quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Rio Nilo secou

(Presente para o aniversariante de hoje...)

Alexandra Rodrigues

         O rio Nilo secou! Amanhã de manhã você lerá essa manchete no jornal da sua cidade. Se você morar em outros Egitos, poderá ensaiar a tradução livremente na língua do seu faraó: o rio Amazonas secou, ou o rio São  Francisco, o Guaíba ou o Parnaíba. Não importa em que leito o seu rio corra: secou o rio da sua aldeia, o rio dos desejos da sua adolescência e juventude, o rio pelo qual navegou livremente a sua imaginação; secou o rio que banhou as margens dos seus sonhos e que encharcou de esperança a navegabilidade da sua vida; um rio situado em algum território impreciso entre o passado e o  futuro, pelo qual você desceria um dia em viagem marcada no mapa do seu corpo e combinada com a sua melhor amiga.

         Imagine a amiga de uma vida inteira, aquela que você conheceu aos 13 anos no colégio, a quem confiou seus medos e segredos, aquela que se tornou mais que sua irmã, de quem você se separou com inaudível dor quando foi morar em outras terras e o destino as arremessou contra paisagens, línguas e costumes diferentes, bifurcando irremediavelmente suas vidas.

         Sabe que o reencontro marcado, na luz do amanhã, era uma fantástica viagem pelo rio Nilo para visitar as gigantescas estátuas dos faraós, os templos colossais dos deuses e as misteriosas pirâmides de Gisé? Que mais de quatro mil anos de História esperaram por vocês durante quase quarenta anos de uma única existência? Sabe que as pirâmides de Quéops, Quéfren e Miquerinos resistiram à erosão, à espera de duas mulheres que um dia prometeram visitá-las juntas? Que Osíris zelou, lá da eternidade, pela navegabilidade dos seus sonhos e Tutankamon, em seu imponente trono de ouro maciço, ordenou que o rio que deu vida ao Egito permanecesse encharcado de leito por mais de quatro mil anos, aguardando você e sua melhor amiga? Sabe quando a materialidade da infância, da adolescência, da juventude vai ficando cada vez mais imperceptível no fio do tempo e um sonho sonhado junto é o elo que une o seu passado ao seu futuro? Sabe quando o tempo vai fluindo como uma correnteza que banha mil vidas e se passam dez, vinte, trinta anos, quase quarenta e você continua brincando de sonhar com um Nilo de águas límpidas que nunca envelhecerão, um rio que estará eternamente à sua espera, aguardando essa viagem que você e a sua amiga farão em breve, dali  a algum tempo, um dia, quem sabe?

        Imagine agora que, em um efusivo telefonema de parabéns a você que atravessa um oceano e dois continentes, a velha amiga lhe revela inesperadamente que acabou de chegar do Egito. E delicadamente se desculpa por ter traído o combinado de uma vida. Não era para ter ido ao Egito, mas enfim, a Grécia estava ardendo e na última hora, bem na véspera de partir de férias, a agência de viagens conseguiu duas passagens para o Egito. Sabe quando,  represando o inesperado choro adolescente que tenta conter no meio do telefonema, quase rompendo os diques da barragem de Assuã, você pergunta, na tentativa de dar um tom de graça à desgraça que acaba de se abater sobre o seu coração, mas já sabendo a resposta, E com quem você me traiu? Claro que a viagem da amiga foi com o marido dela, com quem você mantém as melhores relações, mas aquela viagem não era para maridos, era para ser a viagem de duas amigas de uma vida!

         Quando a passagem tem já quase meio século é difícil cancelar o que sobrou de um sonho, talvez o único que você mantém desde os treze anos. Então você ainda tinha sonhos pueris, dá-se conta no meio do telefonema. Podemos ir a Machu Pichu, quem sabe ao arquipélago dos Açores, propõe a amiga, num gesto inutilmente gentil. Mas não se fazem pirâmides nos Nilos dessas terras! Você compreende a amiga no mais íntimo do seu ser, porém a redoma de vidro que protege as relíquias de Tutankamon está agora vazia, irremediavelmente vazia, no museu do Cairo da sua vida. Não se protege um tesouro faraônico com vidro, você descobre, quando a câmara do Tutankamon foi já violada e o escriba que acolhia as ordens do faraó se recusa a escrever, sobre o papiro da vida, mensagens do futuro.

         Compreende agora a manchete do jornal de amanhã? As águas do meu Nilo secaram. E as do seu rio?





