quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Adágio em ex (Autor convidado: Carlos Moraes)

                                              

                Tem dias em que acordo ex, me escreveu o Vitorino uma vez. Ex-magro, ex-ufólogo, ex-esotérico, ex-soldado, ex-tabagista, ex-marido, ex-comunista, ex-partidário, ex-atleta,ex-funcionário, ex-presidiário, ex-náufrago de um modo geral.
                Nem por isso vou achar que não dei certo, continuou.
                Pensando bem, ainda tenho a doçura das tardes, a ilusão das manhãs, o humor dos amigos, certa consciência, certa coerência e Bach, e Isa, e o Borges, o Veríssimo, o Corinthians.
E ainda posso, se quiser, ser generoso e misericordioso.
                Meu Deus, concluiu. O que ainda se pode fazer com o que sobra!
                Essas foram as últimas tiradas que recebi dele, via fax, já que logo depois o Vitorino decidiu se isolar num sítio em Minas para escrever um livro de contra-ajuda sobre pessoas cujas paixões não coincidem com o mercado. Parece que se inspirou numa tia que por cinquenta anos foi, apaixonadamente, professora primária e morreu ganhando menos que uma digitadora, dando aulas de reforço pra molecada do bairro em troca de baldes d’água para sua horta. O título já era bem ele: Como ser feliz sem dar certo. Mas como ele vive começando livros que jamais termina, insisti em que deixasse comigo sua outra valiosa coletânea de histórias sobre pessoas que através de pequenas bobagens chegaram a grandes iluminações. Garanti que, na sua ausência, botaria tudo em ordem, com a máxima clareza possível, já que nosso grande mestre pesquisa muito, pensa brilhante, mas escreve confuso. Para minha surpresa, Vitorino me confiou o material sem maiores discussões, recomendando apenas certo cuidado caso fosse publicar, já que, segundo ele, a humanidade ainda não está madura para a salvação pela bobagem.
                No dia do embarque, fui o único a acompanhá-lo até a rodoviária. Fazia um calor danado e o mundo todo como se desmilinguia à nossa volta. Vitorino me parecia estranhamente sereno. Na hora da partida, pela janela do ônibus, ainda lhe perguntei, meio sério, meio brincando:
                - Mestre, mestre, o que é a vida?
                - Um carpete persa – ele respondeu, sério.
                - Quer dizer, uma coisa chã que pode ter lá as suas finezas? Ainda tentei explicar, mas ele apenas balançou a cabeça como quem diz: descubra.
                Luis Vitorino Gamba Martins foi dado como desaparecido ainda em princípios de 96 na região mineira conhecida como Chapada Diamantina. Antes recebi dele, sem maiores explicações, alguns esboços do seu Como ser feliz sem dar certo, que terminei, na mixagem final, fundindo com suas teses sobre salvação pela bobagem. Depois de quase dois anos ordenando seus causos sobre acaso e salvação, felicidade e fracasso, nem mesmo eu sabia determinar com clareza o que era fato acontecido com outros ou puro Vitorino disfarçado. Deu no que deu, essa polifonia danada, um autêntico carpete persa, tão, aliás, ao gosto do mestre.

0 comentários:

Postar um comentário

Seu comentário aguardará moderação