quinta-feira, 3 de novembro de 2011

XXXIV

                                                          
         
                  - Cada um lave seu prato!

                O adolescente Miguel logo oferece um real para quem quiser lavar o dele, o que é prontamente aceito pelos menores. Não sei o que pensar disso. Essa oferta de emprego tem se repetido nos dias em que a faxineira não vem. No momento, não estou muito bem e não interfiro, e ele sai correndo.
                - Você só anda correndo pela casa!
                - Se posso correr, por que vou andar?

                Meu irmão que sofre com a falta de tempo é que gostará de saber disso. Só não sei se, do alto de seus quase setenta anos, vai aderir à prática.
                Enquanto converso com vocês, minha neta Clara, correndo pela casa (outra atleta), me pede que cronometre a sua corrida.
                Um pouco irritada por me desconcentrar, respondo que não tenho cronômetro, mas, ela em seguida traz o relógio do irmão João. Não tenho como me safar e fico pensando nesse neto, que, crescendo e deixando de ser tão explosivo, está encantador e estamos nos dando todos os abraços atrasados...
                Clara fala sem parar, mas, ontem me ajudou quando me propus a ver “Meia noite em Paris”. Os controles remotos de aparelhos eletrônicos me irritam profundamente.
                À espera do resultado de um exame, resolvo aproveitar a vida, indo pegar sol e mergulhar na piscina. Há anos que não pulo de cabeça. Reúno coragem, e o resultado foi uma barrigada e ainda outra, perfeitas e idênticas. A sensação da cabeça imersa, porém, é deliciosa.
                Por falar nela, ontem, fazendo uma faxina em meu armário, achei uma folha preciosa que atesta o processo de envelhecimento dos meus pais.

                - Como o Eurípides só é mais velho do que eu sete anos, se ele é meu pai -perguntou-me minha mãe, talvez em seu primeiro minuto de confusão mental.

                Hospedada no apartamento deles, ocupei o escritório daquele que minha mãe pensava ser seu pai, e onde uma cama havia sido instalada, na qual ele rapidamente se sentou. Como papai foi sempre foi forte, custei a levantá-lo. Um minuto depois, ele se senta novamente. Embora me sentindo uma intrusa e um pouco má, coloquei minha mala sobre a cama. Mas, não é que ele tirou a mala pesada e já ia se deitando?

                - Eurípides, vamos dormir. Este é o quarto da Angela.
                - Ah, é? Pensava que era o meu escritório! 

                Onze horas da noite: Eu dormia em “meu” quarto/escritório, quando papai entra com um terno na mão. Acende a luz dizendo que ia gravar na rádio. Foi um Deus nos acuda. Tive que sumir com a chave dele e ministrar meio Lexotan para os dois. Três horas depois, mamãe dormia profundamente, apesar das tentativas dele para acordá-la: – Ela está mais viva do que morta,  foi o seu comentário.
                Pedi-lhe que tomasse a outra metade do comprimido e ele respondeu que falaria com Maria, pois ela tinha mais senso da conveniência das coisas...

                No dia seguinte, querendo parabenizar com um telegrama sua mãe, falecida havia muitos anos, ele me perguntou por onde ela andava e quanto tempo eu ficaria em Brasília. Mamãe respondeu por mim:
                - Ela mora em Brasília. É casada com o Afonso.
                - Ah, não sabia. Ela não participou...
              Esqueceu-se de que me havia conduzido ao altar.
                Mais tarde, saiu de casa sem que ninguém visse. Mamãe foi atrás e, à procura deles, meu irmão Jorge, que encontrou na outra calçada papai já voltando, e mamãe indo na direção e calçada opostas. No final, nem ele nem ela aguentavam mais andar e Jorge pegou um táxi para uma corrida da rua General Glicério até à rua General Glicério, onde os deixou são e salvos.

                Isso foi antes de entrarem em nossas vidas as cuidadoras e do trabalho incansável do cuidador-mor, mano Vianney. 



    

                                            

2 comentários:

  1. Angela que delícia...

    e tem também os lindos atos de caridade que o vovô passou a fazer. Depois de dar tantos dos seus livros, comprava todas as novidades da papelaria em massa, e assim presenteava a todos os queridos com pastas, ou tesouras, ou réguas...

    o ordenado também já ficou para trás mais de uma vez, mas vieram devolver. Taxista de alma iluminada...

    Já nessas últimas vezes de oratória, suprimi (numa digitalização) de seu texto: "meu amigo Salazar" e depois o acompanhei à rádio. Ele sabia de cor! Apenas mirou a falta no papel, me olhou e continuou na sua versão original.

    Vejo que você assimilou bem a lição da vovó de anotar no caderninho...

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  2. Laurinha,
    Se papai soubesse do que era capaz o estadista, o riscaria de suas "amizades".
    Obrigada pela visita!

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