segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Homo Simius - Luci Afonso

Chego ao restaurante natural um pouco antes do meio-dia. Está vazio e há várias mesas desocupadas. Carrego quatro livros para devolver à Biblioteca e uma pasta cheia de papéis. Escolho um lugar no canto e os deixo lá antes de pegar a fila.

À minha frente, um grupo conversa com entusiasmo, ignorando a recomendação de não falar próximo aos alimentos. Cinco amigos de terno escuro debatem gestão de carreira. Absenteísmo, rotatividade e síndrome da exaustão flutuam cheios de germes sobre a comida.
Depois de pesar o prato, me dirijo à cadeira que escolhi. Para meu espanto, meus objetos foram trocados de mesa. O lugar foi ocupado por um dos cinco amigos, que está de costas para mim. Espero o pedido de licença ou desculpa:
— A senhora se importa em mudar de lugar? Queremos ficar juntos.
Ou:
— Desculpe-me, tomei a liberdade de mudar suas coisas para me sentar junto de meus amigos. A senhora se incomoda? - ao que, provavelmente, eu responderia: — Não, tudo bem. Bom apetite! - E tudo estaria em paz.

O homem não se vira. Os outros parecem ignorar o ocorrido. Penso em lhe dirigir a palavra, mas tenho receio de uma grosseria maior que estrague meu dia, como o gesto indelicado tirou minha fome. Resolvo me calar e engolir o bobó de palmito.

O assunto agora é gestão de pessoas. MBAs e doutorados pairam no ambiente, abafam o som dos talheres e silenciam os temas corriqueiros discutidos nas outras mesas.

Termina o almoço deles — o meu nem começou. Tenho a vaga esperança de ainda testemunhar um ato de arrependimento. Levanto-me e os sigo até a fila do caixa. Carrego os livros e a pasta na altura do peito para mostrar que eram meus. Nenhuma reação. Os homens pagam a conta e compram bananinhas de sobremesa.

Não desisto. Caminho atrás do grupo em direção à esteira rolante. Estão em silêncio, empanturrados, talvez. Dou-lhes mais uma chance: passo por eles bem devagar, olhando cada um nos olhos, a pasta e os livros bem expostos. Dois examinam meu corpo; um palita os dentes; outro me olha, mas não me vê. O principal suspeito observa a pasta, os livros, me encara e diz:
— Com licença...
— Sim? - pergunto, redimida.
— A senhora está atrapalhando a passagem -, e acelera a marcha, seguido pelos colegas.
— Pior que atrapalhar a passagem é mexer em objetos alheios - digo em pensamento, enquanto balbucio um pedido de desculpas que não ouvem, pois já vão longe.

Desnorteada pelos recentes acontecimentos, encosto-me na parede, respiro fundo e me lembro de que é hora do dentista. A chuva engrossou. Saio correndo até o carro e, de longe, avisto um bicho morto pendurado na janela do motorista. É o retrovisor, arrancado com fúria, mas ainda preso aos fios elétricos. Cancelo todos os compromissos e vou me refugiar em casa: o Homo Simius está à solta.

4 comentários:

  1. Muito bom e triste. Um episódio que retrata o "hoje" que nos assola a todos. Mas o mais triste é que não podemos nos refugiar em casa para sempre. E mesmo em casa a TV e o jornal nos levarão a refeições de mau gosto e retrovisores arrancados.

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  2. Passei aqui pra visitar o Homo Simius e verifico o quanto ele continua atual! Obrigada, Angela, por divulgar nossos textos.

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  3. De nada, querida. Gosto de divulgar o que acho ser disso merecedor, embora não possa divulgar tudo o que gosto. Mas o Homo está mesmo cada vez mais simius. Já não aguento assistir noticiários e no Jornal temos que pinçar e selecionar muito bem o que lemos, porque, sinceramente, a violência passou dos limites.

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