sábado, 31 de dezembro de 2016

Acordemos - Anna Maria Assis Ribeiro


Dizia-se “merci”. Na verdade ela ainda diz “merci”. Escapole no sem querer, revelando o que nunca lhe afligiu revelar: está velha e só os velhos e os franceses, é claro, dizem assim. Sua mãe dizia chauffeur, ao invés de motorista; restaurant ao invés de restaurante; e Leblon, pronunciado por ela podia ser um bairro de Paris. No dia da queda da França ela, uma menina, foi levada à frente do Teatro Municipal para cantar a Marselhesa. Todos choravam e ela também chorou, chorou muito, por imitação – é verdade – mas, sobretudo, porque era aniversário de uma amiga e ela não iria.
Toda esta lembrança lhe veio ao acordar no primeiro dia do ano: nunca tinha se dado conta! Reveillon, além da ceia do dia 31 de dezembro, significa Acordemos! Para que? Para um novo ano, para novos desafios, para novas empreitadas e sabe ela mais o que. Fazem-se planos, promessas, tomam-se decisões seriíssimas como perder 10 quilos, deixar de fumar, procurar o amor perdido caindo de joelhos, pedindo desculpas, implorando por uma nova chance. O engraçado é que se está, quase sempre, em meio a muita gente e as decisões tomadas são sempre individuais. Beija-se a pessoa que está ao lado, marido, namorado ou, hoje em dia, um ficante, pensando-se: este ano “eu”....
No entanto acordar é necessário, todos os dias. Acordar mesmo. Literalmente. Tirar os pés da cama e andar em frente. Ficar parada é que não dá pé. Isto não parece ser um grande problema mas... o problema não é o “andar”. É o “em frente”, significando um rumo certo para chegar a algum lugar. Agora – ela pensa - danou-se! O “certo” pesa pra valer, tornando o problema imenso. O que é certo? Nem está pensando no “certo” com um viés moral. Não! É o certo para cada um. Aquela opção que vai nos levar adiante. A gente passa a vida escolhendo entre opções, né? E nem sempre as certas. Fica-se adulto no momento em que se percebe que ao fazê-las – as opções – ganha-se alguma coisa e perde-se outra. E fica-se velho, numa boa, quando não se culpa o mundo, a má sorte, alguém ou “alguéns”, pelo que deu errado. Fácil? Quem falou?! Não é, não. Nem um pouco. Mas faz parte do “reveillon”. Está nele embutido com todos os “fff e rrr”, embora a palavra não os tenha.
Ao pensar “fica-se velho”, surpreende-se: não “acordou” para isto antes que ocorresse! É claro que pensava, nos idos da mocidade – e põe idos nisto - em aposentadoria, por exemplo. Discutia valores e fazia projeções (bem mais otimistas do que se revelou a realidade), mas, nestas projeções, estranhamente, nunca se viu velha. E um dia - pareceu-lhe que repentinamente - ficou! E deu uma baita sorte: sem que houvesse planejado, seus maiores prazeres eram permitidos para a mais avançada idade desde que e enquanto a cabeça ajudasse: ler, ouvir música e conversar. Para o desempenho deste último verbo as substantivas leitura e música irão garantir assuntos no momento em que dificuldades de locomoção não mais permitirem colecioná-los no mundo dos seres circulantes.
Vai daí vem a certeza: no “reveillon” de todos os dias, a grande “trouvaille” (pensa em francês, imitando a mãe, mania um tanto cabotina que lhe acomete ultimamente com uma certa freqüência) é acordar para o treinamento de acumular de prazeres, garantindo uma velhice gostosa, para que um dia, sabe-se lá quando e pedindo licença ao poeta, possa “chegar humana ao mar da morte”.

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