casa sempre foi o alívio para todos os males. Mas o porto seguro desta vez não está funcionando. Sabe-se lá por que. Coisa esquisita! Será que finalmente a velhice ataca? Não o ficar velha: isto ela o é, desde muito. Mas não haviam aparecido até agora os efeitos desagradáveis da coisa. Mas hoje aquela sensação de tristeza e desamparo se instalou desde cedo.
Depressão senil. Sempre ouviu falar disto. É... vai ver atacou. Quando, como um autômato, foi ao caixa eletrônico tirar dinheiro nem olhou as frutas na Cobal. Tão bonitas sempre, hoje murchas; e as verduras nem verdejavam. Vai ver é isto: na depressão as cores somem substituídas por um cinza feio e sem graça. Fica ali parada sem achar o destino certo dentro de casa. Falta alguma coisa, pensa. É isto! Falta! O que é que falta ela não sabe. Mas a sensação de não estar lá “a coisa que falta”, é verdadeira, é sólida! O que poderá ser? Se falta deve ter um buraco, um vazio em algum lugar. Seus olhos percorrem cada canto, cada objeto.
Ao passar pela foto do pai se detém e se assusta. Não é uma “coisa” que falta. É o pai. Ele mesmo. Pessoa. Mas isto não tem sentido. A falta dele existe sempre e já não dói tanto, faz tempo. Ao contrário, é bom lembrar. Mas é ele. Ela tem certeza. É ele que falta hoje. Deixa-se ficar ali, agora no sofá, olhando a foto. Que estranho! No prédio ao lado uma criança chora... ... e o Pai sorri. Aninha-se no colo dele e pede:
- Pai, conta uma história. Uma história daquelas que muda tudo.
- Muda? O que é que você quer mudar?
- Eu. Muda eu.
- Pra quê?
- Tô triste.
- Ah!
- Conta!
- Tristeza não é ruim. Sabe?
- É, sim. Muito. A história, pai. A história.
A história vem, perfumada pela loção de barba que conduz à calma e ao peso das pálpebras que não têm mais medo de fechar. A história que muda tudo invade o sono. Alça voo nos braços do Pai e faz um pouso suave nos lençóis de linho. Já está dormindo. Mas mesmo assim sente o beijo e o ajeitar das cobertas.
Percebe quando ele sai do quarto ao mesmo tempo permanecendo ao lado da cama na mágica de sua sempre onipresença. Ela ainda murmura: Pai... no prédio ao lado a criança parou de chorar. Da foto o Pai ainda sorri observando a samambaia. É para lá também que vai o olhar dela. Meu Deus! Como está verde! Tão verde! E a volta da cor, conduz o sono.

4 comentários:

  1. Nunca superei a falta do meu pai. Talvez porque, quando partiu, não pude estar junto a ele ... estava em África, em Angola!

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    1. Pois é, Carlos Jorge, essas dores são irremediáveis. Mas, logo, logo, talvez estaremos juntos de nossos entes queridos que se foram...
      Obrigada pela visita!

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  2. Obrigada, Ângela, pela publicação de minha crônica em seu blog. Até hoje, aos 84 anos a alta de Papai é enorme.

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  3. Eu é que agradeço, Anna, por você ter escrito uma página tão bela.
    A falta dos pais é algo tão triste, não é? Mas isso só indica o quanto os amamos.

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