terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Capítulo IX

Um dia festivo
Acordamos, minha irmã e eu, com barulho de chuva, ao meu lado "Doidas e Santas". O livro é altamente recomendável: profundo, leve e divertido ao mesmo tempo. E, alternando as risadas provocadas por Martha Medeiros com as produzidas entre nós, quando colocamos nosso papo em dia, chego à conclusão de que ela divertiria qualquer terapeuta.
Fora o que acontece de inesperado, como, de repente, um indivíduo parar na minha frente e despejar à queima-roupa a fala teatral:
- Até quando vou suportar o sofrimento do sentimento da ausência do seu amor?
Que ator!
Além do almoço de hoje e do concerto maravilhoso de harpas, o que está rolando entre duas sexagenárias se preparando para ir, por exemplo, à praia, é hilariante. Claro que estão acordando uma às quatro, outra às cinco horas, para poderem pisar na areia às oito, oito e meia, e saírem, pontualmente, às dez horas. É um tal de abre e fecha mala, onde estão os óculos, onde está a canga, o protetor solar, livros e o dinheiro exato do ônibus à mão para não dar bandeira de abrir uma carteira na frente da roleta. Isso depois de curá-la da neura de, no Rio, só andar de táxi, informando-a do fato de um taxista ter estuprado uma passageira.
- Regina, achou tudo?
- Já. Só estou abrindo e fechando zíper por puro prazer.
Outro dia fiquei por um tempo procurando algo queminha irmã havia guardado em sua mala, pensando que era dela. Então, após guardar a minha escova de dente, antes que esta julgasse ser a sua, saímos. Mas, morando em casas, não temos o costume automático de pressionar o botão do elevador do prédio da mamãe, onde estamos hospedadas, e este demora a chegar ao térreo. Ele não funciona por telepatia.
- Regina, ande mais devagar. Minha sandália não é muito boa para caminhadas. É mais para desfilar.
- Com esse enorme diamante aí entre os dedos, só pode...
Está há tanto tempo na Inglaterra que deve ter esquecido o significado de ouropel. E tem mais. Não gosta que a alertemos ante uma poça d'água. Diz que não é cega. É assim? À vista de algo amarronzado, se ela não estiver com uma sandália minha, lembrar-me-ei de que enxerga muito bem.
Uma vez instaladas no Leblon, minha irmã com seu chapéu na cabeça, remexe na bolsa.
O que estava procurando? O próprio.
Na volta, pegamos um ônibus vazio, o que fez com que ela perguntasse se eu o fretara. É o risco zero de sermos assaltadas, respondo eu, a não ser que a cobradora seja uma meliante. Mas, antes de entrarmos no ônibus-fantasma, que assim, incrivelmente, permaneceu até ao nosso destino, sugeri darmos uma olhada na Livraria Argumento, ali pertinho, onde há o tal “Café pendente” da crônica da Martha Medeiros, que nos conta a simpática idéia de um freguês, que, por falta de troco, deixou um café pago, para ser degustado em outro dia. Café este rebatizado pela Argumento de “Café do próximo”, à disposição de qualquer um que entre desprovido de troco ou de dinheiro para um cafezinho.
Mas ela retruca que não há tempo, pois está com pressa. No meio do caminho, porém, surge um cachorrinho. Regina para e pergunta qual a raça e, conversa vai, sorriso vem, quando escuto “é que eu moro na Inglaterra...”, cogitei em esperá-la na livraria, pois haveria toda uma biografia a ser desfiada e tempo para vários cafezinhos.
Ainda desabafando, é que me estarrece ao comentar sobre um jantar oferecido pelo Parlamento, onde seu marido foi homenageado, entre outros, na qualidade de representante da Câmara de Navegação, e onde se defrontou com uma inglesa cheia de empáfia, que, ao encetar uma conversação, lhe indagou o que achavam seus irmãos de sua transformação, após trinta anos de vivência na Inglaterra (caso ignorem, muitos ingleses, assim como os americanos, se acham superiores)...
Apesar de estranhar a pergunta (que transformação?!), timidamente, respondeu que não havia mudado. De fato, mudança, no sentido entendido pela esnobe e insensível, não. Mas, sendo a mulher inteligente que é, sabe muito bem que há sempre transformações em qualquer estágio de nossas vidas e era isso que deveria ter respondido à loura de nariz empinado, além, digo-lhe eu, de tê-la esclarecido que, pensando bem, sim, tivera que se adaptar à dura realidade de um país frio, sem a liberdade e as mordomias que temos no Brasil, onde, ao contrário das inglesas, a maioria das brasileiras desfruta, quase sempre, de uma ajuda doméstica sem precisar cozinhar, lavar, passar, esfregar chão, lavar banheiro, etc...

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