        







 



        

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Extrato de "Se um viajante numa noite de inverno" (autor convidado: Italo Calvino)


…O escritor produtivo observa o escritor atormentado enquanto este se acomoda à escrivaninha, roi as unhas, tem comichões, arranca uma folha, levanta-se para ir à cozinha fazer café, depois chá preto, depois chá de camomila, lê um poema de Holderlin (embora esteja claro que Holderlin não tem nada a ver com o que ele está escrevendo), torna a copiar uma página já escrita e depois a risca linha por linha, telefona para a lavandeira (mesmo já sabendo que as calças azuis não ficariam prontas antes de quinta-feira), toma algumas notas que não serão úteis agora, talvez só mais tarde, vai consultar a enciclopédia no verbete “Tasmânia” (sendo óbvio que naquilo que escreve não há nenhuma alusão à Tasmânia), rasga duas folhas, põe na vitrola um disco de Ravel. O escritor produtivo jamais gostou das obras do escritor atormentado, quando as lê, sempre lhe parece estar prestes a chegar ao ponto decisivo, mas depois esse ponto lhe escapa, e sobra apenas uma sensação de mal-estar. Mas, no momento em que o vê escrever, sente que esse homem se debate com algo de obscuro, um emaranhado, um caminho a ser aberto que ele não sabe aonde conduz; às vezes, parece-lhe que o vê caminhar sobre uma corda suspensa no vazio, e é tomado por um sentimento de admiração. Não só admiração: de inveja também, porque sente que seu trabalho é limitado e  superficial se comparado ao que o escritor atormentado está procurando.

     No terraço de um chalé, no fundo de um vale, uma jovem lê um livro enquanto toma sol. Os dois escritores a observam através da luneta. “Como está absorta, com o fôlego suspenso! Com que gesto febril vira as páginas!”, pensa o escritor atormentado. “Certamente lê um romance de grande efeito, como aqueles do escritor produtivo!” “Como está absorta, quase transfigurada pela meditação, como se assistisse à revelação de um mistério!”, pensa o escritor produtivo. “Certamente lê um livro repleto de significados ocultos, como aqueles do escritor atormentado!”

     O maior desejo do escritor atormentado seria ser lido como lê aquela jovem mulher; põe-se a escrever um romance como o que pensa que o escritor produtivo escreveria. Entretanto, o maior desejo do escritor produtivo seria ser lido como lê aquela mulher; põe-se a escrever um romance como o que pensa que o escritor atormentado escreveria.

     Os dois escritores, primeiro um e depois o outro, abordam a jovem, e ambos lhe dizem que desejam que ela leia os romances que acabaram de escrever.

     A mulher recebe os dois manuscritos. Alguns dias depois ela convida os autores a irem a sua casa, juntos, para grande surpresa deles.

     - Mas que brincadeira é esta? – diz ela. – Os senhores me deram duas cópias do mesmo romance!

     Ou então:

     Uma rajada de vento mistura as páginas dos dois manuscritos. A leitora tenta reorganizá-los. Daí resulta um único e belíssimo romance, que os críticos não sabem a quem atribuir. É o romance que ambos os escritores sempre sonharam escrever...”

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Adágio em ex (Autor convidado: Carlos Moraes)

                                              

                Tem dias em que acordo ex, me escreveu o Vitorino uma vez. Ex-magro, ex-ufólogo, ex-esotérico, ex-soldado, ex-tabagista, ex-marido, ex-comunista, ex-partidário, ex-atleta,ex-funcionário, ex-presidiário, ex-náufrago de um modo geral.
                Nem por isso vou achar que não dei certo, continuou.
                Pensando bem, ainda tenho a doçura das tardes, a ilusão das manhãs, o humor dos amigos, certa consciência, certa coerência e Bach, e Isa, e o Borges, o Veríssimo, o Corinthians.
E ainda posso, se quiser, ser generoso e misericordioso.
                Meu Deus, concluiu. O que ainda se pode fazer com o que sobra!
                Essas foram as últimas tiradas que recebi dele, via fax, já que logo depois o Vitorino decidiu se isolar num sítio em Minas para escrever um livro de contra-ajuda sobre pessoas cujas paixões não coincidem com o mercado. Parece que se inspirou numa tia que por cinquenta anos foi, apaixonadamente, professora primária e morreu ganhando menos que uma digitadora, dando aulas de reforço pra molecada do bairro em troca de baldes d’água para sua horta. O título já era bem ele: Como ser feliz sem dar certo. Mas como ele vive começando livros que jamais termina, insisti em que deixasse comigo sua outra valiosa coletânea de histórias sobre pessoas que através de pequenas bobagens chegaram a grandes iluminações. Garanti que, na sua ausência, botaria tudo em ordem, com a máxima clareza possível, já que nosso grande mestre pesquisa muito, pensa brilhante, mas escreve confuso. Para minha surpresa, Vitorino me confiou o material sem maiores discussões, recomendando apenas certo cuidado caso fosse publicar, já que, segundo ele, a humanidade ainda não está madura para a salvação pela bobagem.
                No dia do embarque, fui o único a acompanhá-lo até a rodoviária. Fazia um calor danado e o mundo todo como se desmilinguia à nossa volta. Vitorino me parecia estranhamente sereno. Na hora da partida, pela janela do ônibus, ainda lhe perguntei, meio sério, meio brincando:
                - Mestre, mestre, o que é a vida?
                - Um carpete persa – ele respondeu, sério.
                - Quer dizer, uma coisa chã que pode ter lá as suas finezas? Ainda tentei explicar, mas ele apenas balançou a cabeça como quem diz: descubra.
                Luis Vitorino Gamba Martins foi dado como desaparecido ainda em princípios de 96 na região mineira conhecida como Chapada Diamantina. Antes recebi dele, sem maiores explicações, alguns esboços do seu Como ser feliz sem dar certo, que terminei, na mixagem final, fundindo com suas teses sobre salvação pela bobagem. Depois de quase dois anos ordenando seus causos sobre acaso e salvação, felicidade e fracasso, nem mesmo eu sabia determinar com clareza o que era fato acontecido com outros ou puro Vitorino disfarçado. Deu no que deu, essa polifonia danada, um autêntico carpete persa, tão, aliás, ao gosto do mestre.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

