sexta-feira, 17 de agosto de 2018

É conversando que a gente se desentende - Rubem Alves


    É de madrugada, naquele intervalo confuso entre o sono e o estar acordado,
que os deuses me fazem suas revelações. Acontece, então, que as coisas mais
banais aparecem à minha frente pelo avesso, o que muito me surpreende porque,
pelo avesso, as coisas são o oposto do que parecem ser pelo direito.
    Hoje, por exemplo, os deuses revelaram-me que a separação vem da
compreensão. Para se ficar junto é melhor não entender. Isso é o oposto do que
pensam os casais que vivem brigando. Acham que suas brigas devem-se ao fato
de não se entenderem e pedem então socorro aos terapeutas, quem sabe a
terapia fará com que se entendam melhor, o que é fato, mas a conclusão não
segue a premissa. Não é certo que, depois de se entenderem melhor, vão ficar
juntos.
    Frequentemente é no exato momento da compreensão que a separação
torna-se inevitável. Nada garante que o compreendido seja gostado. Prova disso
é o que aconteceu com o meu sogro, que odiava miolo. Convidado para jantar,
deliciou-se, repetiu e fartou-se com uma maravilhosa couve-flor empanada.
Ao final do banquete, cumprimentou a anfitriã pelo prato divino. Mas ela logo
explicou: “Não é couve-flor, é miolo empanado...” E ele entendeu, entendimento
que o catapultou na direção do banheiro mais próximo, onde o jantar foi vomitado.
É assim. Às vezes, quando a gente não entende, come e gosta. Quando entende, desgosta e vomita.
    Afirmação assim avessa, tão contrária ao senso comum, exige uma explicação
e é o que passo a fazer.
    Abri, no meu micro, um arquivo com o nome de “Encíclicas”. Coloco ali o texto
das encíclicas que vou promulgar quando for eleito Papa. Como se sabe, o papa
Leão XIII, em 1891, promulgou a encíclica De Rerum Novarum que quer dizer
“Sobre as coisas novas”. De repente, a Igreja, que até então acreditava que tudo
o que merece ser conhecido estava guardado no seu baú milenar de doutrinas,
percebeu, com um susto, que coisas novas, interessantíssimas, aconteciam no
mundo.
    E o bom Papa apressou-se a passar essa informação adiante. Esse foi o início
de um enorme esforço de modernização da Igreja que não deu certo, pois não se
coloca remendo de pano novo em pano velho. O pano velho começou a rasgar...
Desejoso de reparar o mal que a encíclica De Rerum Novarum causou, escrevi
a sua antítese, a encíclica De Rerum Vetustarum, ou seja, “Sobre as coisas velhas”.
    E a sua substância é extraordinariamente simples. Reza a encíclica que, do
momento de sua publicação para frente, tudo, absolutamente tudo o que ocorrer
na Igreja, as fórmulas litúrgicas, as bênçãos sacerdotais, batizados, crismas,
casamentos, funerais, hinos, leituras dos Textos Sagrados, sermões, encíclicas,
e mesmo as falas do padre ao confessionário, tudo deverá ser feito em latim.
Ah! Como é belo o latim! Soa como uma “liturgia de cristal”, música pura
    Se os padres falassem em latim, a gente não entenderia nada e amaria tudo.
A linguagem clara e distinta mata a fantasia. Dentro do que ninguém entende
cabe tudo: miolo vira couve-flor e o corpo e a cabeça aprovam.
     A compreensão sempre dá briga. Imagino, mesmo, que foi por isso que
Deus confundiu as línguas da humanidade na construção da Torre de Babel.
As pessoas falavam a mesma língua. Falando, entendiam-se. Entendendo-se,
compreendiam as opiniões uns dos outros. Compreendendo as opiniões uns
dos outros não gostavam delas. E daí passavam às vias de fato.
Deus Todo-Poderoso compreendeu, então, que a única forma de evitar pancadaria
era fazer com que eles não se entendessem.
   Fica o conselho aos casais que estão brigando. Cuidado com a conversa.
Da conversa pode nascer a compreensão, da compreensão pode surgir a separação.
A compreensão pode ser tão fatal para o casamento quanto ela foi para o jantar do meu sogro.
É conversando que a gente se desentende.
  Previnam-se contra a terapia de casal. Ela pode produzir compreensões insuportáveis.
Adotem a sabedoria milenar da Igreja: adotem o latim como língua da casa. E
dediquem-se à música, dando preferência aos instrumentos de sopro, pois
enquanto se sopra não se fala e, assim, a compreensão e a separação são evitadas.

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