XXXIV


     Hoje me preparava para ir dormir. Era cedo, mas a gripe me arrastava para a cama, quando soube que você, meu irmão querido, havia sido assaltado, levado coronhadas na cabeça e estava no hospital, onde levara 29 pontos!
     E você me ligou! Jorge, desligue que eu te ligo. Morando em outra cidade, nada poderia fazer por você naquele momento, mas você estava relativamente bem, já havia voltado para casa. Quatro horas depois, em vão eu buscava o sono. Estava faltando algo. Entendi que não era em mim e sim no mundo violento e desordeiro.
     Um pacato, honesto, responsável e metódico cidadão, amado por todos que o conhecem, que nunca fez mal a ninguém vem voltando para a casa, depois de um dia cansativo de trabalho, subindo a ladeira a pé, quando subitamente se vê sendo assaltado. Reage e defende a pasta do trabalho! É covardemente agredido, cai, e sangue sai de sua cabeça e se espalha. Que violência é esta? Não é notebook. São papéis. Não faça isso. Não baguncem a minha vida.
      Deixem-no em paz. É isto o que está faltando: ordem e respeito. Lugar de assaltante não é neste mundo. Em A menina que roubava livros, a narradora comenta a propósito de um rio, exuberante e límpido, que o mundo não o merecia. Aqui, é esse homem que não merece o que fizeram com ele.
      O bandido deveria ser sumariamente executado. Você não morreu, graças a Deus, mas, enquanto não for instituída a pena de morte (nossas cadeias estão locupletadas), muitos ainda morrerão, enquanto esses, não digo “bichos” para não ser injusta com estes, mas “subumanos” não forem impedidos de continuar a perpetrar seus crimes.
       E eu, achando que Brizola era um bom orador, nem atentei à época para o mal que ele causaria, impedindo no seu governo, os policiais de subirem o morro. Concordaria com ele, se os bandidos de lá não descessem para assaltar e matar. Mas, se eles “podiam” descer e causar mal à sociedade, os policiais deviam, sim, subir até onde eles estavam atocaiados. Como bem o fazem hoje.  Mas, por um longo tempo não o fizeram. Assim, a bandidagem, se sentindo protegida (coisa que quem paga impostos está longe de o ser) deitou, rolou, se aglomerou, cresceu, se fortificou e deu no que deu.
     Sei que a violência está por toda a parte, mas, ela começou em algum lugar...
     Que Deus nos proteja!

domingo, 18 de setembro de 2011

Autorretrato (Autor convidado: Carlos Moraes)

                                                                 
                Às vezes acho que o difícil não é chegar lá, o difícil é chegar inteiro, com toda essa carga de pequenas bobagens que tanto nos atrasam. Esses dias cheguei a fazer a lista das principais bobagens que há anos carrego e que tanto me atrasam:
                Três carrinhos de madeira, um time de botão completo, um Vinícius de Moraes completo, uma pipa meio rasgada, dois amigos afogados, um bilhete da Lurdinha, o cachorro amarelo que o ônibus pegou, meu primeiro boletim, pedras de um rio que nem existe mais, um catecismo, um estilingue.
                Às vezes quero sinceramente juntar tudo e andar mais rápido, Mas é uma luta. Um dia é a roda do carrinho que se vai, outro não tem vento para a pipa, ou então é um dos afogados que me acena, o bilhete que briga com o catecismo, o beque central dos botões que se extravia, ou o Vinícius que sai a bulir com as moças.
                Com tudo isso sei que me atraso. Os amigos vão passando, ligeirinhos, a pé, de bicicleta, alguns já de carro, um que outro até pergunta, bronqueado. “Qual é, meu?”
                E eu ali, tarde da vida, me juntando todo. Claro que um dia espero chegar, e inteiro se Deus quiser.


sexta-feira, 9 de setembro de 2011

XXXIII

        Não fico muito satisfeita quando, ao fim do dia, verifico que só li seis páginas! Minha média de leitura era de cinquenta páginas por dia...Mas, as páginas lidas hoje me encantaram. Assim como Saramago em Intermitências da Morte fez desta uma de suas personagens, o autor de La ladrona de libros convoca-a para ser a sua narradora. E esta depois de ter levado em seus ombros a alma do irmãozinho da protagonista, e de outras ainda em seus cobertores, reencontra-a, conscientiza-se de seu crescimento, relembrando ainda que havia um trem, neve e uma menininha devastada pela dor.
 A Morte, ao testemunhar certos atos dos homens, dizia para si mesma, que aquilo era típico dos humanos e os invejava por terem o bom senso de morrer. Estou chegando ao fim desse livro e ele é emocionante.
        Falando em morte, acho que a preocupação em proteger os cidadãos honestos deste país não existe mais. O jornal de ante-ontem estampou a ordem do Tribunal de Justiça para derrubar muros e qualquer aparato de segurança de um determinado condomínio de Brasília. Está certo que ele ainda é irregular, mas daí a alegar falta de liberdade de circulação e onerar com multa de vinte mil reais, cada vez que um vigilante pedir documentação a quem lá chegue, com boas ou más intenções, é inacreditável. Se a moda pega, os edifícios do Rio de Janeiro, Recife e demais estados do Brasil, que dificultam o acesso dos marginais, terão que facilitar o caminho do crime e derrubar todas as suas grades.
        Ontem, o MP multou em 500 mil uma cadeia de lojas por ela exigir atestado de bons antecedentes de seus funcionários. O que é isso?! Quer dizer que também não se poderá mais verificar na delegacia se alguém que se pretende contratar tem ficha na polícia?     
     Afinal, nesta sociedade quem é que pode contar com o Departamento de Segurança? Somente os bandidos? E a arrecadação da multa, para quem vai?
        Matei a charada. É que a faxina está ameaçando o enriquecimento ilícito, então providenciaram rapidinho uma nova fonte de renda.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

XXXII


                                                                          
     Quase sete horas. Lá vamos rumo ao colégio. Em minha “lavagem anímica”, no bom sentido, pois também pode ser chamada de formação musical, coloco Fado.
     Ainda não me arrisco a perguntar aos sonolentos se estão gostando da música. É cedo. Ouvem as três melhores músicas do cd e depois troco por uma da Shirley Bassey.
      A vírgula do meu dia era o computador. Lia o jornal, ia para o computador; molhava as plantas, ia para o computador; fazia ginástica, ia para o computador. Agora, devido a um problema no rim, o ponto e vírgula será o copo d’água, porque assim como o tempo está apressado, seu filho, o dia, então, nem se fala! Se mergulhamos em um livro ou nos e-mails, o sol se põe e a água ficou esquecida.
      Portanto, foi muito bom o “chá de cadeira” de duas horas no Pronto-Socorro, à espera de uma tomografia. Fiquei lendo, com o risco de não ouvir o chamado da minha senha (como aconteceu na fila do Banco, e no aeroporto, quando Saramago me fez perder um vôo internacional), mas livre das solicitações domésticas, provisoriamente ampliadas. A televisão em salas de espera atrapalha um pouco, mas consegui que desligassem o ar condicionado, antes que congelássemos.

      - Vó, preciso de um cinto.
      - E eu de uma sacola – me informa a neta Clara, após perguntar pela sandália dela.
      - Tem uma agulha; viu a minha carteira; meus óculos? Pergunta o neto mais velho, ao longo da semana, e passo eu agora a colecionar o que me é pedido em Gincanas quase que diárias. Vou me tornar expert nesse esporte, depois de descer das alturas, onde me encontro às vezes, compenetrada em leituras ou e-mails, para aterrissar no meio de papelão, caixa de ovos, tesoura, algodão, feijão, balão, jornal,  revistas, cola e o diabo a quatro para as tarefas escolares e experiências científicas.
        São inúmeras as indagações se vi isso ou aquilo, a mim, que já ando esquecida.
        Não há de ser nada. Tenho agora quatro ajudantes para recuperarem o que perco por aqui, e para demonstrarem que esquecimento não é apanágio de idade alguma.